O Bedel de Passo dos Ferreiros

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Uma chuva de pétalas de rosas estilhaçadas cai e cobre meu corpo de gotículas de sangue. Ah! As fogueiras estão ardendo lá embaixo. As fogueiras me fazem tremer. Dirijo meu vôo para longe da ardência das chamas. O Xamã estremece sentindo minha presença. As labaredas lhe oferecem abrigo e elas alimentam seu corpo. Ele dança energicamente a me afastar. Saio de perto das chamas e me encaminho para a mata. Meu cavalo alado de sombra me aguarda na escuridão. Reconhece quando me aproximo ficando em pé nas patas traseiras e dá um relincho de boas vindas. Monto e parto em direção a uma antiga cidade não muito distante dali. A noite continua morna e ao longe o marco chamado vulgarmente de Portão da Vila, um amontoado de pedras que lembram um gigantesco pássaro aguarda minha passagem. Estou quase chegando. A cidade vibra luzes elétricas; como está diferente agora. Não passava de um posto de trocas de cavalos dos tropeiros e viajantes. A maioria das casas era feita de taipa e cobertas de sapê. Muitas coisas se desenrolaram desde então. Muitas vidas. Quando a cidade cresceu mais um pouco um tremor de terra soterrou a antiga igreja. Uma parte das casas já de alvenaria e alguns dos velhos monumentos, como o antigo Passo dos Ferreiros, sumiu numa fenda aberta na terra. Reconstruída praticamente se iguala a capital, se não é mais importante. Continuo meu vôo na noite. Agora estou chegando perto do meu objetivo. Vôo mais baixo e deixo o cavalo preso numa das arvores do pequeno bosque em frente a uma rua de casas de talhe elegante, dois andares, ajardinadas e cheias de luz. Na primeira casa, uma criança e sua governanta olham a rua numa janela de segundo andar. A criança me vê e chora, aponta algo que a governanta não vê, e é levada para dentro do que presumo ser seu quarto. O silencio volta. A rua vez por outra é arranhada pelas folhas sopradas pelo vento. Mais a frente, no próximo quarteirão eis o que procuro. Uma casa iluminada a meia luz atrás de um muro de pedras. Atravesso o jardim e olho o reflexo tremulante da lua na água da piscina. Chego até a porta e me encaminho à janela. Vejo um casal sentado a se mirar, trocando luz no olhar e juras de amor. Abraçados beijam-se, quando de repente o cachorro late e vem até a janela; quando me vê volta por onde veio com o rabo baixo, mudo, ainda se vira para trás ao mesmo tempo que o gato arrepia o pelo e sai correndo para dentro da casa. O casal sorri e chega até a janela, não me vêem aqui em frente a eles. Até rio alto e eles decidem então abrir um dos vidros e deixar o vento entrar na sala a meia luz. Voltam a se abraçar, quando ele diz a ela baixinho que irá buscar algo para beberem na cozinha. Ele sai e ela se senta no sofá, ligando um abajur. O homem volta sorridente, está na entrada da sala e vem com duas taças nas mãos. É neste momento que decido invadir a cabeça dela, algo muda em sua expressão e o homem em frente também sente a mudança. Agora, ela é minha inteiramente, eu no corpo dela pego uma das taças, enquanto o homem olha inquisitoriamente e tenta abraçá-la. Num segundo quebro a taça e enfio o vidro afiado no coração do homem, ele estremece e eu me afasto, saindo do corpo da mulher que se contorce. Por um instante ela olha intrigada a taça quebrada em sua mão ensangüentada e o corpo ainda morno do homem. Cai em gargalhada ainda possuída por mim e vai até a cozinha de onde traz uma faca, abre o tórax do homem e retira o coração. Dança agarrada ao coração uma dança debochada. Meu corpo agora assimila a sombra do corpo do homem, já tenho sombra, sorrio satisfeito. Em breve terei um corpo. A mulher me vê caindo em si e solta um grito que faz acender as luzes do quarteirão. Quando saio vejo carros chegando com luzes azuis e vermelhas. Daí a umas ruas há uma casa, onde filha e mãe jogam xadrez. A mãe me vê, acende uma vela fazendo uma prece. Aonde há fogo não me aproximo, coisa rara no meio das luzes elétricas, além do mais em breve meu corpo se reconstituirá e serei eu mesmo de novo, o antigo Bedel de Passos dos Ferreiros.

Obs. Esse conto valeu um segundo lugar na comunidade +Historias e Contos de Terror+ do Orkut

angela nadjaberg ceschim oiticica
Enviado por angela nadjaberg ceschim oiticica em 02/03/2011
Código do texto: T2825183
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