Vila do Sossego não era mais tão sossegada assim. Há alguns meses coisas estranhas estavam acontecendo por lá. Inexplicavelmente vários maridos haviam assassinado suas mulheres e zarpado da cidadezinha durante a madrugada cinzenta, aparentemente sem motivo algum. Era um caso atrás do outro, na verdade cinco ao todo. A Vila estava em polvorosa buscando explicações para o inexplicável.

            O casal que agora ali chegava com suas tralhas em cima do lombo de um burro já tinha ouvido falar sobre os casos dos assassinatos, mas era ali que tinham conseguido comprar suas terrinhas, era ali que Severino sentia que ia ser mais feliz ao lado da recém esposa Rosa.

            Severino trabalhava durante o dia “capinando” as lavouras de algodão das fazendas vizinhas. Saía de casa de madrugada e voltava somente com o pôr do sol. Rosa reclamava por ter de ficar tanto tempo sozinha, mas Severino não podia fazer nada, tinha de trabalhar para sustentar sua mulher.

            Certo dia, de volta para casa, Severino encontrou no meio do caminho um gato. Pegou o grande bichano negro no colo acariciando-lhe os pelos e sorriu : “Vai ser uma boa companhia para a Rosa, vai sim.”

            Rosa não gostou muito do bicho, era muito grande e melindroso, se ao menos fosse um filhotinho. Severino convenceu a mulher a ficar com o “bichinho”, iria lhe fazer companhia enquanto ele estivesse trabalhando na roça.

            Logo nos primeiros dias de convivência com o gato, Rosa percebeu-lhe as manhas. Fazia corpo mole o dia todo e quando Severino chegava corria-lhe a pular no colo e fazer-lhe chamego. Ela bem que tentou ser amigável com ele, fazer-lhe um cafuné, mas o bicho fugia e se escondia sabe-se Deus lá onde. A comida que Rosa depositava para ele  no prato lá ficava estorricando o dia inteiro, mas quando Severino chegava o gato mostrava-se faminto e desesperado. Das primeiras vezes Severino achou graça, mas depois começou a achar que Rosa estava maltratando o gato.

            “Você tá se desfazendo do bichinho que eu te trouxe, deixa o pobrezinho o dia inteiro sem comida e sem água.”

            Rosa começou a perceber as mudanças do marido em relação a ela e ao gato. Quando ele chegava do serviço já não mais lhe dava um beijo de “oi”, corria a afagar o gato e a conversar com ele. Chegou ao cúmulo de um dia o gato comer no mesmo prato que Severino. Às vezes, quando Rosa acordava durante a noite, o gato estava deitado em cima de Severino e com o olhar fixo nela. O bichano agora lhe causava arrepios.

            Certo dia, quando Severino estava saindo para o trabalho, voltou-se para Rosa com um olhar fulminante e disse: “Se eu chegá hoje à noite e meu bichinho tiver esfomeado, você me paga sua bruxa velha.”

            Rosa passou o dia inteiro tentando ganhar a amizade daquele bicho, mas ele se esquivava dela e como sempre acabava sumindo pelo meio do mato.

            Severino chegou do trabalho e encontrou seu gato desesperado, esfomeado e com sede. Quando Rosa pôs o prato do marido na mesa, o gato pulou com as quatro patas dentro do prato e começou a comer esganadamente. Severino empurrou furiosamente a cadeira e partiu para cima da mulher esbofeteando-a: “Você qué me afrontá sua disgramada? Ninguém vai maltratá meu gato!”

            Rosa chorando tentava explicar para o marido que ela fazia de tudo para agradar o bicho, ela não conseguia entender o que estava acontecendo.

            No outro dia, quando Rosa se levantou toda alquebrada para preparar o café para o marido, viu Severino amolando a foice. Ele olhou com os olhos esbugalhados para ela e disse: “Isso aqui é pra você hoje à noite quando eu voltar do serviço, se você não cuidar direitinho do meu gato.”

            Apavorada, Rosa tentava de tudo para agradar o gato, mas o bichano a desdenhava, andava de um lado para o outro todo melindroso e seu ronronar parecia mais uma risada satânica. À tardezinha o gato desapareceu como sempre para desespero ainda maior de Rosa.

            Rosa pegou seu terço e começou a rezar. A tarde já vinha findando quando um temporal se armou e de repente o dia fez-se escuro como a noite, relâmpagos riscavam o ar e trovões eram ouvidos ao longe, um vento muito forte começou a soprar e redemoinhos se formavam trazendo poeiras e ramas secas. “Ave Maria, cheia de graça...” Rosa ajoelhada rezava com fervor.

            Severino foi pego de surpresa no meio do caminho pela tempestade que se formara, com medo do temporal achou melhor subir numa árvore para esperar o tempo melhorar. Acomodou-se entre as ramas da árvore e de repente começou a ouvir vários miados de gatos que vinham de todas as direções. Cismado encolheu-se se aninhando ainda mais no meio daquela ramagem. Gatos começaram a surgir de todos os lados reunindo-se embaixo daquela árvore. Num determinado momento Severino pôde vislumbrar seu próprio gato chegando, o reconheceria em qualquer lugar. Sem a menor explicação e para espanto de Severino, os gatos puseram-se em duas patas e suas caras tomaram feições demoníacas. Um dos “bichanos” perguntou ao gato de Severino: “E você? Já conseguiu fazer com que aquele tolo mate sua mulher?”  “Ainda não meu amo, mas isso vai acontecer ainda hoje.” Risadas estridentes feriram os ouvidos de Severino que agora estava totalmente apavorado.

            Muito tempo depois, o que pareceu para Severino uma eternidade, aquela reunião macabra chegava ao fim. Com o coração aos pulos, Severino desceu da árvore com a foice na mão e seguiu para sua casa. Lá chegando avistou a mulher ajoelhada perto do gato tentando alimentá-lo. De longe ele gritou : “Eu sabia que você ia maltratar meu gato de novo, dessa vez você não escapa sua desgraçada.”

            Apavorada, Rosa cobriu o rosto com a mão enquanto Severino erguia sua foice riscando o ar. A Lâmina desceu certeira e num só golpe a cabeça do gato rolou, no mesmo instante a criatura tomava sua verdadeira forma, parecia uma criança ou um anão de pele vermelha com chifres e rabo. Rapidamente Severino explicou à Rosa o que tinha acontecido. Os dois se abraçaram chorando e rapidamente juntaram suas poucas coisas, colocaram no lombo do burro e pegaram a estrada, decididos a nunca mais voltarem àquela vila amaldiçoada.

            O que os dois não perceberam foi aqueles pares de olhos vermelhos que os espreitavam por detrás das matas.