Em nome de um deus de amor

Acordando de um pesadelo criado com lembranças de sua semana anterior, a mulher abre os olhos com a costumeira aflição em seu peito... Olhos abertos e tudo o que vê é a escuridão que a circula, ao tentar mover-se percebe que está paralisada. Procurou evitar o medo lembrando-se de outros momentos em que despertou sem poder se mexer e tudo ficou bem. Lembrou-se do susto que pregou em sua mãe quando esta a encontrou sem respiração, imóvel, com os olhos abertos e gélida logo pela manhã, revivia com detalhes o desespero e choro de sua mãe que acreditava ter perdido sua tão querida filha, lembrou da agonia que sentiu ao ver sua mãe histérica, lembrou-se que nunca desejou tanto se mover em sua vida. Ainda podia ver a lágrima que escorreu de sua mãe sobre sua face enquanto derramava outra por seus olhos vidrados. Para não entrar em pânico mantinha em sua mente o pensamento de esperança que sempre lhe confortava nestas horas, a memória de todas as vezes em que simplesmente voltou a se mover minutos depois...

Enquanto esperava seus músculos voltarem a reagir ao seu desejo, a mulher pensava preocupada no que acreditava estar por vir. Dois dias atrás havia sido capturada pela nova e maligna igreja que estava impondo sua força ao povo pobre e doente. O rosto do homem que fingia padecer não saia de sua mente, o arrependimento que sentia por ter lhe preparado o remédio que ajudou tantas pessoas a viver melhor, o chá da serenidade que ela mesmo idealizou e que tanto bem fez as pessoas que a procuravam, agora era chamado de feitiço, ela em consequência foi denominada bruxa. Como podia imaginar que aquele homem era enviado da igreja da morte? Como poderia imaginar que fazer o bem era errado? Como poderia saber que deveria se curvar ante imagens de pessoas mortas que antes dela também fizeram o bem?

Seu corpo começa a retornar. A sensação de frio é muito intensa, a escuridão permanecia inalterada. A terrível dor sentida no pescoço indicava que ele estava dobrado a muito tempo, seu queixo encostava no peito, sentia como se estivesse de cabeça para baixo, e estava. Em seus joelhos arranhados e dobrados, sentia bater em algo que ainda não conseguia identificar, se ao menos pudesse se mover, se ao menos pudesse entender sua situação!

Aumentava a tensão em seus pensamentos ao pensar nas ameaças daqueles devotos da penitência, teria dois dias para renunciar o terrível demônio que a inspirou a criar seus medicamentos e aceitar o morto crucificado para então morrer de forma rápida, ou então, ter seu corpo mutilado por serras enferrujadas para que todos vissem o castigo imposto pelo deus da ira, que abominava as bruxas e feiticeiras.

Tentou gritar, mas, não conseguiu, sua imaginação passeava por hipóteses assustadoras, começou a acreditar que já havia morrido, acreditava que seu espírito não lembraria dos momentos que precedem a morte e tentou imaginar o que se passou... Teria morrido mutilada? Teria sido afogada? Envenenada? Esfaqueada? Criando uma imensa confusão em seus próprios pensamentos começou a imaginar que talvez não conseguisse mover seu corpo pelo fato de estar decapitada, de repente entendeu o por que da dor do pescoço, não estava dobrado e sim cortado. Ainda não podia explicar a dor em seus joelhos, e ao pensar nisto seus pés se moveram em um espasmo nervoso. Findou-se a ideia de ser uma cabeça dentro de uma caixa, mas, a confusão permanecia...

Logo após o espasmo recuperou o movimento de seus pés e pernas, que devido a uma terrível câimbra forçavam seus joelhos contra aquela tão estranha e áspera superfície de madeira. Esticou as pernas em uma tentativa inútil de aliviar as dores que sentia, ao fazer isto muitas farpas de madeira penetraram em sua pele. Com o susto tentou mover os braços, conseguiu movê-los, mas, percebeu que estavam amarrados pelos pulsos, tentou afastar suas pernas, mas elas também estavam prezas pelos calcanhares. A sensação de desespero apoderou-se de seu corpo que em vão se debateu em busca de liberdade, a cada batida na madeira mais espinhos pontiagudos e doloridos penetravam por todo o corpo nu, a dor e o medo a motivaram a lutar sem pensar por um pouco de tempo até que na exaustão desistiu. Neste momento de desistencia percebeu que estava trancada dentro de uma espécie de caixa, completamente nua e amarrada.

A certeza de já estar morta que a confusão mental certificava, se uniu com seu estado recém descoberto. A duvida mais cruel era sobre a forma que haviam se utilizado para matá-la. Seus delírios gerados pela imensa dor e sensação de abandono serviam como estimulo para continuar pensando em sua própria execução. De súbito, seus delírios lhe fizeram crer em uma situação insana, como se tudo fosse um jogo regido pelo malévolo deus daqueles homens que a mataram, deus lhe fez esquecer a maneira como morreu, se ela pudesse se lembrar, seria liberta daquela prisão onde estava.

Como em um turbilhão de pessimismo, seus pensamentos exploravam os caminhos que a levariam até aquele local. Não poderia ter sido envenenada enquanto estava presa na jaula sob o templo, se tivesse morrido envenenada não haveria sido amarrada. Não poderia ter sido mutilada pois senão não poderia mover seus membros. Lembrou-se que havia decidido fingir aceitar a doutrina profana daqueles homens perversos para sofrer menos em sua morte, então talvez tivesse sido esfaqueada em praça pública, uma forma rápida de morrer após aceitar a nova religião, imaginou-se amarrada de joelhos, enquanto um dos religiosos vestindo um capuz preto lhe atravessava o peito com uma espata pontiaguda, como se pudesse sentir a dor da espada, sua respiração se tornou ofegante, visualizou-se sendo carregada até aquele caixote onde estava e depois enterrada ao som eufórico da multidão sanguinária que assistiu a tudo atentamente.

--- Foi assim que eu morri! Foi assim que eu morri! Liberta-me agora desta prisão!!! - Gritou chorando em tom suplicante.

Após alguns segundos de imensa ansiedade e expectativa, percebeu que nada havia mudado, subiu suas mãos até o peito e descobriu que não havia nenhum ferimento, concluiu que ainda não havia sido liberta pois tinha errado a resposta para a pergunta de deus. Seu pescoço doía muito, ela percebia que o ar dentro da caixa estava começando a ficar quente, embora a febre que afligia seu corpo continuasse a provocar a sensação de frio.

Não havia sido esfaqueada, estava certa disto. Começou a lembrar da noite que precedia seu provável assassinato, tentando assim descobrir algo que lhe ajudasse a resolver a questão. Lembrou de ter sido surrada e humilhada, para que o demônio saísse de seu corpo, lembrou-se do rosto de um homem que pregava o celibato e que tentou estuprá-la, lembrou de tê-lo ouvido dizer que para ela já não havia mais piedade por parte de deus e que a maior penitencia não a purificaria. Lembrou-se das crenças daquele povo que vivia apavorado com medo de mil fantasmas e demônios. Suas memórias mostraram cenas de bruxas e homens possuídos pelo diabo que eram mortos e enterrados de ponta cabeça, para se caso tivessem o poder de retornar a vida, cavoucassem para baixo, diretamente para o inferno de onde não deveriam ter saído.

Apesar da loucura que fervilhava em sua mente, percebeu-se novamente amarrada, sem nenhum ferimento mortal e com a cabeça apontando para o inferno. Como em uma lampejo de sanidade e razão, chegou a conclusão de que estava dormindo paralisada quando os religiosos assassinos chegaram. Estava imaginando, mas, era como se realmente pudesse recordar-se, viu-se sendo examinada minunciosamente e após isto dada como morta. Sem respirar, rígida e fria, como as vezes acontecia, estava morta aos olhos de todos. Imaginou o medo e as superstições tolas daqueles homens e viu-se sendo amarrada como medida de segurança, então enterrada secretamente para que a população não visse uma mulher possuída pelo demônio que morreu em paz enquanto dormia.

--- Estou viva! Estou viva!!! - Grita para si mesma, com um quase sorriso criado pela luz que atravessava a densa neblina da confusão.

Instantes após gritava por socorro, tinha esperança de que alguém pudesse ouvi-la e libertá-la. Ainda não havia tido o sinistro pensamento de que morreria ali, nua, amarrada e enclausurada em uma pequena caixa de madeira áspera.

Cada segundo parecia um açoite e a dor em sua garganta já não permitia mais à sua voz sair com intensidade. A ideia da morte iminente finalmente se apoderava de sua alma.

As farpas fincadas em seu corpo começam a coçar e no torpor causado pelo pânico, não percebia a força com que suas unhas arranhavam sua pele, que cada vez mais inflamada e dolorida apenas aumentava sua aflição. A pressão do sangue em sua cabeça começa a lhe causar vertigens, sente-se girando, balançando, caindo... Seu rosto começa a formigar e na agonia ela o arranha com força suficiente para o rasgar, não percebe o sangramento, a sensação terrível continua a aumentar. Seu coração disparado e sua respiração ofegante demonstram o medo que lhe flagela. O medo aumenta ainda mais com a sensação de que sua língua esta crescendo dentro de sua boca, na medida em que as paredes da pequena caixa moviam-se para esmagá-la. A morte parece cada vez mais próxima, arranhando-se e cortando-se apavorada, chorando histericamente, seus olhos que de tão arregalados pareciam estar saindo de suas órbitas, expressavam o mais puro pavor de seus pensamentos, o odor de sua transpiração era a mais pura expressão química do medo.

Os animais acima da terra que a cobria, sentiam o cheiro que começava a brotar do solo. Agoniados se agitaram chamando muito a atenção de um jovem seminarista, que apavorado alertou os outros de que algo estranho ocorria na sepultura da bruxa.

Sete homens tão loucos e confusos quanto os que lideravam esta seita, se prontificaram a cavar e exumá-la... Quanto mais cavavam, mais os animais se agitavam dando a nítida impressão de que o Diabo se manifestava. O ruído das pás que rapidamente retiravam a terra e batiam na parte superior da caixa se assemelhavam aos trovões do inferno para a pobre mulher que ali dentro tinha seus últimos delírios. A sensação de ardência causada por seus aranhões lhe proporcionavam terríveis ilusões com fogo e quanto mais se debatia, mesmo enfraquecida, mais dor e pavor sentia e mais acreditava já estar vivendo em um inferno como o homem que lhe chicoteara a um dia atrás descreveu. Envolta entre delírios onde queimava aos sons de trovões, risos e gritos de demônios malditos ela finalmente exalou seu ultimo suspiro.

Minutos depois a caixa foi retirada e aberta, para espanto de todos os que presenciaram. Revelou uma bruxa, retalhada e ensanguentada que urinou e defecou em si mesma. A expressão de desespero em seus olhos esbugalhados atormentou profundamente a alma daquelas pessoas medrosas que por temerem mais manifestações do demônio decidiram cremar o corpo. Deste dia em diante, ficou registrado que a única forma eficiente de eliminar uma bruxa ou um homem possuído pelo demônio era a fogueira.

=NuNuNO==

( que derrama uma lágrima ao pensar no atual número de seguidores desta religião sanguinolenta )

20/11/2001

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 02/04/2011
Código do texto: T2886127
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