Difícil Missão

Ano de 1965. Valmir e Adahir participavam do Curso de Formação de Soldados do 2º Batalhão, sediado em Ilhéus.

Numa sexta feira, após uma semana de estafantes exercícios, todos os alunos do curso foram dispensados da instrução, devendo retornar ao quartel no domingo à noite. Na segunda feira às seis da manhã, já deveriam estar em formação na parada matinal para o início da Instrução Militar de Ordem Unida. Exceto eles dois que, por opção própria, decidiram permanecer aquartelados, invés de viajar até as cidades de origem que ficavam distantes.

No domingo, ao cair da tarde, após retornar da belíssima e paradisíaca praia de Barra do Itaípe - localizada a uns 500 metros do batalhão, descansavam no alojamento e faziam planos para sair à noite a gatear no bairro do Malhado, quando foram alertados pela sentinela de plantão.

- Colegas, aí vem chumbo grosso!

- De que o colega está falando? – indagou Valmir.

- Está vindo para cá o Sargento de Dia. Sinal de boa coisa não é.

- Sentinela, nós vamos nos esconder nos fundos do alojamento e você fala que - além de você, não há mais ninguém aqui - propôs Adahir.

Com a anuência da sentinela os dois se afastaram rapidamente, indo se esconder. Ao se aproximar da Sentinela, cabo Manoel arvorado a Sargento de Dia indagou:

- Quem está no alojamento além de você?

- Cabo, me encontro sozinho – respondeu.

- Sentinela, você está faltando com a verdade. De lá da esquina da casa do comando, percebi mais alguém aqui além de você. Ou você diz quem estava aqui e se escondeu ou, ao término do seu quarto de serviço, considere-se detido - ameaçou o superior.

Acossado e sem qualquer alternativa para convencer o cabo Manoel. A sentinela entregou de bandeja os dois recrutas fujões.

- Realmente senhor cabo, os recrutas Valmir e Adahir estavam aqui e se esconderam tão logo o avistaram vindo para cá.

- Pois transmita a eles que assim que retornarem do esconderijo se apresentem a mim no Corpo da Guarda, e sem demora. Caso contrário, podem se considerar detidos desde já - ameaçou o Sargento de Dia.

Depois de mais ou menos meia hora, ao perceber que o cabo Manoel havia ido embora dali, os dois fujões retornaram ao alojamento com caras de meninos traquinas apanhados com a boca na botija.

- E aí sentinela, qual foi o chumbo grosso? - indagaram os recrutas.

- O Sargento de Dia não adiantou qual o motivo da vinda até aqui. Eu falei pra ele que não havia mais ninguém além de mim, mas ele não caiu na minha conversa. Disse que quando apontou na esquina da Casa do Comando percebeu mais recrutas além de mim e ameaçou-me de detenção caso eu não revelasse os nomes. Não tive alternativa, a não ser dar o nome de vocês dois. Ele mandou avisar que se vocês não se apresentarem com brevidade a ele lá no Corpo da Guarda, já podem se considerar detidos e impedidos de sair do quartel.

- Então foi assim? – interrogou Valmir.

– Foi - respondeu a sentinela.

Após confabular e meditar durante uns 20 minutos, os dois chegaram a sensata conclusão: era melhor se apresentar ao Sargento de Dia fosse qual fosse a missão a cumprir, do que ficar detidos e ter a ficha policial suja. Ademais, a recusa seria considerada uma falta gravíssima, prevista no regulamento militar e, conforme o Instrutor já lhes havia ensinado, poderia redundar em desligamento do curso por inaptidão para o serviço policial.

- Pronto senhor cabo, recrutas Valmir nº 68 e Adahir nº 9 se apresentando para saber o que o senhor deseja nos falar - apresentaram-se e permaneceram perfilados em posição de sentido até o sisudo cabo Manoel, após encará-los por alguns instantes e aplicar um belo sermão, mandar que tomassem a posição de descanso.

- Estive no alojamento e a sentinela me disse que vocês dois “caparam o gato”, quando me viram vindo para cá. Tenho uma missão para vocês - disse e foi logo ao fato: Morreu um indivíduo afogado a uns dois quilômetros da praia de Barra do Itaípe, no sentido de quem vai para o distrito de Ponta do Ramo. O pescador que encontrou o corpo boiando e trouxe a notícia do afogamento, falou que, com a ajuda de outros pescadores, tirou o defunto da água, colocando-o na restinga debaixo do coqueiral. Como até agora não apareceu nenhum parente ou conhecido para reclamar o corpo e está prestes a escurecer, vocês devem ir lá montar vigília ao falecido esta noite, evitando que cachorros ou outros animais carnívoros de hábitos noturnos o devorem. Já comuniquei o fato ao delegado, a fim de proceder ao levantamento cadavérico. Mas, em vista do adiantado da hora e como a vítima se encontra no mato, creio não ser possível para hoje. Vocês vão para lá. Amanhã, assim que o delegado comparecer ao local com sua equipe retornem ao quartel.

Os fujões não contavam com missão desse quilate. Tremeram nas bases. Mas o que fazer? Era dever de ofício. Concordaram em cumpri-la. Ao saírem da presença do Sargento de Dia, Adahir perguntou:

- O que você acha Valmir?

- Agora Inês é morta - respondeu o recruta Valmir meio desanimado. Estamos no cu da cobra. Não podemos recuar. Pra ser sincero eu nunca vi um morto assim tão pertinho de mim. Certa vez um colega da escola primária - após ser picado por uma jararacuçu – subiu para o andar de cima. Não tive coragem de chegar perto do caixão no qual ele estava sendo velado. Fiquei a uma distância de dez metros. Mesmo assim passei a noite em claro, impressionado com o cadáver. Agora a vida me prega essa peça de mau gosto! - desabafou.

- Eu também nunca fui a um cemitério. Nunca vi um morto assim, cara a cara. – disse Adahir.

Foram aos preparativos para o cumprimento da missão. Muniram-se de um facão e facas e, antes de seguir para o local, passaram numa bodega próxima ao batalhão. Compraram um litro de aguardente para se anestesiar e mitigar o medo que os consumia; duas caixas de fósforo e uma caixa de velas para iluminar o local onde o cadáver estava. Assim veriam a aproximação de animais carnívoros ou de quaisquer outros intrusos ao se aproximar.

Lá chegaram ao limiar do lusco-fusco vespertino. Deram logo de cara com o falecido: um mulato forte, estatura mediana, o corpo em descomunal gigantismo. A barriga bastante avolumada parecia estar na iminência de explodir; o rosto dilacerado pela ação predadora dos crustáceos - notadamente os siris – apresentava lesões esbranquiçadas. Estas, em contraste com a cor da pele da parte ainda não comida, transmitia um aspecto horripilante. De filme de terror!

Trajava apenas uma sunga preta, razão pela qual não tinha sido até aquele momento identificado. Para quem nunca havia estado têtê à têtê com um defunto, o primeiro impacto foi de desmesurado pavor. Só mesmo a aguardente levada e bebida gole após gole durante a noite inteira serviu para que se munissem da coragem necessária, levando a cabo a difícil missão.

Cortaram algumas varas e palhas de coco e fizeram uma pequena e tosca barraca na praia. Quatro varas fincadas na areia com a cobertura de palhas a uns 15 metros do defunto onde passariam a noite em vigília, protegidos da chuva, uma vez que nuvens plúmbeas despontavam no horizonte se confundindo com as águas escuras do majestoso Atlântico, prenunciando mau tempo e fortes chuvas a desabar sobre eles naquela noite.

Também cercaram com palhas o local em volta do defunto, protegendo-o dos predadores e impedindo que a brisa constante proveniente do mar apagasse as velas. Por sorte, só uma rápida garoa os importunou. Mas por pouco tempo.

Esticaram a conversa por longo tempo. Lá para uma hora da madrugada, alquebrados pelo cansaço, começaram a ser traídos pelo sono. Matutaram o que fazer. Não podiam dormir os dois ao mesmo tempo porque os predadores poderiam aparecer e devorar o sujeito.

Não tinham mais pique para permanecer acordados pelo restante da noite. Havia ainda o receio de um só ficar acordado e a alma do morto aparecer. A custo decidiram: enquanto um dormia por uma hora, o outro permanecia em vigília. Porém um novo fato surgiu.

- Essa não! – bradou Valmir.

- O que foi colega? – perguntou Adahir, bastante assustado.

- Olha lá. Pra completar a nossa falta de sorte as velas se apagaram! E não temos sequer uma lanterna. Só este fósforo mixuruca. Veja como são as coisas colega. Deram-nos missão desta monta e não nos proveram dos meios necessários para cumpri-la. É por essas e outras que esse país nunca vai pra frente. Tudo é feito na base do jeitinho brasileiro. É tudo empurrado com a barriga. Quem quiser que se dane - esbravejou o revoltado recruta Valmir.

Por várias vezes durante a noite tiveram de acender as velas, teimosamente apagadas pelo vento.

- Colega, chegou sua vez de ficar acordado - falou Adahir.

Valmir assumiu o posto de vigília, enquanto Adahir após alguns dedos de prosa adormeceu ao seu lado.

Cerca de meia hora após o colega ter adormecido, as ondas do mar começaram a aumentar de volume e o som provocado pela precipitação destas na areia era como se reclamassem a presença de estranhos no seu reduto. Uma dessas vagas – como uma espécie de mini tsunami - deslizou areia afora e se lançou contra a tosca barraca dos recrutas, surpreendendo-os.

Valmir, sentado e bastante vigilante, ao notar a aproximação daquela imensa massa d’água, levantou-se rapidamente e gritou tentando acordar o colega. Adahir, ao que tudo indica, dormindo com o pensamento voltado para o defunto levantou-se assustadíssimo sem se dar conta de ter sido trombado por uma onda. Pensou que fosse uma alma penada, talvez o fantasma do morto. Quem sabe? Debandou a correr loucamente.

- Volta colega. Foi a onda! Pára aí colega! Não foi fantasma não!

Valmir continuou gritando tentando parar o colega, mas seus gritos a princípio foram em vão.

O recruta Adahir parecia possuir um motorzinho na bunda. Porque vá correr assim no raio que o parta. Foi alcançado a quase uns 300 metros da tosca barraca e, até aquele momento, não havia percebido o fato de estar todo molhado, tamanho o grande pavor acometido. Voltaram à missão, revezando-se na vigília o restante da noite.

O dia amanheceu bastante ensolarado. Cortaram mais umas palhas e colocaram sobre o morto, já exalando fortes odores e chamando a atenção dos urubus, que ensaiavam vôos rasantes sobre o local.

Preocupado com aquela situação, o recruta Valmir deixou o colega fazendo a vigília e se deslocou ao batalhão. Iria tomar café e entrar em contato com o Sargento de Dia, colocando-o a par da gravidade da situação e buscando saber como proceder dali em diante.

- Sargento, já não podemos mais dar conta da missão porque o morto está fedendo muito – disse o recruta. E que coisa fedorenta é carniça de gente, sargento! De agora em diante não nos responsabilizamos mais com o que ocorrer com o defunto. Já estamos a uma distância de mais de 100 metros do sujeito e o fedor continua insuportável. Os urubus já estão sobrevoando o local. Não desceram ainda porque estamos atirando pedras para afugentá-los. Onde está esse delegado para fazer logo o levantamento cadavérico daquele infeliz? Que descaso é esse, sargento? - perguntou bastante indignado o recruta Valmir.

De nada adiantaram tais ponderações. O sargento, após consultas aos superiores, voltou com a determinação de continuação da missão até segunda ordem.

Continuaram. Mas ao entardecer daquele dia, no raio de um quilômetro, não havia vivente capaz de suportar a carniça que infestava toda a área. Os banhistas sumiram como num passe de mágica. À distância, somente urubus eram vistos em grande quantidade, em vôos rasantes e pousos cadenciados no local onde a vítima do afogamento se encontrava. Faziam a festa! Os cachorros também tomavam parte no banquete.

Finalmente chegou a ordem para abandonar o serviço que, de fato, estava abandonado há tempo. O que restava do defunto continuou servindo de refeição aos predadores, sem que o delegado e sua prestimosa equipe aparecessem para o levantamento.

Na manhã do terceiro dia, aí sim, o solícito delegado e sua eficiente equipe, apareceram. Apanharam com pá o que sobrou do falecido - lama e ossos-, colocaram num caixão e levaram os restos não se sabe para onde.

Estava cumprida a missão.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 14/03/2011
Reeditado em 17/02/2016
Código do texto: T2848387
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