A troca

Ághata deslizava delicadamente a mão no ventre encarando a própria imagem no espelho com pesar. Pois, logo após o último aborto, ela havia descoberto que tinha perdido a capacidade de gerar. Devido à sua tristeza e pelo temperamento inconstante, o marido a abandonara, infelizmente no momento em que ela mais precisara de sua companhia. Nos meses que se seguiram à triste ausência de tudo, a ânsia de gerar vida aumentava, com uma sensação amarga de solidão e delírio. Por diversas vezes tentou vários métodos para alcançar seus objetivos, sempre sem êxito.

Certo dia recebeu a visita de uma antiga amiga, que ficou chocada ao ver o seu estado lamentável e depressivo. Ela contou sua história à amiga que ouvia atentamente cada palavra:

- Ágatha, eu entendo o seu sofrimento e acho que sei como ajudar. Conheço uma bruxa e dizem que ela é boa com essa coisa de fertilidade e que já ajudou vários casais a terem o tão sonhado filho. Não custa tentar, quem sabe ela não poderá te ajudar.

Dito isto ela entregou um pequeno cartão negro com o endereço e o nome: Bruxa Cecília, trago seu amor, curo homossexualidade e outros...

A princípio, ela riu do curioso anúncio, mas percebeu o semblante sério da amiga, que acreditava realmente naquilo. Apesar de estar convencida de que tudo não passaria de uma falcatrua, ela decidiu tentar, afinal de contas o máximo que poderia acontecer era não dar certo ou ser uma perda de tempo.

No dia seguinte, ao entardecer, dirigiu-se ao endereço no cartão. Avistou uma rua erma, com casas velhas e obscuras, o vento trazendo um cheiro quente de urina e coisa velha. Os cães ladravam irritantemente, mas a rua estava taciturna e abandonada. Ela tocou o sino na porta ladeada por um jardim de árvores escuras e ressequidas. Uma velha de olhar amarelado e viscoso atendeu e a fitou com receio:

- O que quer?

- Minha amiga me entregou este cartão e disse que poderia me ajudar...

- Entre e veremos o que posso fazer por você.

A velha abriu a porta. Imediatamente sentiu um cheiro forte de incenso e mofo que se misturava. Nas paredes várias imagens macabras e curiosas adornavam a sala de cores estranhas. Não era um ambiente acolhedor, mas sim mórbido e mal cheiroso. A velha sentou em um sofá desbotado e acenou para que ela se sentasse ao seu lado:

- Diga-me criança, qual é o seu problema?

- Eu não consigo ter filhos, por cinco vezes já abortei. Por conta disto, meu marido me abandonou. Eu desejo tanto ter um filho...

- Isto te entristece não é, menina?

- Tentei diversos tratamentos, sem êxito. Cansei de enterrar bebês – lágrimas brotaram dos seus olhos – Por sete meses eles estiveram em meu ventre, crescendo, se mexendo e de repente... – sua voz emudeceu.

Quando conseguiu falar, seu olhar estava distante:

– Nenhum movimento e então o médico nos informava que o bebê já estava morto. Eles nos disseram que jamais poderíamos ter filhos, por minha culpa...

A bruxa a fitou detidamente, como se aqueles olhos desconcertantes e nebulosos vislumbrassem algo mais na jovem. Então perguntou:

- O que você daria em troca, por uma nova vida em seu útero? – tocou levemente o ventre de Ágatha – O que seria capaz de suportar?

- Entregaria minha alma, pois um filho é o que mais desejo.

A velha sorriu com satisfação, exibindo os dentes amarelados:

- Era isso o que precisava ouvir, menina...

A senhora a encaminhou para o fundo da casa, onde havia um grande salão com símbolos incrustados nas paredes, teto e chão. Estátuas grotescas eram iluminadas por velas e incensos. A bruxa selecionou alguns instrumentos e ervas escuras.

- O que vai fazer, senhora? – perguntou um pouco assustada.

- Irei fazer um ritual que lhe fornecerá a fertilidade necessária. Mas existem alguns termos, preciso saber se concordará ou não...

- Que termos são estes?

- Você disse que daria sua alma em troca, não é?

- Disse.

- Sorte sua, pois eu não preciso dela. Na verdade preciso da alma da semente certa...

- Semente certa? Explique por favor.

- Você acha que irá fecundar sem o auxilio de um homem? – a bruxa soltou uma gargalhada assombrosa, como se a inocência alheia fosse algo divertido – depois do ritual você terá algumas horas para completar o ciclo, deve achar o semeador e obter sua semente até o pôr-do-sol.

- E se ele não quiser?

- Fará a força... e depois... – a velha hesitou ao ver o olhar alarmado da jovem e segurou uma adaga nas mãos. – tem certeza que está preparada para isto?

- Sim, não há nada que eu deseje mais do que um filho. Diga o que é preciso e eu o farei.

- Esta bem, saiba que é um caminho sem volta, ao final da cópula você terá que matá-lo!

- Como assim? Isso é loucura!

- Você disse que daria algo em troca e será a alma de outra pessoa. Deve existir um equilíbrio entre as forças e se quiser obter êxito naquilo que deseja isso deve ser respeitado. Diga se está de acordo ou não, uma velha como eu não pode perder mais tempo...

Ela encarou a velha bruxa. Apesar de suas crenças e conceitos repudiarem a idéia de um homicídio, seu desejo em conceber uma vida era mais forte. Ela acenou com a cabeça de acordo com o sombrio contrato e logo o ritual foi iniciado.

Ágatha ficou completamente nua enquanto a bruxa banhava sua pele com óleos perfumados entoando cânticos em uma língua desconhecida. Subitamente, ela entrou em transe, vislumbrou imagens perturbadoras que a deixaram em estado febril. Ora as cenas eram calmas e tranqüilizadoras, ora monstros surgiam para atormentar sua mente, causando medo e dor. Súbito, tudo havia terminado. Abriu os olhos para encarar a velha de olhar triste:

- Menina, você deve encontrar a semente certa e para isto irá precisar deste amuleto.

Ela lhe entregou um pequeno medalhão feito de prata com pedras escuras em formato de um olho, e que possuía um sutil brilho esverdeado. Era belíssimo, mas emanava uma energia curiosa e oculta.

- Ele irá brilhar quando estiver próximo do escolhido. Agora vá, o seu tempo é curto menina, não se esqueça dos termos, se não cumprir, o equilíbrio irá cobrar sua dívida...

Logo depois de pagar um altíssimo preço pelos serviços prestados, ela partiu. Já estava amanhecendo, uma espessa bruma cobria a Rua das Lágrimas, como era chamada e tudo parecia morto. Nem mesmo a luz solar penetrava entre as brumas. Antes do pôr-do-sol, era o prazo a ser cumprido. Ela precisava encontrar a semente certa

e durante o dia ela procurou incessantemente, percorreu diversos lugares, lugares que estavam povoados de homens, mas nada encontrou. Estava perdendo as esperanças e começava a pensar que tudo não passara de uma grande fraude. Sentou exausta, sem saber que caminho seguir. Distraidamente, cansada, avistou um jovem rapaz de cabelos negros entrando em uma lanchonete próxima. Para sua surpresa o amuleto emitiu um brilho tímido:

- Deve ser ele - pensou.

Ela entrou a procura do jovem e o avistou sentado ao fundo, segurando um livro de capa marrom nas mãos, enquanto apreciava um cappuccino. O brilho do amuleto se intensificou e então ela sorriu, pois finalmente o havia encontrado. Aproximou-se do jovem que a convidou a sentar, parecendo interessado e receptivo a cada palavra dela, afinal de contas tratava-se de uma bela mulher flertando com um jovem rapaz. A conversa era agradável e descontraída e quando ela finalmente o convidou a ir até a sua casa, foi prontamente atendida, pois para ele nunca fora tão fácil conquistar uma mulher daquele nível e beleza.

Em pouco tempo, os dois já estavam aos beijos, ele vigoroso e forte, mas terrivelmente inocente para uma mulher experiente como Ágatha. Logo eles já estariam se entregado ao amor carnal e ela teria o que era necessário, a semente em seu ventre. Mas lembrou-se do termo sombrio do seu contrato e por alguns instantes isso a perturbou, mas deveria ser feito, tinha de ser feito. E ela deixou que acontecesse.

O jovem adormeceu em sua cama. Por alguns minutos ela o fitou, observando a face límpida e jovial. O sol já começara a se por e os raios dourados já desapareciam no horizonte. Ela retirou a adaga que a velha havia entregado e golpeou seu peito nu. O rapaz acordou de sobressalto, assustado, com os olhos vermelhos e arregalados e durante o desvanecer da vida em seus olhos ele a encarou com raiva. O peito arfava a procura de ar e o sangue rubro, quente, puro, escorria empapando os lençóis de seda e a sua camisola branca, ela assistia a morte do jovem em silêncio. Ela havia matado um belo homem, em troca de uma nova vida.

O desaparecimento do rapaz deveria permanecer um mistério, seu corpo dividido em partes e sepultado em uma noite fria no jardim aos fundos da casa. Ninguém haveria de chorar sua morte a não ser sua assassina.

Cinco meses, e Ágatha contemplava embevecida o seu ventre crescido. O bebê estava saudável e a caminho e nem mesmo os médicos entenderam como aquele milagre havia acontecido. Ela jamais havia sentido tal felicidade, pois finalmente sentia a certeza de que uma vida havia sido gerada e viria ao mundo, preenchendo aquele coração sofrido e lhe trazendo alegria.

Mas por volta do sétimo mês, coisas estranhas começaram a acontecer; alucinações, vozes, e vultos percorriam a casa, gatos negros apareciam mortos e eram colocados á sua porta. A lembrança de suas outras frustradas gestações a impeliu a retornar à casa da velha bruxa. Durante a visita a bruxa não tirava os olhos de sua barriga, ora passava as mãos ressequidas em seu ventre, ora o contemplava, em um estado quase hipnótico, em um transe mágico ao observar o que ali estava adormecido.

- Diga-me o que há de errado comigo, bruxa. Estou vendo coisas que me perturbam o sono, diga!

A velha subitamente retornou de seu transe e sussurrou;

- Você disse que o desejava, não importasse como, então ele o deu...

- Quem? Do que esta falando!

- Ele te escolheu. Lúcifer lhe deu uma criança, você carrega em seu ventre o Príncipe das Trevas, menina...

Ela ficou consternada e horrorizada com a revelação, tudo parecia surreal demais. Mas o que lhe restara? Resignar-se e aceitar o seu destino ou expurgar o que já crescia e se movia em seu ventre? Ágatha sofria com a descoberta, mas o desejo de realizar sua maternidade era maior e o amor por aquele bebê fora alimentado dia após dia. Ela sabia que o preço pago havia sido o mais alto e mesmo sabendo que o seu destino seria ameaçador e letal ainda conseguiu sorrir.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 14/10/2010
Reeditado em 17/10/2010
Código do texto: T2556516
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