Pintando com sentimento

Valéria olhava para a pintura a sua frente. Era uma pintura especial. Segundo o artista, era a essência da arte. Segundo o artista, ela deveria estar sorrindo contente.

Mas Valéria não estava sorrindo.

Ela era uma daquelas garotas de sorriso fácil, cujos lábios se esticam e se abrem com facilidade para receber um recém-chegado, um amigo, um elogio ou simplesmente para devolver o sorriso de outrem. Era daquelas pessoas que conversam com facilidade com quem está a sua volta. Foi assim que conhecera aquele artista.

Estava indelével na memória. Era uma lembrança que não despregaria mais de seu coração ou de seus olhos, muito menos de sua memória. Foi em uma entrevista de emprego, quando segurava aflita o currículo e treinava o que estava para dizer quando ele sentou a seu lado. A sala estava cheia e o artista ficou logo perto dela com um sorriso cativante que Valéria devolveu com facilidade. Ambos estavam nervosos, porém isso não os retraiu. Valeira sempre falava mais quando estava ansiosa.

Contou sobre a necessidade do emprego, sobre o que gostava e o que fazia. Sorriu em cada momento e fez um grande elogio quando ele lhe deu um cartão afirmando que era um artista plástico.

Agora ela via a pintura a sua frente e se entristecia. Não havia necessidade de aquilo ter ocorrido. Sentia-se fraca e zonza ao olhar para frente, quase baixando a cabeça. Ele com certeza gostaria que ela estivesse sorrindo.

Mas Valéria não estava sorrindo.

Dias depois da entrevista, ele telefonou para ela. Nenhum dos dois havia conseguido o emprego e riram muito disso. Ela achou muito romântico o esforço dele em encontrá-la. Ele olhava de soslaio o telefone dela no currículo sobre a mesa, prestando mais atenção nisso do que nas perguntas que lhe eram feitas.

Riram muito da pessoa que fora escolhida. Consideravam-se melhores e o artista fez tantas piadas que Valéria não conseguiu conter as risadas. A fala dele a deliciava e os dois iam se aproximando.

Agora ela via o quanto a proximidade poderia doer. Ela perdera tudo. Olhava para o quadro com a visão embaçada e percebia que perdera tudo. Deveria estar sorrindo para parar de sofrer.

Mas Valéria não estava sorrindo.

Três dias depois da entrevista chegaram flores para ela. Percebeu que havia um interesse a mais. Um interesse muito maior, visto que ela nunca lhe dera o endereço. De repente, começou a pensar que o romantismo estava passando do limite.

A certeza veio quando o viu no ponto de ônibus perto de casa, aquele que ela usava todos os dias. Assustada, trocou de ponto. Então as ligações aumentaram. Ele perguntava onde ela estava, porque não lhe retornava e não aparecia mais no mesmo ponto de ônibus.

Ela mudou de telefone. O erro foi não ter mudado de endereço. A última vez que viu sua casa foi nove dias depois da entrevista. O mundo desapareceu enquanto estava trancando a porta. Quando acordou, estava amarrada e a cabeça doía.

Não conseguiu identificar onde estava. Parecia um ateliê, com muitos quadros em volta e almofadas espalhadas. O artista trabalhava em uma tela logo à frente dela. Valéria tentou se mexer e viu que estava paralisada. Estava amarrada em uma cadeira que dava forma a seu corpo, com os braços esticados e a cabeça forçando seu olhar para cima. O artista saudou seu despertar com um sorriso e depois andou até ela.

- O desenho básico está pronto. Agora faltam os detalhes em vermelho – disse ele, segurando um pequeno pote. Pegou uma faca e fez um corte pequeno no pulso dela. O sangue escorreu farto. Ela gemeu de dor e agonia. Ele encheu o pote, depois fez-lhe um curativo.

Voltou a pintar o quadro. Dava longas pinceladas. Valéria tentou se soltar, apertou as mãos e chorou. Cravou os dedos nas palmas, como sempre fazia e então sentiu que havia algo errado. Mexeu com os olhos. Não podia movimentar a cabeça, mas conseguia captar uma das mãos pelo canto dos olhos. Gritou desesperada quando notou o erro. Faltava-lhe um dedo. O indicador desaparecera.

Isso acontecera enquanto estivera dormindo. Nem percebera quando o dedo fora arrancado. Com os olhos úmidos, ela percebeu qual instrumento o artista usava para seus retoques. Era seu dedo. O rigor mortis providenciara um instrumento de trabalho peculiar. Mal podia acreditar que aquele pedaço de carne e ossos inchado e escurecido era dela. Justamente parte de seu corpo era misturada no seu próprio sangue para o desenho de sua imagem.

- Sorria – dizia o artista.

Mas Valéria não sorria.

Então ele se aproximava sorridente e batia em seu rosto.

- Adoro esse vermelho de suas bochechas.

Batia nas duas bochechas.

- Por favor – ela implorou.

Ele coletou mais sangue e ela se sentiu zonza.

- Calma. Está acabando. Você estará imortalizada.

De fato ele acabou logo com o sangue e depois voltou com chicletes. Ela estranhou.

- Mastigue.

Ela obedeceu após ser esbofeteada. Ele a olhou mais um pouco e depois rasgou sua roupa. Ela continuou mastigando.

Afastou-se dois passos para apreciá-la nua. Tinha uma das mãos no queixo, enquanto o olhar de pintor analisava a modelo.

- Não. Pode-se desenhar o contorno dos seios, mas desenhar os mamilos torna a obra pornográfica.

Foi até uma mesa próxima e depois voltou. Valéria ainda mascava o chicletes e não notou o que ele tinha em mãos. Sentiu um ardor nos seios. Sentiu algo a cortando. Gritou desesperada e engasgou-se com o chicletes. Grito e tosse se misturaram até que ela cuspiu a goma de mascar e começou a soluçar desesperada. O artista se levantou com algo em mãos. Era seu mamilo esquerdo. Ela chorou incrédula.

- Vou guardar para usar depois – disse ele, colocando o pedaço de carne no bolso. Mostrou a lâmina tipo gilete que usava para a extração e abaixou-se para cuidar do outro. Cortou aos poucos. Com cortes leves e dolorosos enquanto assobiava acompanhando os gritos dela.

Guardou a nova extração no bolso e voltou para mesa. Agora tinha um longo e fino cano. A ponta era cortada de modo que parecia uma agulha muito grande, quase uma ponta de lança. Talvez uma miniatura de uma lança.

- Preciso de ácido para tratar uma última cor.

Enfiou o cano na barriga dela com precisão. Logo algo começou a pingar dele e ele colheu as gotas preciosas que usaria. Só usava materiais que Deus lhe dera. Só a criação divina poderia ser usada em sua arte. Nenhum tom, nenhuma cor que o corpo humano não lhe desse não merecia ser usada.

Misturou o sangue e o ácido e conseguiu a arroxeada que queria. Então pintou mais um pouco. Só voltou para Valéria quando precisava terminar sua arte. Foi com calma que usou um bisturi para abrir os olhos dela. Começou o corte pela pálpebra inferior para que sangue e o humor vítreo que preenchiam o olho vazassem. O aspecto do sangue diluído naquela massa semilíquida era essencial para desenhar os olhos. Riu por considerar aquela sua grande obsessão.

Valéria sentiu as forças se acabarem. A última sensação que teve foi dele esticando seus lábios e os prendendo com alguma coisa. Morreria sorrindo e o rigor mortes trataria de manter aquele sorriso até ele terminar o trabalho. Quando acabasse, a pele dela serviria para fazer uma tela. Ele aproveitava tudo o que Deus lhe fornecia para fazer arte.

(Esse conto é inspirado em uma história que a Renata Viveiros me contou. Já existiu mesmo um artista plástico que persegue mulheres. Agora a arte dele aí eu inventei.)