Além do Lago

Naquele meu sonho, ou pesadelo, alguém tocava insistentemente minha mão, agarrava com irritante força meu braço, mas eu não podia identificar quem ou o que tanto me importunava; tudo o que via era uma profunda escuridão tenebrosa. Um medo inclassificável invadia-me nesses instantes, e logo acordava-me na plenitude do pavor. Tal pesadelo ocorreu há mais de um ano, por algumas vezes consecutivas. No entanto, ele retornou nesta recente semana, com uma singular modificação: eu pude distinguir o ser que me perturbava. Na verdade, além de poder ver aquele ser, acordei-me no exato momento em que ele segurava meu braço. Aliás, parece-me realmente que o indivíduo desejava despertar-me e obteve sucesso. Ergui-me assustado, e para meu superior assombro, ali estava ele presente, creio, em carne e osso diante de meus olhos atônitos. Talvez julguem os leitores ser inacreditável que tudo fosse realidade e não tão-somente um sonho, mas inacreditável mesmo será quando eu disser que tal ser possuía uma fisionomia, uma aparência física idêntica à minha, melhor dizendo, quase idêntica...

Seríamos absolutamente iguais, não fosse aquele homem estranho possuidor de cabelos inteiramente cinzas, olhos de um vivo lilás, pele esverdeada, de um verde escuro, trajando vestimentas, no mínimo, esquisitas. Levantei-me e o fitei detidamente, para em seguida questionar-lhe: “quem és, o que fazes aqui, o que queres de mim?”, isto é, essas coisas óbvias e inevitáveis. Disse-me que se chamava Rednax, que não pertencia a nosso mundo e que desejava intensamente mostrar-me algo, enquanto eu percebia que ele apresentava sua voz também como idêntica à minha, tendo a mesma altura, apenas possuindo uma diferente e estranha gesticulação e expressões facial e corporal. Não é necessário que o diga o quanto estava intrigado com tão absurdo acontecimento, porém, não sentia mais medo, mas uma angustiante expectativa. Curiosamente, Rednax transmitia-me uma inexplicável, todavia sincera, sensação de segurança.

Pediu que eu o acompanhasse, o que fiz sem hesitar. Saímos pela noite fria, caminhamos por várias horas, até o amanhecer, sem qualquer intervalo para descanso. Minha exaustão era completa, ainda mais devido ao bizarro silêncio em que nos mantínhamos, pois meu sósia, se assim posso chamá-lo, não pronunciou a mínima palavra, e eu também não o fiz. Não sei o que me levou a acompanhá-lo. Nosso percurso atravessava a mata que tem seu princípio acerca de 1Km de minha residência. Por volta das 9h da manhã, atingimos o ponto que Rednax intencionava, estando eu absolutamente exaurido fisicamente. Tal ponto era o açude que fica no centro da mata. Aquele açude sempre fora estranho, insuflador de vagos temores... Muitas pessoas, ao longo de décadas, haviam desaparecido em suas águas, mortas afogadas, provavelmente, mas seus corpos jamais foram encontrados. Calcula-se que seja muito profundo, embora nunca ninguém tenha se arriscado a medir sua profundidade. Lembro-me do relato de um tio meu, pescador, onde conta que ao aproximar-se do referido lago, escutou um terrível barulho dentro do mato, um galope alucinado. Avistou, então, um imenso touro de pelagem avermelhada que surgiu como um raio dentre as árvores e se atirou furioso nas águas paradas do açude, desaparecendo como que por encanto. Meu tio garante que não viu o touro nadar, ou boiar, ou sair do lago, não escutou nenhum som após o animal ter se jogado nas águas que permaneceram imperturbáveis. Então, aterrado, partiu como um louco e nunca mais voltou ao local. Meu tio acredita fielmente que aquele touro era uma alma penada ou algo semelhante.

Olhando, em meu cansaço, para aquelas águas plácidas e escuras, canhestramente estagnadas, acreditei que ele estava com a razão. Voltando-me para Rednax e enfim quebrando o inquietante silêncio, perguntei-lhe por que havia me trazido àquele lugar, afinal, quais seriam suas obscuras intenções... Respondeu-me que logo eu saberia, porém, antes, eu deveria entrar no lago. É lógico que me recusei irremovivelmente a realizar tal loucura, que seria um suicídio. Então, com fria e extrema tranqüilidade, o esquisito ser retirou de suas roupas algo como um frasco e muito rapidamente borrifou um líquido perfumado em meu rosto. Devo ter desmaiado, aquele líquido deveria ser um forte sonífero, pois quando voltei à consciência, encontrei-me em um outro lugar inteiramente desconhecido, minhas roupas estavam encharcadas, mas estranhamente não sentia frio, embora estivéssemos em um dia de baixa temperatura, ao menos no local que antes me encontrava. Antes que eu tomasse a iniciativa de falar, meu esverdeado sósia, pôs-se a explicar que não mais estávamos em meu mundo, mas no seu, que se situava em uma outra dimensão paralela à nossa tridimensional, e que iríamos caminhar por aquele território para mim ignoto com o propósito de fazer-me conhecer certas coisas... Disse-me também que não me preocupasse com minhas roupas, pois em breve estariam completamente secas, o que, de fato, eu já percebia.

Procedemos, assim, ao nosso bizarro passeio, e minha primeira forte impressão foi com relação ao céu da região, de um intenso azul brilhante, salpicado de pontos de grande circunferência, como vórtices de luzes coloridas, que pareciam ser entradas para... outros mundos ou dimensões...sim, creio que definitivamente o eram... Com certa freqüência, via algumas coisas que não sabia identificar passando em flutuações sobre nós, a longa distância. Rednax esclareceu que alguns eram habitantes de seu mundo em cápsulas de proteção para flutuar a grandes alturas, e outros eram animais voadores. Em pensamento, supus que fossem aves, mas meu sósia, dando a entender que podia ler o que eu pensava, retorquiu que “alguns eram, outros não, de acordo com nosso entendimento na Terra”. Confesso que, sem saber por que, gelei ao escutar essas palavras... Minha estranha sensação seguinte ocorreu quando percebi que pisava em terreno leve demais e, ao olhar para baixo, vi que na verdade não tocava o chão, mas flutuava a alguns centímetros acima dele, o mesmo se dando com Rednax. Este falou-me que era assim que seu povo se locomovia. Devo ainda dizer que o mencionado chão era totalmente recoberto por uma espessa grama bicolor, verde e violeta, de aspecto um tanto anormal. Mas o que era normal naquele ambiente absurdo? Aliás, outra anomalia era no que diz respeito à temperatura, pois, e não sei como explicar, não era nem frio nem quente, nem morno, nem nada... era como se não houvesse temperatura alguma!

Mirando detidamente ao meu redor, verifiquei que toda a região era cercada por elevadíssimas montanhas, mas seus cumes não eram pontiagudos, porém arredondados, e não se apresentavam cobertos de neve, mas por algo de vívida cor amarela. Rednax explicou-me que a cor amarela advinha das flores que cobriam todas as montanhas de seu mundo, e que a cor poderia variar, dependendo da época do ano. As flores eram substituídas naturalmente durante os meses, apresentando diversas colorações. Após flutuarmos por mais alguns instantes, avistei o que pensei serem árvores. Digo “pensei”, porque consistiam em uma “construção” absolutamente estranha. A começar pelos troncos, que ou eram perfeitamente retos, sem possuir a mínima saliência ou irregularidade, ou então artisticamente espiralados, ou ainda em um impressionante formato de colar, com esferas de uma precisão impecável. Os galhos daquelas árvores se estendiam vertical ou horizontalmente até distâncias incríveis, de maneira assombrosamente harmoniosa e simétrica. As folhas de uma mesma árvore podiam ser totalmente diferentes. Umas eram imensas e verdes, outras ovaladas e azuis, outras ainda de bordas recortadas e vermelhas, oferecendo espetáculo de indizível beleza. E elas ainda se moviam, mesmo que não houvesse a mínima brisa.

Flutuando um pouco mais, avistei outras árvores absurdas, e em uma delas havia uma criatura igualmente inadmissível. Parecia ser um mamífero, pois tinha pêlos pretos e azuis, muito compridos, apresentando focinho curto e rosáceo. Seu rabo era imenso e prênsil como o dos macacos. Seus olhos, enormes e triangulares, deixando a impressão de modificar constantemente sua cor. As orelhas eram curtas e quadradas, possuía pés e garras como as das aves, que o prendiam firmemente no galho da árvore, mas tais pés não eram dois, porém quatro. Quando perguntei a Rednax que animal era aquele, o bicho abriu a boca interiormente avermelhada e cantou, cantou de forma magnífica e estranha, muito estranha. Ao cantar, acreditei que o animal pronunciou seu nome, o que foi confirmado por Rednax. Era algo como “Snegasaip”. Segundo meu sósia, ele aprendera a música com um famoso compositor de seu povo.

Absolutamente assombrado com tudo, dirigi-me a meu acompanhante e questionei-lhe onde estariam seus conterrâneos, onde viveriam. Disse-me que estavam bem próximos a nós, em suas casas invisíveis. Acrescentou ainda que tornaram suas moradias invisíveis porque não me conheciam e tinham receio de que eu pudesse ser um ente hostil, mas que se encontravam ao nosso redor, observando-nos secretamente. Em seguida, disse a Rednax que tudo isso era um completo absurdo, que casas invisíveis, mamíferos cantores, caminhar flutuando, árvores perfeitamente simétricas e espetaculares, montanhas arredondadas, céu com radiantes vórtices de luz colorida não podiam existir, que eram todos retumbantes absurdos inadmissíveis, eu deveria estar sonhando! Após me pronunciar, foram estas as exatas palavras do meu inaceitável sósia:

- Sim, compreendo que considere meu mundo como um pleno absurdo, é perfeitamente normal teu comportamento, estranho seria o contrário. Entretanto, devo dizer que te comportaste da mesma forma que meu povo, quando há quase 200 anos, eu revelei a ele minha grande descoberta, qual seja, a existência do teu mundo, a Terra dos humanos, ao descobrir uma passagem interdimensional em um pequeno lago oculto no interior da Floresta dos Sovorcs. Visitei invisível teu planeta, infiltrei-me, conhecendo-os satisfatoriamente, e retornei para narrar meu feito. E qual a reação de minha gente? De absoluta incredulidade e ceticismo, todos consideraram um inaceitável absurdo, inadmissíveis invenções existir um mundo como o teu, onde há mamíferos que rugem e não cantam, onde há aves com penas multicoloridas que assoviam divinamente, onde existem árvores que não se movem e são quase somente verdes, onde existem montanhas pontiagudas e cobertas de neve, onde os habitantes vivem presos ao solo, um solo que em imensas extensões é desprovido de grama, coberto somente por terra, pedras ou areia, enfim, todas essas coisas foram julgadas como integralmente absurdas por todos a que relatei; mas o que fez com que rissem desvairados de mim, acusando-me de louco, idiota ou simplesmente mentiroso, inventor de fantasias exageradas, foi quando afirmei categoricamente que os habitantes ditos racionais e inteligentes do teu mundo esforçam-se sistematicamente para devastar e destruir o próprio planeta em que vivem. Nisso, os anterkazianos, ou seja, o meu povo, definitivamente se recusaram a acreditar, mas agora, olhando-te, em breve estarão aqui para comprovar contigo mesmo o maior absurdo possível, e tu deverás corroborar o que afirmei desacreditado: os humanos são os imbecis que aniquilam o próprio lugar que vivem...

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 22/10/2006
Código do texto: T270860