Ele que está Entre Nós

Ninguém percebeu quando ele surgiu. E ainda agora poucos são os que realmente se deram conta de que ele está entre nós. Não é que as pessoas não o vejam, elas o veem todos os dias, às vezes várias vezes ao dia, porém, não percebem que ele está aqui, ou simplesmente não identificam ele como sendo ele. Sabemos que ver não é o mesmo que perceber. O sentido da visão também se realiza de forma inconsciente.

E mesmo muito daqueles que o veem não o veem como ele realmente é. Muitos afirmam categoricamente que ele não é tão horrível quanto aparenta ser e nem tão fatal. Não sei se verdadeiramente se referem a ele. Talvez nem eles saibam. Porém, tentando compreender o caráter de tal afirmação descabida, somente pude chegar à conclusão de que ela é fruto da lentidão daquilo que está entre nós. Pois pude verificar que sua lentidão é espantosa. Tanto quanto sua aparência, absolutamente assustadora. Constantemente o tenho em vista. Ele sempre assombra meus miseráveis olhos.

Eu não saberia o descrever com exatidão. De fato, é extremamente complexo. Pode ser que eu deixe alguns detalhes em falta, e exagere em outros. Mas o mais provável é que eu não tenha fôlego o suficiente para descrever todo o seu terror cósmico. Até porque ele nunca se mostra por inteiro. Mostra-se apenas por partes, e mesmo assim, tais partes nem sempre são completas. E suas aparições invariavelmente duram pouco tempo. No entanto, são sempre diárias e ocorrem diante dos olhos de todos. Alguns parecem não dar atenção a elas. Ou dão uma atenção que não é a mais adequada. Já outros percebem seu terror de forma QUASE clara, porém, geralmente, tal percepção não se mantém por muito tempo. E, estes, quando têm a percepção, não sabem exatamente o que fazer com ela. Ou o que deveriam fazer com ela. Há ainda os que riem dele, estando certos de que ele não existe, que é um ilusão ou uma má interpretação de alguns sinais obscuros que foram sensacionalizados. No entanto, ele parece não dar a mínima atenção para os que dele se riem. Limita-se a sorrir ironicamente. E um silêncio de morte é seu sinal mais evidente. Como diria Goethe, “Os que não fazem barulho, são perigosos.

Seja como for, algo verdadeiramente pavoroso é vê-lo se arrastando em sua lentidão funebremente irritante, que deixa, em alguns, uma impressão de crueldade, de impiedade desmedida, e, em outros, uma simples sensação de que ele nem está ali. A qual é a mais comum. Contudo, tal lentidão absurda deixa de ser tão lenta no momento que conseguimos compreender o seu contexto, o qual é extremamente amplo, e, por isso mesmo, compreendê-lo é uma tarefa nada fácil. Eu próprio não conseguiria explicar tal contexto, embora o entenda para mim. Acredito, pelo menos. E, a bem da verdade, se eu o explicasse, certamente seria considerado louco.

Mas quando fito aqueles olhos fundos, enormes e encovados, quase que imperceptíveis, negros, perturbadoramente negros, sinto como se minha alma emudecesse diante do que não se pode conceber. Sua altura gigantesca, hercúlea, assombra-nos e nos inquieta, ainda mais se levarmos em conta que de momentos em momentos ele consegue ficar completamente invisível aos olhos de todos. E nesses instantes ele solta um sorriso arrepiante, não perverso, apenas assustador, anomalamente assustador. E sua risada como um trovão retumba por todos os céus congestionados de nuvens carregadas. Surgem tempestades de todos os tipos. Mas elas passam. E logo, o céu clareia-se novamente e o sol brilha. Por alguns poucos instantes, porém.

Conforme ele vai se movendo, as coisas existentes, sejam elas quais forem, desmoronam ao se redor, mas desmoronam de forma tão lenta que quase não se percebe que realmente desmoronam, que se desintegram, transformando-se em pó, em uma degradação, em uma degeneração insidiosa e torturante. Nesses instantes, seus olhos injetam-se de sangue, um sangue vivo e intensamente escarlate, transbordante. O vermelho daqueles olhos infunde em nossos corações um medo diabólico. Mas em outros, sua fúria é tão extrema e determinada que não há lentidão alguma naquilo que vai deixando de ser enquanto seus olhares impiedosos miram a tudo e a todos. Sua visão absurda e formada por algum elemento desconhecido abarca tudo o que pode existir. Talvez até mais. E somente com o fato de olhar e passar pelas coisas que olha tudo se desconstrói. É como se algo que não sei nomear ocorresse. E a destruição é plena. Nada resta.

Mas a grande maioria dos que presenciam seus atos não o reconhecem como seu causador. Fica aquela impressão de que algo terrível aconteceu, mas não se sabe exatamente por quê. Nem mesmo o quê. E então ele sorri enigmaticamente, pálido, cadavérico. Há um sarcasmo quase palpável em sua boca de tigre. E, às vezes, quando observo com redobrada atenção aquele olhar perturbador, aquela face ominosa, tenho uma desesperadora impressão de que alguém olha atrás dele. Como uma presença misteriosa que estivesse por trás de tudo o que através dele se realiza. Mas não é possível distinguir sua face, que sempre está em segredo. Mas sei que ela está lá. E me parece ser desprovida de misericórdia. Não sei se de fato é assim.

Um dia toquei em sua mão. Era fria, fatalmente fria. Foi um toque muito rápido, mas o suficiente para sentir todo o horror que nele se concentra. Horror para o qual não há descrição possível. Aquela impressão nunca mais me deixou, nem sequer por um instante, por um segundo, e me perturba todos os dias, todas as noites. Desde aquele dia soube das coisas que ele é capaz. Sei também que ainda não se revelou às claras.

Há sempre uma névoa espessa envolvendo sua catastrófica presença. Mas um só relâmpago de seu olhar, quando percebido por uma parcela mínima de nossa consciência, o que já se constitui em uma tarefa dificílima, deixa em nossa alma a pior das sensações. Realmente, a pior. E incompreensível. Mas havia algo mais naquele toque. Uma tênue refulgência de algo esverdeado que eu não ainda não pude captar sua essência. No entanto, senti um ainda mais incompreensível consolo. Igualmente terrível. Mas agora eu sei das coisas que ele é capaz... E talvez ele seja o mais necessário de tudo. Ele que está entre nós.

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 02/06/2011
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