A Árvore da Loucura ou O Pampa Futurístico

Inverno. Era inverno e eu caminhava tranqüilo por aquela coxilha incomum. Sim, era inverno, porque sou um fiel amante do frio. O calor corrompe, é inimigo da Arte, inimigo das manifestações da profundidade humana, tão raras em nossos dias de efeito-estufa. O calor compele o homem a entronizar sua superficialidade. Detesto o verão. Sou amigo da névoa, da densa cerração, da chuva gélida, da garoa infrene, dos dias curtos, das longas noites sem mosquitos. Amo o cortante vento Minuano, os campos brancos, cobertos de geada, ainda melhor se for de neve. Sim, também louvo o sol (tanto que era esplendidamente ensolarado o dia de meu passeio campestre), mas o sol de inverno, que aquece a alma sem queimar o corpo. O alto sol que ilumina sem causar o suor. Isso é belíssimo. Eu te bendigo inverno e te rendo homenagens! Desgraçadamente, os ditos “progressos da ciência”, com suas desastrosas alterações climáticas vêm gradativamente reduzindo a intensidade dos invernos gaúchos. Por isso, rio-me daqueles que louvam esta falsa ciência degradante: imbecis que veneram sua própria destruição.

Mas, como dizia, eu caminhava pela coxilha incomum. Digo incomum, porque ali o vento gritava com mais ânsias, e seus espíritos me sussurravam aos ouvidos. Porque ali o campo era mais verde e macio, e cada gramínea, cada flor, cada bem-me-quer, cada carqueja, não era tão-somente, como imaginam os ignorantes do cego e estéril intelectualismo, uma representação estúpida de amontoados de células vegetais, mas nos transmitiam o real significado da vida que palpita em cada ser, física e espiritualmente, de acordo com a sábia sentença de Hermes Trismegisto: “Assim como é acima, é abaixo”, verdade muito além de ordinárias cogitações mentais. Verdade esta que explicaria muitas das aparentes “contradições” entre os conhecimentos científico e espiritual, que, em realidade, não constituem paradoxos, mas complementações que os racionalistas não enxergam, e é uma das causas da desgraça de nossa civilização. Porque ali o canto da infinidade de pássaros, que habitavam as fantásticas matas que circundavam tão nobre coxilha, não eram exclusivamente vibrações de cordas vocais, mas notas sublimes de uma sinfonia insondável, intraduzível, que permeia todo o pampa de um mistério muito além de vãos racionalismos arbitrários, que, em seus fanatismos pseudo-científicos, negam a alma da natureza. Compreendo que o façam, porque, talvez, jamais tiveram esta experiência que relato.

E, certamente, não presenciaram aquela árvore magnífica e imponente que assombrava pelo porte majestoso e pelo aspecto de venerável antigüidade. Além do mais, aquela imensa paineira parecia ter olhos, eu sentia-me observado, sentia que seus longos galhos eram como braços nos indicando o infinito, que suas folhas eram hieróglifos, cada uma contendo segredos intraduzíveis da história daquele mágico local de nossas terras. Havia uma gravidade no aspecto da árvore, uma gravidade solene e perturbadora, que, por mais que os senhores sabichões intentem me convencer de que sou um iludido, tenho absoluta certeza que a colossal planta nos falava de imemoriais arcanos do universo.

Era manhã quando cheguei à coxilha. O dia era de sol, em um céu comovedoramente azul. Lembro-me que dois quero-queros pairavam inquietos sobre mim, anunciando minha presença, talvez indesejável, como toda presença humana, geralmente maléfica. A notável paineira situava-se exatamente no alto da coxilha, e pude vislumbrar em seus galhos incontáveis ninhos de pássaros, sendo que de alguns provinha um canto inquietantemente misterioso... Maravilhado com tão esplêndida visão, sentei-me próximo à árvore, para humildemente observar sua divina grandiosidade. Sou um homem de exageros; por isso, e por outros motivos, digo que permaneci sentado contemplando a paineira da manhã até a noite. Sim, o dia inteiro, ali eu estava, absorto, totalmente alheio ao mundo exterior, somente o que me chamava atenção era a gigantesca paineira, transmitindo uma sensação de enigmática ancestralidade. E posso afirmar que isso invadiu minha psique de forma avassaladora, fazendo com que me identificasse integralmente com sua majestade, beleza e ar sobrenatural.

Durante todo o dia, não sei dizer se tive algum tipo de companhia, se qualquer ser vivo, homem ou animal, esteve ou cruzou pelo local, tamanho era meu estado de quase hipnose pela árvore. Não sei explicar o porquê de tão profunda identificação, e nem tenho como propósito esclarecê-la. No entanto, devo dizer que, se quase nada percebia em meu exterior, em meu mundo interno, em meus pensamentos e emoções fervilhavam turbilhões de idéias arquetípicas, de sentimentos intensos e inexplicáveis, de dramáticas reflexões existenciais tão únicas e transcendentes que jamais poderia descrevê-las cabalmente. Tudo o que posso afirmar é que tais pensamentos e sentimentos estavam relacionados a tudo o que havia vivenciado durante todo o percurso de minha vida, como se eu próprio estivesse analisando e julgando meus atos, o que fiz e deixei de fazer, meus arrependimentos e remorsos, meus triunfos e fracassos, meus amores realizados e não-realizados, meus gostos, meu comportamento para com os outros e, principalmente, o sentido que encontrei em tudo isso, como encarei minha existência. Não cabe aqui relatar a que conclusões cheguei, mas vale dizer que a árvore ligava-se a tudo isso, era como se ela despertasse tal exame de consciência, como uma mãe que exorta um filho.

Contudo, a noite chegou, e percebi que meu estado de desligamento exterior cessara, bem como o fervilhar psíquico. Porém, meu fascínio pela árvore permanecia, agora de uma forma ainda mais estranha. A escuridão já era completa, e a lua crescente surgira vigorosa ao longe; próximo à mata, ouvia o cricrilar dos grilos, os lúgubres concertos das aves noturnas, o coaxar harmônico dos sapos e rãs e, também, e isso é o que ainda me assombra, um som insólito oriundo ... da árvore. Um som como que emitido por ela mesma, algo como murmúrios graves, guturais, mas ininteligíveis. E tais murmúrios invadiam minha mente de forma perturbadora, sugestionando-me, impelindo-me a ir em direção à paineira. Primeiramente tentei resistir ao impulso, mas foi inútil. Levantei-me, tomado por um desejo insano de correr até o enorme tronco da árvore, em uma velocidade vertiginosa, e me esfacelar contra ele. E eu o fiz, parti desvairado em desabalada carreira e, no exato instante em que me chocaria com a árvore, olhei ao alto e vi pousar uma coruja descomunal que me fitou de maneira intensa, com olhos que literalmente lançavam chamas como fogos-fátuos.

Devo, então, dizer, que o choque com o tronco não ocorreu, mas, sem nenhuma causa aparente, vi-me em um outro lugar, muito diferente da coxilha onde me encontrava. Ainda era noite, porém o local agora era um jardim de aspecto antigo, que circundava um casarão tão arcaico quanto o jardim. Havia luzes acesas dentro da casa, e percebi que uma das janelas se encontrava aberta. Árvores enormes, não tanto quanto a paineira, circundavam o sobrado, típico do século XIX, e a atmosfera do ambiente não era normal. Havia algo de inquietante, de sobrenatural; um clima onírico, denso, carregado e vaporoso, onde minha alma parecia flutuar tomada de magia insana. Então, principiei a ouvir um som familiar ao piano... Identifiquei-o: era a balada nº1 de Chopin, divinamente executada. Comovido com aquele som apaixonado, transcendente, melancólico e inebriado por aquela atmosfera de sonhos, dirigi-me como um louco até a janela. Pude, assim, divisar um ambiente de características muito antigas, com móveis seculares e magistralmente decorado com clássicas pinturas e imagens de anjos. Nada de anormal, no entanto, a não ser pelo clima sobre-humano. A música prosseguia. Nesse instante, alguém abriu uma porta à minha direita. Era uma senhora alta e levemente morena, aparentando pouco mais de 40 anos, bastante simpática e com ar de enigmática tranqüilidade. Sem perguntas ou apresentações, disse-me:

- Olá, vem comigo, vem! Estávamos te esperando, que bom que vieste logo. Vou te apresentar à minha filha.

Sem ter a mínima idéia do que acontecia, atônito, segui a esquisita mulher. Então, ela levou-me até o aposento de onde vinha a música. Era sua filha quem executava a balada. A menina, que devia ter no máximo 15 anos, interrompeu a música e levantou-se. Possuía um aspecto pálido e angelical, belíssima, com olhos claros e longos cabelos negros, trajando um vestido de época. Segurou suavemente minha mão e disse-me:

- Como vais? Meu nome é Crislana. Mas não conversaremos agora. Agora tu deves voltar a teu mundo. Após aquela porta, há um caminho que te levará até a Grande Árvore por onde entraste. Vai e vê o que aconteceu.

Obedeci e trilhei o caminho misterioso, do qual nada falo. Ao chegar ao fim, percebi uma outra porta. Ao abri-la, pude contemplar aterrado o que julguei ser a coxilha onde estivera. Meu Deus! Quanto tempo havia passado? Meses? Anos? Sim porque ali já não estava mais a grande paineira, mas apenas um pedaço do seu tronco. Ela fora cortada. Também não havia mais mata alguma nas imediações. Aliás, nem o campo existia. Tudo fora destruído para dar lugar ao “progresso”, ao “desenvolvimento” das populações. Agora eu só avistava uma interminável lavoura de soja. De soja transgênica. Posteriormente fiquei sabendo que a lavoura foi completamente devastada por uma seca infernal. Era o que um dia foi o pampa, era o seu destino inexorável... Se voltei para o casarão de Crislana? Voltei. Se tudo não passou de uma fantasia, valeu muito mais à pena que a “realidade”. E, no fim das contas, o que é a realidade? É o campo devastado? A mata aniquilada? Os bichos massacrados? O fim do pampa? O fim do gaúcho? O fim, aliás, de toda a humanidade?

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 31/10/2006
Código do texto: T278049