A FIGUEIRA
"Sob as árvores os pés dançantes, soltos no ar
Há nas mãos que esticam-se um pranto oculto
Que a garganta calada não deixa gritar."
Tânia Souza
I
Eu tinha um pouco mais de uma década de vida quando tudo aconteceu. Naquele tempo, minha compreensão de mundo era tão superficial e enigmática quanto a profundidade vista pelo vidro de uma bola de gude. As lembranças contadas em dias não diferiam muito da cronologia de um adulto no que se referia a importância, sobretudo em eventos específicos, mas o tempo, esse sim, traduzia um outro significado. Um ano de uma criança nem de longe pode se comparar aos mesmos trezentos e sessenta e cinco dias de uma vida comprometida com inúmeras responsabilidades.
De fato, naquela época, o tempo passava mais lento, mais arrastado, como o caminhar descompassado do meu avô. O velho já havia passado dos sessenta, trabalhara a maior parte da vida como funcionário público, mas não desses que penduram o paletó nas costas da cadeira e se afundam em trabalho burocrático. Não, meu avô passara os melhores anos de sua vida debaixo do calor impiedoso do sol, ou sob as chicotadas violentas da chuva, sempre com o peso de uma marreta nas mãos. Quebrar rochas em pedreiras era o seu ganha pão.
A pele negra e privilegiada do velho ocultava boa parte dos castigos infligidos pelo tempo. Os sulcos e rugas em seu rosto não eram tão marcantes quanto em outras pessoas da mesma idade, no entanto, ainda assim, não se pode negar que antigamente as pessoas envelheciam muito mais do que nos dias de hoje. Atualmente é muito comum passar dos setenta com invejável vitalidade, porém, naquela época, a história era outra.
Contudo, apesar da ação preponderante da idade e das conseqüências físicas causadas pelo trabalho árduo, o que dificultava mesmo a locomoção do meu avô era a influência das seqüelas de um acidente vascular cerebral que culminara numa paralisia parcial do seu lado esquerdo. Esse fato acarretava-lhe uma forma peculiar de caminhar. Ele impulsionava a perna direita e, praticamente, arrastava a esquerda, num movimento de sobe e desce com o corpo. Mas isso não o impedia de circular livremente para onde queria.
Minha mãe não era como a maioria das mães dos meus poucos amigos. Ela, por conta da necessidade, não se valia da condição de dona de casa, muito pelo contrário. Já naquela época, ela trabalhava fora, o que era um fato incomum e até mesmo reprovável para os padrões da situação.
Desta forma, eu passava os dias entre a escola e os cuidados dos meus avós. E não era só eu. Minha irmã mais nova e um primo quase da minha idade me faziam companhia. Se minha irmã e eu poderíamos voltar para casa à noite, o mesmo não ocorria com esse meu primo, pois o pai, ele nunca conhecera e a mãe, minha tia, sumira no mundo há tempos. Assim, o garoto era criado como filho pelo casal de idosos.
Meu avô era muito atencioso e gentil, em todos os aspectos. O mesmo não poderia ser dito da minha avó. Não que ela fosse rude ou que nos deixasse faltar qualquer cuidado, longe disso. Mas, posso afirmar que ela era desprovida daquela ternura própria dos avós, daquele algo mais. Talvez fosse algum resquício da esquizofrenia que lhe acometera na juventude, pois, embora a enfermidade tivesse sido clinicamente contornada, não era difícil crer que as cores do mundo exibissem um tom desbotado e irremediavelmente triste pela ótica de sua visão.
A casa dos meus avós ficava num conjunto residencial construído e destinado a servidores municipais. O bairro, por assim dizer, ocupava tanto as encostas de um morro, quanto o vale aos seus pés. A residência em questão posicionava-se na parte alta do lugar. Lá de cima, do alto do precipício, era possível vislumbrar a vastidão ocupada por centenas de casinhas, as ruas que as entrecortavam, um campo de várzea, uma pequena praça com seus balanços e gangorras, a sede da associação de moradores, uma escola construída pelo governo militar, muitas árvores, além da outra quadra do bairro, que ocupava o morro defronte ao que estávamos.
Todas as noites, quando minha mãe vinha nos buscar, precisávamos atravessar um longo e estreito caminho que circundava a beira do precipício. A estrada ainda não era revestida pela manta negra e tétrica do asfalto, ou tampouco protegida pelos blocos de concreto dos dias de hoje. Não, naquele tempo a vivacidade do barro esparramava-se por toda a extensão da via. Não havia qualquer limite. De um lado, a garganta aberta da ribanceira, do outro a vastidão verde e absoluta da vegetação.
Havia muito mato no local. Enormes amendoeiras, jaqueiras e mangueiras estendiam-se ao longo da margem verdejante, além de arbustos repletos de amoras e pitangas. No entanto, a árvore mais emblemática era a figueira localizada na parte central da área. Era comum ouvir as pessoas dizendo que a árvore ocupava o local há incontáveis anos, sendo testemunha do crescimento de tudo ao seu redor.
De fato, a figueira era um belíssimo exemplar de sua espécie. Com seu tronco firme, galhos retorcidos, casca cinzenta, folhagem marcante e raízes impetuosas, parecia mesclar a imponência desconcertante das espécies infrutíferas, com a exuberância e generosidade das melhores fornecedoras das comestíveis gotas róseo-esverdeadas.
O fascínio despertando pela árvore era tanto, que a própria região, toda a área compreendida pelos domínios da estrada barrenta, era conhecido pelos moradores simplesmente como Figueira.
Aos pés da árvore encontrávamos duas imensas pedras, uma sobre a outra. As rochas exibiam uma superfície tão lisa que era como se tivessem sido cuidadosamente polidas. Ao toque do sol, elas ostentavam um leve brilho, sugerindo uma comunhão perfeita com os raios do astro rei.
O par rochoso encravava-se como um pingente no mar esmeralda quase desabitado. Quase, porque, na parte posterior à parede formada pelo matagal, exatamente atrás da figueira e das pedras, situada num discreto declive, ficava uma solitária e simples casa. Na construção de pau a pique, residia um jovem casal, na companhia de um velho, o qual seria um tio, pai ou coisa do tipo de um dos dois. As pessoas diziam que o casal tinha um filho, mas, eu mesmo, nunca vi a criança. Na verdade, eu quase não via a mulher, mas não era raro encontrar o rapaz cuidando da pequena roça de hortaliças.
Não havia qualquer outra residência na Figueira, a família não tinha vizinhos. Embora a eletricidade não fosse nenhuma novidade, não havia, ao longo de toda a estrada, qualquer vestígio de iluminação pública. Acredito que a noite no interior do casebre era iluminada apenas pela vida dos candeeiros.
Embora, nos dias de hoje, a escuridão possa sugerir a potencialidade de perigo, a única preocupação em se atravessar a Figueira correspondia às velhas histórias contadas pelo povo. Pode parecer estranho, mas isso era levado muito a sério por algumas pessoas. Tanto que, na hora de irmos para casa, minha avó nos acompanhava até o fim da estrada, porém, minha mãe não a deixava voltar sozinha, e a acompanhava de volta. O impasse persistia até a desistência de uma delas.
Minha irmã e eu não dávamos muitos créditos ao que ouvíamos, nem mesmo nosso primo, que era um tanto sonhador, se importava com os relatos. Achávamos até graça da situação. Eu, particularmente, gostava de cruzar os domínios da Figueira. O céu era limpo, muito diferente da nebulosidade triste causada pela luz artificial. O forro negro salpicado de estrelas brilhantes ficaria para sempre gravado em minha memória. Como eu sinto falta daquele céu dos meus tempos de menino!
Dentre as diferentes lendas locais, eu gostava muito de ouvir a que falava da morte de um jovem padre. Minha avó não se cansava de repeti-la. E, apesar da repetição, a tensão do ineditismo estava sempre presente em cada uma das vezes. Ela arregalava os olhos e repuxava involuntariamente os lábios finos. Sua pele alva de descendente de portugueses ficava ainda mais pálida.
II
A história dizia que num certo tempo indeterminado, naquela mesma região, um padre recém ordenado assumira a paróquia local. Porém, em poucos meses de sacerdócio, ele caíra de amores por uma jovem comprometida. O padre a tomou para si, engravidando-a. Não tardou para que o romance clandestino fosse descoberto e hostilizado pela população. O noivo traído estava disposto a engolir a humilhação e perdoar a futura esposa, assumindo como sua a criança que crescia no ventre da moça. No entanto, para isso, o responsável pela sua desgraça deveria ser expulso de uma vez por todas da comunidade.
O pároco até estava disposto a abrir mão da felicidade em prol da amada, porém, ela não estava pronta para tal sacrifício. E, não podendo exercer o direito de ser senhora da própria sorte, decidiu selar definitivamente o destino que lhe era reservado, atirando-se num vôo sem volta pelo precipício.
Ao constatar a morte da jovem, o padre foi tomado pelo desespero. E, mesmo sabendo que a atitude que estava prestes a cometer significaria a condenação eterna de sua alma, de acordo com suas próprias convicções, ele trançou uma corda num dos galhos fortes da velha figueira, a fim de dar cabo de sua miserável existência.
Enquanto sufocava e se debatia, pois o pescoço não quebrara, ele foi invadido por toda a sorte de maus sentimentos. Rancor, ódio, decepção, vingança, frustração. Cada gota da aflição que corrompia seu espírito era exalada dos poros dilatados e liberada no ar. Seus olhos vidrados contemplavam a vastidão da ribanceira, leito de morte de um tesouro inestimável.
Dizem que as pessoas tocadas por um fardo similarmente pesado, seja na alma ou no coração, são capazes de vê-lo pendurado na figueira. O horror da imagem seria indescritível e irreversivelmente perturbador.
III
Mesmo durante o dia, a região da Figueira não era vista com bons olhos. E, justamente nesse quesito, estava uma das nossas maiores diversões na infância. Fazia parte da rotina, toda tarde, escaparmos rumo ao local maldito. Ficávamos os três, meu primo, minha irmã e eu no topo das rochas duplas. Era como se estivéssemos no dorso de um grande elefante. O toque quente da superfície rochosa era reconfortante, quando combinado com a brisa fresca que balançava as folhas da figueira ao entardecer.
A árvore dava frutos vistosos, mas estes eram raros quando comparados à abundância fornecida pelas demais. Além disso, não eram tão saborosos quanto a bela aparência poderia sugerir. Certa vez experimentei um dos figos, o gosto era terrivelmente amargo. Acho que a expressão que devo ter feito na ocasião intimidou as outras crianças, pois nenhuma delas quis compartilhar da experiência. Desde então, nos restringimos às mangas, jabuticabas e outras frutas.
Embora pudesse parecer, o real objetivo de nos refugiarmos na Figueira não era a busca pelos diversos frutos do local, ou a contemplação da paisagem do alto das pedras. O que buscávamos, de fato, era a provocação, a desobediência descarada. Invariavelmente, meu avô seguia em nosso encalço. Com uma vara seca de goiabeira na mão, ele vinha mancando e gritando em franca ameaça. Obviamente, sabíamos que ele era incapaz de nos machucar, mas a perseguição inocente era o ápice do nosso dia, o momento mais aguardado. A severidade em seu olhar nunca se traduzia em atos palpáveis, mas era legítima. Contudo, para nossa sorte, nada de ruim nos acontecia, nunca. As preocupações tolas eram um incentivo a mais para nossas traquinagens.
Assim, nossos dias passavam longos, com a eternidade da infância como um escudo a nos proteger das mazelas da irresponsabilidade. As lembranças desses dias eram doces como o gosto das frutas ao nosso dispor, mas um fato inesperado surgiu para estremecer os alicerces formados por nosso trio. Meu primo, em seu excesso de confiança e inabalável senso de aventura, sofreu um terrível acidente, algo que trouxe, de imediato, um torpor indescritível em minha existência. Inevitavelmente, senti o gosto amargo dos figos outra vez...
IV
Meu avô era a sombra do que um dia fora, enquanto o mundo particular de minha avó dava cada vez mais mostras de que suas fronteiras se expandiam. Era inevitável que maldissessem a nuvem negra que pairava na região, mas o tempo, em sua inabalável marcha, continuava a impor a sequência da vida. E, a velocidade, que até então era subjetiva sob meu ponto de vista, ganhava outros contornos. Porém, mesmo assim, eu não acreditava, ou melhor, não entendia a razão para tanta aflição por conta de um lugar, mas esse ceticismo começaria a perder força muito mais rápido do que eu poderia supor.
V
Era um domingo ensolarado, daqueles que parecem feitos sob encomenda para um grande evento. Praticamente toda a garotada da comunidade estava reunida na praça local. No campinho de várzea, estava sendo realizada uma festa em comemoração ao dia das crianças. Havia brincadeiras, gincanas, concursos, farta distribuição de lanches e brinquedos, tudo patrocinado pela associação de moradores.
Lá de baixo, conseguíamos enxergar as casas espalhadas pela encosta do precipício, o qual, daquele ângulo, parecia muito mais alto do que quando olhávamos do sentido inverso. Dentre as inúmeras residências, estava a dos meus avós, com seu muro revestido por heras e as paredes pintadas de bege.
Girando o olhar para o lado esquerdo, estava ela, a Figueira. As rochas impávidas exibiam-se como um colosso, enquanto a árvore que dava nome ao local balançava suas folhas ao sabor do vento, como se acenasse de longe.
Eu poderia, e deveria, estar concentrado no jogo de revezamento de escalada com corda, eu era o último da minha equipe, e a classificação dependia de mim. Porém, meu olhar estava vidrado em direção à Figueira. Eu tive a impressão de ter visto uma pessoa circulando levianamente pela beira da ribanceira. Apertei os olhos e tive certeza: era um homem. Sua pele mulata reluzia ao sol. Ele vestia uma calça comprida e nada mais. Por alguns instantes, ele hesitou, como se estivesse desnorteado e, então, caiu.
Seu corpo parecia despencar em câmera lenta, era uma imagem mostrada quadro a quadro. Não sei por quanto tempo tive essa impressão, só sei que ela terminou com o som de um grito estridente emitido por uma garotinha banguela que estava ao meu lado. Então, ele caiu rápido, como deveria ser.
Muitas pessoas correram em direção ao ponto final da queda, enquanto outras recolhiam suas crianças que gritavam e choravam. Eu permaneci no mesmo lugar, olhando para cima, e foi aí que vi.
Meu corpo tremeu dos pés à cabeça, pois tive a certeza, mais do que absoluta, de ter visto a imagem de um homem vestido de preto pendurado por uma corda amarrada aos galhos da figueira. Mais do que isso, tive a impressão de que ele olhou diretamente para mim, mesmo com a morte a lhe apertar o pescoço, o homem olhou para mim!
Sufoquei um grito na garganta. Esfreguei os olhos e a imagem desapareceu. Lá no alto havia apenas as rochas, o mato, as árvores simples e a figueira. Senti um toque no ombro, e desta vez não consegui controlar o pânico e gritei. Mas era apenas minha mãe trazendo minha irmã pela mão.
Mais tarde, soube que, apesar da queda violenta, o homem não morrera. Ele se ferira muito com o acidente, mas, a despeito disso, estava lúcido e consciente. Era fato que ele não se lembrava de absolutamente nada, e dizem que nunca mais foi o mesmo, assim como eu. Desde aquele dia, o episódio entrou para a galeria dos fatos inexplicáveis da Figueira. Só que para mim era algo totalmente novo, pois eu sabia que havia realmente algo estranho lá, e não era apenas uma questão de lendas do povo. Eu vi, nunca contei para ninguém, mas eu vi o padre enforcado enquanto o homem despencava.
O colorido da minha infância havia terminado ali. Quando se vê a face fria da morte é difícil esperar outra coisa. Era como se eu tivesse ficado mais seco, mais vil e egoísta, tão insosso quanto o sabor do figo que um dia preenchera minha boca. Eu não conseguia encontrar mais sentido no que antes movia minha vida e, por dias, permaneci no mais absoluto recolhimento...
VI
Eu não conseguia tirar da cabeça a idéia de ver novamente a imagem do padre. Não sei explicar, é até antinatural querer contemplar algo que desencadeara tamanho dano em seu existir, mas eu achava que olhar mais uma vez para aqueles olhos frios poderia reverter o temor que me consumia.
Estávamos mais do que proibidos de cruzar a estrada empoeirada, e desta vez parecia que não haveria qualquer tipo de tolerância com desobediências. Eu queria ir a Figueira, olhar para os galhos da árvore, mas não poderia comprometer minha irmã por conta dos meus atos. Assim, tramei para que eu passasse a noite de sexta-feira na companhia dos meus avós, ao invés de voltar para casa.
Os velhos costumavam dormir com as galinhas, e foi nesse momento que resolvi escapar.
Acho que não há palavras para descrever a escuridão que assolava a velha estrada. Nem mesmo minhas companheiras no céu ofereciam o brinde de sua presença. Mas eu não estava com medo, juro que não estava, e segui decidido em minha marcha.
Cheguei à parte central da trilha, exatamente onde ficavam as rochas e a figueira. A velha árvore não mexia uma só folha. Eu nunca tinha reparado antes, mas a imagem da figueira automaticamente me remeteu ao desenho que certa vez vi estampado num livro de ciências. A disposição do seu caule lembrava a reprodução do aparelho circulatório humano, excetuando-se a maneira retorcida que os galhos apresentavam nas extremidades.
Escalei as rochas rapidamente. À noite, o toque daquela superfície não oferecia o mesmo calor do qual eu me acostumara, pelo contrário, remetia à sensação proporcionada pela água gelada de um chuveiro numa manhã de inverno.
Enxerguei uma luz bruxuleante no interior do casebre, mas não havia qualquer sinal da família. Concentrei minha atenção no galho que julgava ser aquele pelo qual o padre se enforcara, mas nada vi. Esperei por um bom tempo e, já estava desistindo, quando ouvi uma voz chamando meu nome.
Virei-me em direção ao casebre, que era de onde parecia vir a voz. Então vi a figura de um velho. Imediatamente associei-o ao tal tio ou pai de um dos jovens da família, o tal senhor de quem alguns falavam.
Tive um impulso inicial de correr, mas contive o ímpeto. E, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ele me perguntou se eu sabia o porquê de ter visto a imagem do padre enforcado. Eu poderia ter ficado intrigado em querer saber como o desconhecido conhecia meu nome, visto que eu nunca havia me encontrado com ele antes, ou em saber como era de seu conhecimento o fato do que eu tinha visto. Mas a única coisa com que me ative foi no conteúdo de seu questionamento, pois, segundo diziam, só alguém com um fardo pesado a carregar, poderia avistar a assombração.
O velho riu por conta do desespero estampado em meu rosto, ele sabia, o maldito sabia. Só aí percebi que ele usava uma surrada batina por baixo dos trapos que lhe cobriam, além do laço a lhe apertar o pescoço. O padre caminhava em minha direção e, num piscar de olhos, já estava ao meu lado no alto das rochas.
Ele já não exibia os contornos cativantes e típicos de um idoso comum, não, o que estava diante de mim era um emaranhado arroxeado de carne em decomposição. E essa mescla horrenda falava comigo, me dizia claramente que sabia porque eu conseguia vê-lo.
VII
Sempre fui correto em tudo, da melhor maneira possível. Mas, até mesmo para aqueles que se consideram coerentes, existem ocasiões em que a prática testa a teoria. Nada nunca me faltou, isso é fato, mas, ainda assim, eu sentia uma pontada de inveja pela forma com a qual o meu avô tratava o outro neto, aquele que criava como filho.
Pouco antes do incidente, no qual meu primo se envolvera, eu tinha um punhado de moedinhas recém lançadas num daqueles inúmeros planos econômicos que eram bem comuns até um passado recente. Então, fiz uma proposta em trocá-las com meu avô por uma nota, coisa de criança, eu levaria até vantagem na conversão. Só que, imediatamente, meu primo pediu as moedinhas ao meu avô, no qual fora prontamente atendido. Fui tomado por uma raiva incontrolável, embora não a demonstrasse.
Eu não admitia, mas era fato que após ter experimentado aquele figo, parece que tudo de ruim que havia em mim tornara-se ainda mais evidente. Assim, elaborei um plano para tomar as moedinhas de volta. Num dia em que minha irmã acompanhara minha mãe no trabalho em uma casa de família, aproveitei para convencer meu primo a me seguir até a Figueira.
Uma vez lá, tratei de rolar a bola dente-de-leite, seu brinquedo preferido, por uma brecha no meio do matagal que crescia na encosta do morro. Então, sugeri que ele descesse pelo buraco para pegá-la de volta, agarrando-se no capim rasteiro como forma de apoio. Ingenuamente, como lhe era peculiar, ele foi, só que o mato não conseguiu sustentar seu corpo e ele rolou ribanceira abaixo. Acompanhei seu tronco desaparecer, depois a cabeça e por último os braços erguidos.
No mesmo instante fui tomado pela vergonha, pelo arrependimento, mas nunca contei a ninguém o que eu havia feito. Meus avós nunca se recuperaram do baque, e dia após dia, visitavam o neto/filho adormecido num coma absoluto até serem vencidos pela frieza da foice do destino.
Porém, antes de serem visitados pela senhora do inevitável, eles ainda viriam a sofrer muito mais por minha causa, não só eles como o resto da minha família. Mas, desta vez, eu não tive participação consciente no episódio...
VIII
Diante daquele vestígio de homem, de olhos negros e fatais, eu sabia que nenhuma mentira poderia resistir, pois ele podia enxergar através da minha alma. Eu só não conseguia entender como ele ficara velho e carcomido, se quando se enforcara não passava de um rapaz inconseqüente. Mas, quando ele me ofereceu a corda, e eu a aceitei de bom grado, tudo ficou claro para mim.
Enquanto eu sufocava pendurado nos galhos da velha figueira, entendi que nossas almas, a dos condenados, envelheceriam eternamente como um fruto que apodrece no pé sem ser colhido. Entendi, também, que o velho, a mulher e a criança que diziam morar no casebre, talvez não passassem de aparições que se confundiam com o mistério acerca do rapaz que morava no local. Era bem possível que, em muitos anos, eu também fosse inserido no contexto de alguma família local.
O jovem que se isolava na Figueira, não se incomodava com a presença de estranhos em suas terras. Era até bom, pois a proximidade colaborava para que novos frutos fossem inseridos na árvore que cuidava com tanto esmero. Sua longa linhagem, a que advinha do noivo traído que se culpou pelo suicídio da amada, jurou cuidar da árvore, símbolo da dor da comunidade.
XIX
As histórias vêm e vão, se confundem e se mesclam ao longo do tempo, o qual, às vezes passa depressa como a vida de um adulto, ora corre lento como os sonhos infantis.
Muita coisa eu vi no decorrer dos anos, enquanto os vermes corroem a estrutura da minha essência, algo que nunca terminará. O velho conjunto residencial de servidores municipais se transformou numa violenta favela. Não há tanta simplicidade quanto outrora, e, vez ou outra, a figueira recebe novos frutos. Aliás, muito mais do que antes.
Do alto da árvore secular, pendurado por uma corda que quase ninguém vê, como um figo ignorado por todos, eu permaneço. E, não é raro que eu seja invadido pela impressão de ver, sentada numa cadeira de balanço, na varanda que já não existe mais, a silhueta da minha avó, com seus cabelos de prata reluzindo ao sol e sua pele alva com tons rosados nas bochechas. Ao seu lado, com seu chapéu de palha na cabeça, meu velho avô, exibindo o mesmo bigode grisalho, sinal de respeito, como dizia. A pele de ébano, com as rugas do trabalho árduo cultivadas pelas intempéries do tempo, era a mesma. A origem da miscigenação da qual eu tanto me orgulhava.
Eu queria poder ter a oportunidade de visitar meu primo que sofre por anos no hospital, mas sei que a prisão da Figueira nunca permitirá. Quando ele for tocado pelo abraço frio da morte, algo que logo ocorrerá, ele será recebido pelo carinho dos meus avós, algo que nunca mais terei, pois um lugar bem melhor está reservado para todos eles. Algo bem diferente do que me abriga e continuará a abrigar por toda a eternidade.