O retrato

O retrato

“Tudo é obscuro enquanto existir a ávida busca por ser feliz.”

- Bom dia Sonny, como vai? - cumprimentou o relojoeiro.

- Muito bem. – respondeu o rapaz contido e reservado.

Relógio entregue, o jovem empresário alvo e bem aparentado, caminhava pela cidade, sempre tímido, sempre sozinho.

A vida não era muito nem pouco, era mediana.

Avistou uma loja de presentes. Quadros, molduras, enfeites e outros.

Foi quando reparou num modelo nunca visto.

Era um quadro em aquarela, extraordinário. Uma precisão de traços incrível.

Seu olhar se fixou, em cada traço de cor, cada linha, cada forma.

Era de uma cor tão viva que jamais havia presenciado no mundo real.

Nele pintada uma linda jovem de rosto perfeito e fragilidade sem igual.

Era médio, de moldura dourada. Uma beleza rara e indescritível.

Olhando aquela visão surreal, Sonny se acometeu de brusca vertigem.

Onde teria visto aquele rosto antes? Seria uma mulher ou uma pintura?

O tempo parou num segundo. Desnorteado deu o maior valor que podia pelo quadro e voltou com ele satisfeito para casa.

No trabalho mal podia se concentrar, não sabia como um objeto inanimado causava nele tanto fascínio, como jamais sentira por nada que tivesse tocado.

Não era de seu feitio se apaixonar, ele sempre fora amante do trabalho, poucas aventuras, muito fechado e intimista em seu mundo.

Nunca havia sentido nada parecido. Nada jamais lhe despertara para tal. Não que ele nunca tivesse esperado por isso. Seria um retrato falado?

Uma sensação incomum, alheia e sombria se instalava, e se tornava um deleite.

Abandonou o expediente mais cedo para fazer compras, não sabia porque, nem havia sentido algum, só queria, movido de obscura vibração.

Em seu quarto levava tudo que precisava para realizar seu intento.

Montou um altar: velas, rosas, cartas; o quadro muito bem preso num espaço reservado, só dele.

Um pedestal, fitas coloridas e até uma luz especial só para aquela parte do cômodo.

Fulgurante e estupendo.

Ao sair, porém não enxergou, o quarto ganhava uma cor nova, cinza e sinuosa, uma aura de ódio e energia satânica tomava conta de tudo como se engolisse o mundo com seu fulgor opressivo.

Sua empregada ao adentrar para limpar, sentiu algo que não podia descrever, um clima pesado que com certeza não estava ali, ao se aproximar do quadro era como se uma força a puxasse para perto, e em pânico lutando contra si mesma, se afastou e correu dali, sem poder voltar por muito tempo. Quem seria aquela mulher?

-Eu sou real, meu amor, eu sou real. - era como se ouvisse aquela terna e suave voz colada aos ouvidos ao mesmo tempo em que um doce e envolvente perfume lhe invadia as narinas arrepiando todos os pelos do seu corpo.

Deixando-lhe ereto e extasiado. Não poderia ser engano.

Se ela não era real, ele a tornara assim.

Teria poder um desejo imenso de seu coração encantado?

- Será minha, - repetia convicto. - Será minha.

Às onze em ponto dormia, o vento sacudia suas cortinas pela janela entreaberta, num fio de voz alguém sussurrava em seu ouvido, ele sentiu-se amolecer, não podia ser, sim, era sua amada se aninhando junto a ele.

Dormiam juntos, enfim. Era a mais fascinante sensação.

O sentimento mais glorioso e o prazer que jamais tivera. Que nenhum vinho pôde lhe dar.

Quando de manhã despertou, ela não mais estava com ele, e cabisbaixo esfregou os olhos tremendo.

- Eu a tive, a tive de verdade essa noite, ela virá de novo. Ela virá.

- Senhor Sonny. - chamava a empregada do corredor.

- Diga Miréia.

- O seu quarto está uma bagunça, e aquele quadro está bem empoeirado, não quer...

- Não toque nele, eu mesmo o limpo, mexa no resto, mas não no quadro tá certo?

- Senhor, tem certeza? – indagou a meiga mulher.

- São minhas ordens.

- Claro, como quiser.

Pensativa ela tentava entender como da noite para o dia o patrão se tornava aquele homem atordoado que estava em sua frente. Parecia tomado por algo, ou por alguém.

Na verdade estava mais do que aliviada por não ter que ficar perto daquele objeto pavoroso.

- Aquela moça é sua namorada?

- Posso dizer que ela é meu único amor.

Novamente na loja de retratos.

Ele tinha uma questão que não podia ignorar. Mais que amável o atendente se aproximou:

- Olá senhor, em que posso ajudá-lo?

- Vim saber sobre o quadro que comprei, que informações você tem sobre ele?

- O quadro de paisagem?

- Não, o da mulher.

- Ah, o retrato, bem, ele é de um pintor anônimo que assinava por S.O., não se sabe muito, comprei-o numa feira de artesanatos, não há o que dizer sobre ele, apenas sabe-se que o pintor já é falecido, e pode-se dizer que retratou uma imagem ficcional.

- Ficcional?

- Sim, uma arte muito procurada por colecionadores mas totalmente misteriosa.

- Procurada?

- Exato, fez um certo sucesso em décadas passadas.

- Essa informação é segura?

- Se especula que sim, eu particularmente não tenho dúvida, ele é uma relíquia de meados dos anos 50.

Uma horrível náusea acometeu Sony, era um baque e tanto.

Como se tudo que ele construíra desmoronasse com um sopro.

- O senhor está bem?- perguntou o vendedor preocupado.

- Está mentindo.

- Como disse?

Saiu correndo desnorteado, esbarrara em alguns adereços ao sair alarmando todos na loja. Quebrou um imenso vaso de barro ao cruzar a porta.

Seria possível? Por que?

Como poderia ser a razão de seu maior afeto uma coisa sem vida? Era mentira.

Mentira definitivamente.

Ela provara que não, afinal se apresentara, viva e perfumada: a personificação do êxtase. Parou numa rua regurgitando todo o conteúdo gástrico.

- Não. Você vive.

- Eu vivo, meu amor. - parecia ouvi-la tão junto ao seu ouvido arrepiado, tão vivo e racional quanto sentia seu coração bater.

E como numa visão febril se viu transportado para outro local onde bailava com ela, sua musa, sua deusa, a razão de todos os porquês.

O lugar em que estava não fazia sentido algum, ao mesmo tempo em que parecia um deserto causticante se apresentava um túnel escuro, não havia realidade, muito brilho quase o cegava e só enxergava aquele rosto, apenas ela, era mais real do que ele mesmo. Quente. Pulsante.

- Me diz o que eu faço amor. Eu quero você.

- Coragem meu amado, eu não pertenço ao seu mundo.

Seus grandes olhos puxados e verdes como esmeralda eram hipnóticos para Sonny, em transe.

- O que eu faço?

- Não sou o que não quiser que eu seja.

- Você será minha então?

- Você está disposto a tudo?

- Tudo é pouco, eu te quero agora.

Um meio sorriso sensual e brando brotava dos vermelhos e carnudos lábios da linda mulher.

De repente suando em bicas Sonny sentiu um forte vento na nuca, o torpor que lhe adentrava, a cabeça rodava, ao recuperar a visão se viu abaixado vomitando num beco, sentia o cheiro de lixo da caçamba que pairava ao sol, enfim viu o asfalto e a estrada ao redor.

Ao chegar em casa, seu amigo de trabalho Maurício havia lhe feito uma visita, e o esperava, de forte e notável voz, pode ouvi-lo quando adentrou a garagem.

Tendo outro súbito mau estar correu para dentro pressentindo o que poderia ocorrer.

Sua amada! Seu quadro.

- Não. Não vai tocar nele. Nunca!

Escancarando a porta, viu o colega admirando nas mãos seu quadro na sala de estar.

Num ímpeto de instinto cego, se lançou sobre ele com intensa agressão.

Tão forte que quebrou metade da sala com os golpes, jogando o amigo sobre os móveis sem nem perceber o que estava fazendo.

Não podia cair em si, tudo era extremamente natural para ele, ao protegê-la, perdia a razão e lógica presente.

Bateu-lhe até Miréia adentrar e gritar em desespero temendo que o matasse.

- O senhor está louco.

- Ele estava... Com meu quadro!

- Não! –corrigiu a empregada atônita. – O seu quadro está no quarto, como o senhor mandou, ele estava vendo outro!

Estático, sem saber o que dizer Sonny não tinha palavras para se desculpar. Vexado e caindo de semblante só a fitou.

- Eu não podia permitir. - sussurrou envergonhado ao extremo. Mas não sentia remorso algum.

Um ambulância foi contatada e levou Maurício, que não apresentava maior gravidade apenas escoriações e talvez um braço deslocado.

Sonny estava perdendo a cabeça, a identidade, e o mais agravante é que não se importava nem um pouco com a situação.

Se fosse pra mergulhar na desgraça, sendo com ela não fazia diferença.

Era uma realidade irreal, um sentimento sem limites.

Miréia aterrada por ver o patrão em situação tão absurda, deixou o resto do medo que tinha tomar conta de seu ser, saiu dali sem maiores explicações, não suportaria nem mais um dia com aquele quadro a olhando enquanto limpava o quarto petrificada.

Abandonou seu emprego, mesmo em possuir outro trabalho garantido, sentia a morte a espreita, um sentimento sufocante e maligno.

Sonny persistia em sua trilha de obsessão.

Sua amada fazia parte de outra dimensão. Onírica, celestial talvez. Um enigma insolúvel. Onde encontra-la? Como fazê-la sua?

Viver sem ela não era mais plausível. Foi então que uma ideia iluminou sua mente.

Como uma luz no fim do túnel, ele sorria, no íntimo de seu ser.

Não poderia deixar de lutar, era seu grande amor em todas as vidas.

Foi quando lhe acometeu a coragem pela primeira vez. Saiu. Não tremia, nem pestanejava. De porte da arma.

Sorriu e segurou fortemente o tão desejado quadro.

O olhou pela última vez nesse plano. Sorriu, e puxou o gatilho.

Seu corpo lívido com um buraco na cabeça jorrando sangue abundante pendeu para o chão rápido como um cometa. Estava feito.

Rua movimentada de transeuntes, lojas, praças, feiras.

Lindo dia de sol no centro da cidade.

Uma pessoa se aproximava dos belíssimos quadros para admirar de perto.

Na loja de arte o caríssimo retrato antigo: uma jovem, se via seu rosto belo na tinta cintilante e ao seu lado segurando em sua mão Sonny pintado junto à sua musa eterna.

Agora estavam juntos. Imortalizados.

No retrato.

Helena Dalillah
Enviado por Helena Dalillah em 17/06/2011
Reeditado em 05/12/2019
Código do texto: T3039866
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