Guarde as penas para as cartas de natal

Higham, Kent, 27 de dezembro de 1864.

Frederick,

Meu caro irmão, sinto por deixá-lo tanto tempo sem notícias. Ultimamente mantenho um espírito atormentado por males que a todo instante procuro sufocar, e a pena foge de minha mão tão logo penso tocá-la. Por vezes me peguei trilhando viagens imaginárias para sua casa em Darlington, mas a rotina que me cobram os editores sempre me puxa à realidade. Devido a isto, restou-me apelar para que esta carta faça-o meu confidente. Perdoe-me por dividir este fardo contigo, mil vezes perdoe-me, mas nenhuma outra pessoa poderia ocupar tão bem este lugar quanto você, Fred.

Antes de qualquer relato, peço que não julgue minhas capacidades mentais. Aquilo que desenvolverei nas próximas linhas soará absurdamente fantásticos, eu sei, mas acredite em mim quando digo que estou completamente são e saudável. Um dos motivos de ter lhe escolhido como correspondente foi justamente por sua maior propensão a crer no absurdo, algo que não floresceria nas mentes desérticas de Letitia ou Harriet. Por isso peço encarecidamente que não tome o que direi como a narrativa fantástica de um de meus livros, mas sim a mais pura e insólita realidade, como apenas ela consegue ser.

Sei que deve estar se perguntando a natureza daquilo que me aflige, portanto te digo que meu mal surge na forma de sonhos. Ao menos sonho é o conceito mais próximo do que realmente parecem ser. Não sei ao certo quando estes devaneios se tornaram presentes em minha vida, contudo, sempre sei quando virão. Sua regularidade é algo que me intriga! Passaria o ano inteiro na mais completa normalidade, não fosse esse único dia incomum, em uma pontualidade digna do Tower Clock. Sempre no natal, Fred, sempre no natal. Contudo, irmão, não se antecipe. Não se tratam de meros delírios noturnos, tampouco temores juvenis, como o medo do Homem da Areia que nos toma na infância, mas sim de abomináveis jornadas oníricas!

Como já disse, não sei dizer com precisão quando foi a primeira ocorrência, mas estou bem certo de que tudo iniciou-se nas noites de natal de minha adolescência. Temo dizer que durante minha juventude aguardava-os com entusiasmo e excitação. Naquele tempo, as experiências eram irresistivelmente deliciosas. Tão logo fechava os olhos na noite de natal, já me via em meio a festas inconcebíveis, onde mulheres transpiravam luxúria em seus espartilhos e partes incandescentes. Não é preciso dizer que não há nada mais natural do que a luxúria habitar os sonhos de um jovem, no entanto nunca ouvi de boca nenhuma relatos tão vívidos quanto as noites boemias que experimentava. Pela manhã, acordava exausto e com fortes enxaquecas.

Passei a desejar estes bacanais natalinos todos os anos, celebrados em um salão obscuro enterrado em alguma dobra de minha psique. Com o passar dos anos, apaixonei-me por Catherine, e logo me casei com ela. Acredito que o matrimônio acabou tendo um papel controlador em relação à minha libido, para não dizer castrador. Esse processo logicamente refletiu em minhas pessoais farras de natal, fazendo com que as meretrizes embaladas no cancan se desfizessem dos vestidos rendados para choramingar no bar enquanto me atiravam beijos e piscadelas desafinados. Esse caminho que inconscientemente tomei, o represamento de todos aqueles estímulos pecaminosos que me eram servidos por um maitre sem rosto, acabou trazendo consequências drásticas. A cada natal, as noites ficavam mais e mais horripilantes. Em meus sonhos, passei a regressar para ceias e festas de anos anteriores, estando eles sempre corrompidos por uma atmosfera maligna. Piorando a situação, passei a esquecer como realmente foram estas celebrações natalinas originais, tão fortes eram as marcas que as alucinações imprimiam em mim.

Neste último natal não foi diferente. Lembro-me de ter posto as crianças para dormir e beijar Catherine antes de iniciar minha guerra muda contra o sono. Lutei, como todo ano venho lutando, mas como sempre, falhei. Algo etílico corroeu minhas veias, e mesmo sem ter bebido aquele dia, cedi feito embriagado ao sono.

Reabri os olhos atordoado. Logo acima, um céu vermelho sangrava de nuvens escuras. O toque glacial do gelo em minha cabeça me fez entender que já havia partido do mundo real. Levantei do chão em que estatelado e removi as raspas de neve de meu cabelo. A minha frente erguia-se o casarão de Gad’s Hill Place soturno como nunca fora. Como em um sussurro, as obras em reforma ao lado da casa denunciaram: aquele era o natal de 1856, o ano em que nos mudamos para cá. Sua estrutura parecia respirar, mantendo uma expansão e contração ritmada de uma caixa toráxica de tijolos. Temeroso, subi o lance de escada e girei suavemente a maçaneta da porta. Suavemente. A despeito do tempo, ela estava absurdamente quente. Com passos curtos, cortei o hall de entrada enquanto meus olhos esquadrinhavam todos os cantos até finalmente constatarem que tudo se encontrava na mais completa normalidade. De abrupto, o silêncio foi apunhalado por um estridente tilintar de talheres. O barulho pareceu estirar todas as minhas fibras nervosas, que em seu regresso, feito uma atiradeira, disparou um tremor para todos os membros de meu corpo. Sabia de onde vinha aquele som, mas custou tempo para que finalmente chegasse lá.

Um laranja-morto se derramava pelas janelas do cômodo, garantindo uma fraca luminosidade ao lugar. Dispostos ao redor de uma longa mesa, vultos negros mantinham-se empenhados em sua sinfonia aguda, raspando garfos e facas enferrujados em pratos de porcelana. Gastando mais alguns passos pude finalmente ver seus rostos. E que terror, Fred! Catherine e meus nove filhos estavam sentados em um banquete de carnes pútridas e supurativas! Seus olhos cinzentos não me davam atenção, tampouco aos vermes que se arrastavam entre as travessas do banquete. Seu único foco era o obsessivo raspar nos pratos. Ao seu lado, uma deformada árvore de natal explorava com seus galhos grande parte do cômodo. Suas raízes grossas estalavam o assoalho de madeira enquanto lentamente serpenteavam sob o chão. Hora ou outra, podia se ouvir o estourar de um prego cedendo à pressão.

Estendi-lhes a mão e abri a boca, mas as palavras mortas estancaram em minha garganta. E foi apenas naquele instante, após me adaptar com a parca iluminação alaranjada do lugar, que o vi. Um ser horrendo de pele carcomida se mantinha a sombra do deformado pinheiro. Possuía um porte monstruosamente esculpido, com músculos que pareciam romper a pele, o que em certos pontos realmente acontecia. Coroando a sua quimérica configuração, possuía uma cabeça de bode sobre seu corpo hominídeo. Seus pesados e imponentes chifres cresciam rumo aos céus, e ao longo de seu corpo estavam fincados gigantescos anzóis. Contei-os. Nove.

Lançando-me um olhar desdenhoso com suas pupilas horizontais, tomou um dos instrumentos e seguiu em direção à mesa. Com um urro, trespassou a ponta afiada do metal o peito de Walter! A dor da cena roubou toda a força de minhas pernas, e caí no chão rendido ao choro. Meu filho, ao contrário, pareceu não se importar com o objeto que o atravessava. Estático, foi içado pela criatura e levado até a árvore de natal, onde foi pendurado. Uma a uma, as crianças foram perfuradas e levadas como enfeite para aquela mórbida árvore. Histérico, molhei meus joelhos com lágrimas e saliva enquanto me comprimia no canto da sala. Ainda assim, pude ver quando ele jogou Catherine sobre os ombros e, escalando alguns ramos, empalou-a no topo do pinheiro. Com os braços abertos e as pernas afastadas, ela manteve-se trêmula enquanto se afogava em seu próprio sangue, que encharcava os galhos e folhas que estouravam sua laringe para brotarem de sua boca. No instante seguinte, as crianças passaram a cantarolar com suas vozes alquebradas: “Io! Io! Bromios! Io! Io! Dendrites!”.

Assim, reparto contigo a mais terrível cena que já presenciei: naquela árvore onde o vermelho conquistava o verde, meus nove filhos jaziam com o peito estourado, presos em uma cantiga mórbida e encimados por uma mãe empalada. O grito rasgou minhas cordas vocais e pensei que nunca mais me silenciaria, mas bastou a criatura erguer um só dedo para que me calasse. Então, apontando para Catherine, pronunciou com uma graciosidade incompatível com sua voz gutural:

“Veja! Veja! Veja como brilha nossa estrela, Boz!”

No segundo seguinte acordei sem ar em minha cama. Ali tive a certeza de que não poderia continuar com Catherine. Não se iluda achando que estou sendo por completo samaritano ao me afastar dela. Na verdade, a possibilidade de ocorrer-lhe algum mal estando ao meu lado foi apenas o empurrão que faltava para o fim desse matrimônio. Espero que entenda a decisão.

Prosseguindo, gostaria de dizer que a alucinação em si não chega a ser o pior, irmão, oh não. O pior é que mesmo sabendo que é loucura, mesmo sabendo que é impossível, que nada de fato aconteceu, mesmo vendo meus filhos e Catherine a salvo, minha mente insiste em afirmar que o natal de 65 se passou exatamente daquela forma. Não me recordo de mais nada sobre aquela data. Nem ceia, nem presentes, nem cantigas. Nada. Céus! Vê agora o que enfrento, Fred? Como disse no início da carta, não creio que seja loucura. A loucura não é tão caprichosa para se satisfazer com apenas um dia por ano. Mas também estou ciente de que estou com problemas. Sei que você nada pode fazer. Nunca pretendi encontrar em você resposta ou saída. Apenas quero dividir esse peso.

Por favor, conto com seu sigilo. Assim que puder, irei visitá-lo.

Com carinho,

C.D.

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Higham, Kent, 25 de dezembro de 1865.

Frederick,

Aconteceu novamente, Fred! Outra vez fui entorpecido e conduzido pelo sono. Tudo é ainda muito recente, e não tive tempo para capturar todas as nuances do incidente. Por isso, prefiro não me prolongar e contar de vez o que sonhei na noite de natal.

Adormeci. No instante seguinte, pisquei convulsivamente tentando me adaptar à claridade do novo ambiente. Era natal de 22, com toda certeza. Fred, eu estava em frente ao Presídio para Devedores de Marshalsea, o lugar onde papai ficou preso por aqueles meses. Um azul tristonho vindo de uma lua trêmula iluminava o complexo. Observando o movimento sinuoso do astro notei que aquele firmamento era limitado por uma superfície vítrea, indo do alto até o horizonte. Na realidade, estava submerso dentro de um globo de neve juntamente com o pavoroso presídio. Tirando os pés do chão, nadei em direção ao prédio enquanto abria caminho entre os flocos de neve que caiam.

Minha respiração era pesada, porém eficiente. A única característica física que aquela água parecia não desrespeitar era justamente a densidade. Quanto ao restante, não havia nenhuma influência do líquido. Falava e ouvia como se estivesse ao ar livre. Nadei sobre os esqueléticos portões da entrada e desci para o pátio. Escrito em letras garrafais, um imenso letreiro exibia Liber Pater sobre a porta do pavilhão central. Não sei seu significado, mas no momento me pareceu algo que deveria recordar. Com dificuldade, empurrei o portão e entrei no lugar. No mesmo instante, uma algazarra ensurdecedora me entorpeceu. Gritos, urros e batidas vinham das celas. Nadei mais um pouco e logo à frente, iluminada pela luz segmentada das janelas gradeadas, deparei-me com uma imagem dantesca. Nela, mulheres nuas se batiam, mordiam, gargalhavam, amavam, insultavam, gemiam e roçavam-se umas nas outras. Faziam tudo como se não fizessem nada. Aquelas que antes se matavam podiam muito bem no instante seguinte enlaçar seus corpos em um alucinado coito. Impelido a continuar até a cela de meu pai, atravessei o salão grato por estas mulheres estarem encarceradas. Contudo, estarem soltas teria o mesmo efeito, pois estavam tão entregues à suas loucuras que eram alheias a minha passagem.

Já no meio do caminho, pude notar com mais cuidado as lacerações abertas nas peles sedosas daquelas belas mulheres. Seu sangue turvava a água, garantindo-lhe uma tonalidade vinho. Fiquei estático observando o novo tom serpentear pelo azul, e quando dei por mim, praticamente todo o local estava confinado no sangue daquelas fêmeas. Escapei o mais rápido que pude, antes que me fosse roubada toda a visibilidade, mas não antes que o gosto adocicado daquela mistura deslizasse por minha garganta. Deixei os gritos e declarações para trás e continuei nadando pelo segundo andar.

Segui em direção à cela de papai. Forçando a porta, entrei no local. Para minha surpresa, a primeira coisa que enxerguei no cubículo fechado foi uma fogueira que insistia em queimar no centro daquele lugar inundado. As borbulhas da água fervente subiam até estourarem no teto, procurando alguma saída. Ao seu lado, um velho moribundo se equilibrava sobre um burro. O homem mantinha firme uma garrafa em sua mão, mostrando uma aparente embriaguez. Já o burro ocupava-se em pastar no canto escuro da cela. Vendo minha entrada, o homem mecanicamente se pôs sentado com sua coluna torcida e expôs suas órbitas vazias. Em seguida, abriu sua boca desdentada e uma voz cavernosa saltou de sua garganta sem que mexesse os lábios.

“1870”

Repetindo ininterruptamente, passou a imprimir cada vez mais energia em sua fala enquanto me apontava seus dedos tortos. Evitando-o, contornei a cela até que me deparei com o burro em sua refeição. Deliciando-se com o banquete, o animal comia as entranhas de papai.

No instante seguinte acordei apavorado e encharcado em suor. Cada vez acho que estou em apuros mais sérios, Fred! Preciso vê-lo o mais rápido possível!

Também precisamos falar sobre seus novos costumes. Letita comentou sobre como você vem se entregando à bebedeira. Por favor, pare com isso, irmão.

Com grande carinho,

C. D.

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24 de dezembro de 1869

E o que define o passado? Se não há lembranças, como provar que ele realmente existiu? E se essas lembranças forem adulteradas, o passado seria alheio às mudanças? Afinal, o passado é mesmo imutável? Não sei. Só sei que me arrependo por ter destroçado Augustos. Que me peno por ter posto fogo em mamãe. Que não há dia que não chore ao lembrar das crianças enforcadas. Não fosse esse diário para lembrar-me do que não é real nessas recaídas, já teria cedido à loucura. Preciso ler e reescrever cada detalhe para não perder a razão.

Hoje já sei de tudo. Com os anos e altos custos decifrei toda a paranormalidade que me rodeia. Culpo-me por não ter lembrado antes do dia em que toda essa loucura foi engatilhada. Não fosse essa demora, Frederick ainda estaria aqui. Minha imaturidade condenou-o a morte. Nunca deveria ter dividido meu fardo com ele. Sei que foi ele o responsável por jogar meu irmão no caixão. Por fazê-lo beber e vomitar, para então beber e vomitar novamente. Foi ele que o encantou com seu líquido doce e o canto de suas putas. Baco. Dionísio. Liber Pater. Todos são um, e um é todos.

Maldito o dia em que essa entidade cósmica me seduziu usando minha miséria. Eu era uma criança de apenas doze anos! Os seis xilins semanais que recebia mal davam para sustentar uma família com pai preso. Esse ser superior então me abordou. Era noite de natal. Com seu rosto multifacetado serpenteou por vários níveis da minha consciência, prometendo-me o que pedisse por um baixo preço. Sempre sonhei em ser um grande escritor, como Cervantes e Tobias Smollett, e via aí a saída para o fim de minha miséria. Quando perguntei o custo, a resposta foi apenas um “Celebre”. Ou seria “Se lembre”? Não faz diferença, já que no fim das contas um irá invariavelmente desdobrar-se no outro.

Nesses anos de penitência aprendi muito. Uma das coisas foi sobre a necessidade que essas entidades têm de serem recordadas. A lembrança é o alimento que ancora suas existências na realidade. Tão logo são esquecidos, perdem-se em meio ao nada primordial. Acho que considerando friamente, esta é uma de nossas semelhanças. Contudo, possuindo a imortalidade, batalham a todo o custo para serem lembrados e comemorados. Enquanto isso, nós podemos nos entregar ao menos exaustivo esquecimento.

Comigo este deus pagão também aprendeu sobre a alma humana. Descobriu que o medo é mais inesquecível do que o prazer. Nisso, de fato, ele foi vitorioso. Em nenhum dia de minha vida esqueci as imagens que foram postas em minha cabeça depois de ele adotar essa nova abordagem. E é pelo medo que ele vem sobrevivendo, subsistindo de migalhas de recordações arrancadas por este sentimento. Desde que suas Brumélias, as festas feitas em sua honra, foram sufocadas Natal Cristão, parasitar alguns tolos foi o que tem feito. Eu, no entanto, pretendo sepultar comigo todo este segredo. Ninguém mais servirá de alimento para esse ser faminto. Mantenho apenas esse diário contendo estes conhecimentos como a linha que me guia à saída deste dédalo insano, mas já pedi a minha companheira Ellen para que queime estas páginas tão logo eu deixe de respirar.

Esta noite dormirei com a certeza de que o reencontrarei, assim como ocorre em todo natal. Nestas poucas horas antes do sol se por, sempre invejo Scrooge. Fui solidário quando criei suas assombrações.

Charles Dickens

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ps: obra ficcional inspirada em algumas passagens do autor, não havendo relação direta com a real personalidade ou conduta do mesmo.