Punição

Podia ouvir um gotejar ao longe, agora o quão longe, ele não saberia distinguir. E foi este som peculiar e o inocente questionamento sobre sua localização que lhe fizeram perceber que estava consciente outra vez. Abriu os olhos, mas foi em vão. A densa escuridão acortinava sua visão como um manto negro e espesso, dificultando a caminhada.

Mas desde quando estava caminhando?

Ao despertar com o som do gotejar incessante martelando seus tímpanos ele já estava caminhando e não havia se dado conta. Estava andando às cegas por quanto tempo? Não sabia. O pior disso tudo é que ele não estava acostumado a não saber das coisas. Isso lhe deixou intrigado, quem sabe até mesmo apavorado – e ele desconhecia esses sentimentos.

E o que ele sabia, afinal?

Ele sabia que estava morto. Ainda podia sentir o gosto ácido do sangue em sua boca e a lâmina da lança rasgando sua carne. E a dor. A dor que acometia não só o seu corpo, mas dilacerava sua alma. Eram estas as lembranças de seus últimos minutos de vida e que ainda permaneciam frescas em sua memória.

Uma fonte de luz um pouco à frente serviu-lhe como guia. A luz refletia nas paredes úmidas de rocha escura e fazia cintilar as estalactites que pendiam do teto abobadado. Uma gruta. Nada diferente de como um dia havia imaginado a mansão dos mortos. Seguiu o trajeto timidamente iluminado e deparou-se com um imenso lago subterrâneo onde uma pequena barca estava atracada à margem. Um homem de meia-idade lhe aguardava com uma lamparina a óleo.

- Vem comigo, majestade – a voz do barqueiro ecoou pela gruta como um trovão em dia de tempestade.

- Tu és o encarregado de levar-me até meu pai?

- Sou o encarregado de levar-te até o outro lado do lago – sorriu o barqueiro desdenhosamente, mostrando os dentes sujos e podres por trás da barba branco-amarelada. Andou até a proa da barca onde pendurou a lamparina num suporte para iluminar a trajetória durante o percurso e agarrou um grande remo que repousava aos seus pés. – Agora suba, homem.

O homem manteve-se em silêncio durante a travessia e o barqueiro assobiava uma melodia fúnebre enquanto remava. Isso, adicionado ao bater do remo nas águas, eram os únicos sons que podiam ser ouvidos no trajeto – até este momento. Um gemido baixo chamou a atenção do homem, que inclinou-se para ver além da barca.

Haviam corpos submersos na água. Dezenas de milhares deles, todos se movendo às cegas, como uma espécie bizarra de cardume de peixes pálidos e humanoides. Antes que pudesse recolher-se assombrado para dentro da embarcação, o homem teve a cabeça agarrada por um dos mortos errantes que saltara das águas. As mãos de pele flácida e gélida cravaram-se em sua face e quando gritou – numa rascante súplica –, o hálito da coisa veio carregado de um forte cheiro de decomposição:

- Eu rogo teu perdão! EU IMPLORO PELA PIEDADE DO SENHOR TEU DEUS!

O homem desvencilhou-se da horrível criatura e caiu de costas sobre o assoalho da barca. O condutor olhou para trás, ainda desdenhoso:

- Segure-se, já estamos chegando.

Atracaram do outro lado do lago e o homem pôde descer em segurança. Olhou de relance para a superfície negra e espelhada do lago – não havia nenhum sinal dos corpos.

- Aqui nos despedimos – disse o barqueiro, voltando para a água – Siga a trilha e encontrará aquele que o aguarda. Adeus, alteza – e sumiu com o barco na vasta escuridão do lago negro.

Estava em uma câmara tão ampla da gruta que mal podia ver as paredes de pedra. O teto agora era tão alto que ele começou a se perguntar se realmente existiria algum. Mais uma pergunta que ele não saberia a resposta. A morte queria desviar-lhe de sua missão, emboscá-lo numa armadilha de dúvidas – e ele não sabia se poderia contorná-la ou cair de corpo inteiro nela.

A trilha seguia por um caminho tortuoso, fracamente iluminado por pequenos pontos vermelho-fluorescentes que o ladeavam. Após caminhar pelo o que pareceram horas percebeu que a temperatura aumentava gradativamente junto com a intensidade da luz. Os pontos vermelho-luminosos vinham dos destroços em brasa que ainda queimavam nos escombros carbonizados. Um cemitério de casas – uma cidade fantasma.

Assim que teve consciência do que se tratava, sua audição aguçada pelo silêncio da caverna capturou os primeiros murmúrios de seus antigos habitantes. A população arrastava-se de dentro para fora de suas casas para saudar o visitante. Para o horror do homem, todos estavam nas mesmas condições de suas casas – estavam queimando! Rastejando em sua direção como serpentes carbonizadas, implorando por sua ajuda, suplicando pelo perdão de Deus. Homens, mulheres, crianças, animais. Todos em chamas, em brasa. Queimando como...

Como no Inferno.

Desviou-se daquelas pessoas condenadas a queimar pela eternidade e seguiu apressadamente pela trilha. O sofrimento eterno. Queria poder fazer algo por aquelas pobres almas, mas isso já não cabia a ele. Quando vivo ele conheceu a dor. Sabia pelo o quê aquelas pessoas estavam passando e não lhes desejava aquilo pela eternidade, fosse o que tivessem feito quando estavam vivos. Ele intercederia por eles, rogaria pelo seu perdão quando chegasse a hora. Era o que faria.

O caminho o qual seguia terminava na encosta de uma grande ladeira, uma estrada íngreme de terra que se erguia e sumia além do horizonte escuro da caverna. Ao lado da estrada haviam milhares de cruzes, todas carregando um cadáver humano. A visão o fez arrepiar – um arrepio que começou na espinha e subiu-lhe até a nuca, lacrimejando seus olhos.

Um homem de preto o aguardava ao pé da ladeira, cercado de pequenas e horríveis criaturas aladas. Carregavam uma grande viga de madeira e ferramentas. Cercaram-no. O estranho homem de preto dirigiu-se a ele:

- Veja o quão injusto é o mundo daquele o qual chamaste de pai: tu, cujo a vida reservaste a ajudar os necessitados; que pregaste a paz e o amor entre os homens; que nada fizeste de mal ao teu próximo. Hoje, aqui estás.

O homem sucumbiu à força das criaturas. Agarraram-lhe pelos braços e deitaram-no de costas sobre a grossa viga de madeira, suas mãos então posicionadas em cada extremidade. Outras seguravam grossos pregos de metal escuro sobre ambas suas palmas, para que outras duas lhe pregassem as mãos com os grandes martelos de ferreiro. Tentando desviar o olhar da dolorosa cena, do grotesco déjà vu que lançava-se em sua cabeça, articulou a única – e última – pergunta que pôde:

- Quem és tu? ONDE ESTÁ MEU PAI?

- Tu não és o Messias, homem. Enganaram-te. Porém, os hebreus hão de santificar o teu nome e teus discípulos propagar-se-ão pela face da Terra, mas eis a verdade do teu Senhor: maldito aquele que se passar pelo filho de Deus e todos aqueles que seguirem teus passos.

Os pequenos demônios haviam acabado sua tarefa. Com muito esforço, o homem conseguiu se levantar. As criaturas açoitavam, cuspiam, zombavam-lhe. Tal qual sua primeira vida. Tal qual sua primeira morte.

- Agora anda, Jesus de Nazaré, rei dos judeus. Agarra-te a tua cruz e siga o teu caminho, pois desta vez tua caminhada até o calvário há de ser eterna.

***

"De repente, o vinho virou a água

E a ferida não cicatrizou.

O limpo se sujou e no terceiro dia

Ninguém ressuscitou."

Fátima

Aborto Elétrico