UM BOM EMPREGO

Ela estava confiante. A esperança ainda resistia em seu peito, por mais que o mundo insistisse em tentar desmoroná-la. Só ela conhecia os pormenores das dificuldades que enfrentava no dia-a-dia. Mas desta vez seria diferente, algo lhe dizia que conseguiria o emprego. Ela sentia que uma força conspirava a seu favor naquele dia, não dava para explicar o porquê, ela simplesmente mergulhava nesse sentimento.

Quando chegou ao endereço indicado pelo anúncio do jornal, ela não conseguiu disfarçar a euforia. Afinal, de acordo com seu julgamento, trabalhar numa propriedade como aquela poderia significar um recomeço em sua vida. Uma nova etapa plena de possibilidades.

Ela checou o digital no pulso antes de acionar a tecla do interfone, precisava se certificar de que não estava atrasada. Um suspiro de desapontamento escapou de sua boca, pois constatara que estava muito adiantada, na verdade. Isso não era um bom sinal. Ela não poderia deixar transparecer os indícios do desespero.

Estava disposta a esperar pelo melhor momento, embora as pernas em constante movimento indicassem a ansiedade à flor da pele. Um súbito e estridente estalo, vindo das grades de ferro do portão, a fez saltar, por conta do susto. Só então percebeu que estava sendo monitorada o tempo todo. Envergonhou-se e pediu aos céus para que seus atos involuntários de nervosismo, flagrados pela câmera, não lhe custassem as chances de contratação.

Um convite mudo a fez entrar. Um longo caminho, pavimentado por pedras arredondadas e simétricas, levava a uma belíssima porta de metal polido. Seus dedos tocaram suavemente a superfície reluzente e fria, e, como se esperasse pelo afago para se mostrar presente, o vão de entrada se ofereceu.

O interior da residência não decepcionava em nada a concepção que a imaginação da mulher fizera dele. O ambiente era muito claro e arejado, embora as janelas, tanto as frontais, quanto as laterais, permanecessem cerradas por suaves cortinas. As peças apresentavam um trançado composto por um material que ela também não sabia definir qual seria. Mas o que importava mesmo, era o fato de que a superfície lisa, e tão similar ao da porta, quase não ficava exposta, conseqüência decorrente do lacre imposto pelo tecido de aparência antiga.

Por alguns minutos, ela permaneceu solitária no recinto. Embora estivesse acompanhada por uma incômoda sensação de que alguém a observava. Temerosa, ela ensaiou um chamado, mas decidiu por bem aguardar por algum tipo de contato. No fim, sua decisão se mostrou acertada, pois não tardou para que ouvisse uma voz chamando seu nome. O som se originava de uma sala anexa, a qual, de maneira incompreensível, ela não havia percebido ao chegar.

A voz pertencia a um homem postado do outro lado de uma mesa de madeira avermelhada e rústica. Os contornos do seu rosto não denunciavam uma idade muito avançada, no entanto, alguma coisa em seu olhar deixava transparecer um magnetismo que só os predicados do tempo seriam capazes de esculpir.

De modo sério e polido, o senhor se apresentou e solicitou que a mulher tomasse assento diante dele. Em seguida, passou a examinar a folha de papel que continha as informações da pretendente ao cargo. Ele não demonstrou muita pressa na análise, interrompendo poucas vezes a leitura a fim de esclarecer uma dúvida ou outra. No final, ele se mostrou satisfeito com os dados. Porém, fez questão de frisar, por várias vezes, que ele precisava de uma pessoa independente. Alguém sem vínculo familiar ou sentimental. Uma secretária pessoal capaz de se dedicar em tempo integral ao desempenho das funções. Ele oferecia um bom pagamento, mas exigia tais especificações.

Com as garantias de que encontrara a pessoa mais indicada, o homem pediu que ela deixasse a cópia dos documentos e retornasse no horário combinado.

Ao ganhar as ruas, a mulher não conseguiu conter o sorriso triunfante que preencheu seus lábios. A alegria expressa por ela contrastava com o semblante melancólico do seu novo empregador. Ela não sabia, mas no interior da casa, recostado na confortável poltrona do escritório, o homem sorvia alguns goles de uma taça de vinho tinto, enquanto seu olhar se perdia num conformismo não declarado. Era como se ele carregasse o peso do mundo nas costas, mas não pudesse demonstrar o ardor do fardo, tampouco se livrar dele.

Ainda dominado pela tristeza, ele alcançou o envelope deixado pela nova contratada. Perdido entre as fotocópias, estava algo que fez a angústia deixar seu coração, mas que trouxe, no entanto, um outro sentimento. Algo mais intenso e imediato: seu peito explodia em ódio. Uma raiva pura e franca, tão devastadora que o fez lançar a taça de encontro à parede. Inúmeros fragmentos preencheram o carpete. A mancha avermelhada na parede desmanchava-se em filetes finos, dando a impressão de formar a imagem de um largo sorriso sobre a superfície lisa.

Desiludido, ele conferiu a face acusadora do antiqüíssimo relógio ao lado da mancha. Um profundo pesar dominou seu semblante. Ele gostava das coisas certas. Fazia questão de ser meticuloso em cada detalhe. Detestava imprevistos, erros e falhas. Como ele queria ser diferente. Por vezes, ele desejou ser mais impulsivo e inconseqüente. Porém, o senso de responsabilidade herdado do pai, assim como tantas outras características, não o deixava agir sem respaldo.

Inconformado, ele se deixou abater pelo desespero...

No horário combinado, a mulher retornava para tomar posse de suas atribuições. Finalmente, a sorte parecia lhe oferecer um sorriso cordial. A felicidade a acompanhou até a entrada da propriedade. Então, como se fosse esbofeteada pela mão pesada dos fatos, ela sentiu uma dor imensa. Suas mãos tremiam enquanto seguravam o envelope que fora deixado cuidadosamente sob o portão principal. Ela temia por seu conteúdo.

Foi impossível conter as lágrimas ao ler a verdade estampada na caligrafia perfeita do bilhete: “Não gosto de mentiras. Por favor, não apareça mais aqui. Coloque o que lhe dei no envelope e deixe-o no mesmo lugar.”

Havia algo mais com o bilhete. Só então ela se deu conta do quanto fora estúpida. Uma mulher e uma criança se abraçavam numa fotografia. Não haveria problema algum, se o rosto feminino não fosse o seu. No verso, uma frase escrita com as letras tortas da infância: “Mamãe, eu te amo!”

Ela não se lembrava de ter colocado a fotografia junto aos documentos. Como, então, ela havia parado no envelope? Para essa pergunta, ela não tinha respostas. Mas se havia uma certeza em seu coração, esta respondia pela convicção de que não deixaria que esse obstáculo prejudicasse a sua única oportunidade em meses. Os céus eram testemunhas das dificuldades que cercavam sua vida. Como era difícil sustentar a filha sozinha, sem trabalho fixo, sem ajuda de ninguém...

Não. Ela não deixaria escapar essa chance. Afinal, ela não havia mentido tanto assim. Não havia mais ninguém para lhe fazer companhia nesse mundo. Ela só tinha a filha, apenas ela. A mulher estava decidida a explicar tudo. Daria sua palavra de que a menina não atrapalharia em nada. Ela estaria a disposição do trabalho vinte e quatro horas por dia. Tudo pelo bem da criança.

Ela se sentia culpada pela mentira, pois o homem confiara plenamente em sua palavra. Acreditara tanto nela que não hesitou em lhe ofertar as chaves da residência, mesmo sem conhecê-la por completo.

Ele parecia uma pessoa honesta, boa. Se ela tivesse a oportunidade de explicar-lhe tudo, certamente conseguiria o perdão e, consequentemente, o emprego. Assim, a desesperada mulher não pensou duas vezes em utilizar a chave para abrir o portão.

Com passos largos, ela venceu a trilha de pedras que levava à entrada da residência. Apesar da presença soturna da noite, os postes de iluminação permaneciam inoperantes, mas ela estava tão transtornada que pouco se importou com a escuridão absoluta que inundava o ambiente.

Uma aura negra, própria dos atos ilícitos, ludibriava sua lucidez. Assim, movida pelo torpor da situação, ela não considerou, nem por um instante, a possibilidade de não girar a chave na fechadura. Do mesmo jeito que não percebeu a força absurda, que fora obrigada a imprimir, para empurrar a espessa folha metálica.

Uma vez no interior da sala, ela pôde constatar que a escuridão não afrouxava seu abraço. Temerosa, mas decidida, a mulher chamou pelo nome do quase patrão. Nenhuma resposta chegou aos seus ouvidos. “Tudo pela menina. Tudo pela menina”. Ela repetia em voz baixa, quase como uma prece, enquanto invadia o corredor, que conduzia ao escritório, onde estivera mais cedo.

Mais uma vez, ela chamou pelo homem. Nada. A porta do cômodo estava lacrada, mas para sua surpresa, a chave da entrada principal também abria o espaço restrito. A prancha metálica era ainda mais pesada do que a outra. Ela precisou forçar a passagem com os dois braços.

De maneira diferente do restante da propriedade, uma iluminação, ainda que discreta, banhava o recinto. Esse detalhe permitiu que seus olhos reconhecessem os contornos daquele que buscava. O homem estava recostado num canto, sentado, abraçando os joelhos. Parecia que tentava conter um choro.

- Senhor? O que aconteceu? Posso ajudá-lo?

- Eu mandei você embora.

- Por favor, deixe-me explicar.

- Você mentiu para mim.

- Eu sei...eu sei...mas...

- Você mentiu! Não deveria ter voltado aqui!

- Eu sei, me desculpe, mas...

- Não deveria ter voltado!

- Mas eu preciso do emprego.

- Eu sei disso, menina. Eu sei disso.

- Então, senhor. Por favor, me dê uma chance.

- Eu tentei fazê-la desistir do emprego. Você não tem o perfil apropriado. Mas preciso admitir que já não tenho forças para lhe negar qualquer coisa que seja.

- Então, o emprego é meu?

- Sim. É seu. A vaga era para alguém sem vínculos, mas você conseguiu. Eu sinto muito por sua filha.

- Por que, senhor? Com um emprego, eu conseguirei dar uma vida melhor para a menina. Mas não o decepcionarei. Garanto que cumprirei minhas funções de forma plena.

- Tenho certeza disso. Não resta a menor dúvida de que você desempenhará seu papel a contento, por isso tenho pena da menina.

- Como assim? Como assim, senhor? Senhor? Senhor?

O homem se encolheu ainda mais no canto. Em contrapartida, sua nova secretária se aproximou, numa tentativa de esclarecer o que se passava com ele. Ao tocar-lhe o pescoço, teve a palma da mão queimada, como se tivesse agarrado uma barra de ferro em brasa.

A mulher gritou, mas não tardou para que se esquecesse da dor. O que seus olhos enxergavam era muito mais urgente. Perplexa, ela entendeu o peso das portas, a composição do metal, a natureza do seu emprego. Com lágrimas nos olhos, ela também sentiu pena da filha, pois nunca mais a veria...

Um novo grito rompeu o ar, mas logo foi abafado por um uivo demoníaco...

Está cada vez mais difícil encontrar um bom emprego.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 20/10/2010
Código do texto: T2568713
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