O medo

“O tempo mais longo a se passar é aquele em que sentimos medo."

- O que vai querer hoje Rain? – o alvo jovem fazia panquecas enquanto a água diluia o café.

- O de sempre Samay.- deu uma piscadela para o amigo ao sair do quarto - Apenas café.

- Você devia comer melhor.

Exibindo um largo sorriso, a amiga nada disse, degustou seu café e pegou seu artigo para lê-lo pela vigésima vez.

- Vou indo, bom dia nerd. - se despediu o amigo.

- Vai ver televisão até tarde Samay?

- Vou, querida.

- Deixa o volume baixo, e a porta entreaberta.

[...]

Deitado no sofá, o rapaz assistia a um seriado de horror, o vidro da varanda entreaberto, um vento gelado soprava.

Veio então o sono, ele se entregou sem perceber que duas figuras entravam devagar, se aproximando pouco a pouco.

- Samay.

- Que susto!- levantou-se num sobressalto.

- Acorda dorminhoco.

- Vocês parecem fantasmas.- respondeu ao casal que chegava da farra naquele instante.

- Ainda bem que deixou a porta aberta.

- Olha tem panquecas na cozinha, e vê se não levanta os mortos hoje que a Rain tem que trabalhar amanhã, entendeu Darien?

- Olha o respeito com um asmático hein.- zombou o colega espirituoso.

- A gente faz tudo baixinho. - replicou a loira.

- Ok, vou acreditar, Jenny.

De manhã Darien fazia palavras cruzadas Rain se lamentava por ter perdido seu emprego no jornal e Jenny e Samay escutavam seu desabafo.

- Ajudem ai “Perturbação resultante da ideia de um perigo real ou aparente ou da presença de alguma coisa estranha ou perigosa.”

- Medo. – respondeu Samay.

- Valeu cara. - Sorriu enquanto preenchia seu jogo.

- Gente, vou fazer compras, - comunicou Jenny. - Alguém?

- Vamos, não vou ficar mofando e chorando o emprego derramado. – se ofereceu Rain.

O dia estava nublado, como se as nuvens quisessem chorar a solidão, dando um aspecto de outono, contudo ainda era verão.

Um sinistro e obscuro verão.

Enquanto Jenny comprava, Rain a esperava na calçada, porém não viu um mendigo se aproximar, só reparou quando ele segurava sua mão.

- O que você quer?

- Cuidado. - alertou o insano homem.

- O que?

- Ele está te vendo. Você tem medo?

- Você é louco! – se desvencilhando dele correu até a loja para junto de Jenny.

[...]

- O modo como ele me olhou foi muito esquisito.

- Esquece isso Rain.

- Não Jenny, sério, você já pensou nisso? Eu morria de medo do desemprego e agora...

- Todo mundo passa por isso.

- Então Darien, mas e se fosse você? Do que você tem mais medo?

- Eu? Acho que... de morrer sozinho, ficar sozinho, sei lá. E você Rain?

- Tenho medo de insetos, grande novidade, e você Jenny?

- Acho que o fogo, é um trauma de infância, por conta do incêndio do prédio, e você Samay?

- O meu é sangue, sempre foi, sempre será.

- E aquela vez que cortou a mão? Você caiu duro no chão.

Risos entre os quatro.

De manhã, a cortina esvoaçava na varanda. O vento zumbia. Dia 13.

Uma aura cinzenta se formava. Ninguém previa sua sentença.

A palavra. Grafada no calendário em borradas letras pretas devagar se formava acima daquela data: MEDO.

Darien dormia sozinho no quarto e Jenny no sofá, pois haviam brigado.

Ele despertou com o som de alguém chamando seu nome, a porta do seu quarto se fechou num tranco.

Suspirante se sentou de um estranho pesadelo.

Quando olhou em sua parede, quatro enormes letras manchadas: MEDO.

Confuso e sonolento se levantou para olhar de perto. Não era uma miragem.

Cambaleante, se viu acometido por um ataque de asma, que não tinha há muito tempo, abriu sua gaveta procurando freneticamente por sua bombinha de ar, sem sucesso.

Em pânico e sem fôlego desabou ao chão, tentando se arrastar até a porta fechada, a voz não saía, cada vez mais debilitado, apavorado, sua pele formigava, o peito latejava, os membros perdiam a força, os lábios se arroxeavam, os olhos viravam; por fim perdeu os sentidos lívido.

Eram oito e meia da manhã. Samay despertou agitado, tivera um mau sonho com Darien.

Pálido como gesso se dirigiu ao banheiro, o vento fechava a porta novamente, ele não percebeu.

Lavou o rosto. Sentia uma estranha inquietação.

Porém, ao olhar-se no espelho, se viu todo manchado de sangue, e quando olhou o que descia da torneira, era sangue vivo.

Deu meia volta, e um escorregão na poça de água levou seu pesado corpo ao assoalho, batendo sua nuca na prateleira de ferro, colocado estrategicamente por ele mesmo dias antes.

O agoniante mal estar acometia seu ser.

Sentiu a cabeça doer, tentou se mover, mas não podia, e ao ver que se esvaía em sangue, desmaiou em pavor.

Jenny então despertara ao ter um pesadelo, foi ao banheiro sem notar que detrás do boxe estava Samay caído e sangrando.

Bateu na porta de Darien:

- Amor, tá acordado? Eu não quis brigar ontem, tá com raiva?

Sem resposta foi até a cozinha e ligou o gás, para fazer um chá.

- Cadê a chaleira?

Finalmente a encontrando, ligou o fogo, ao escorregar no liso chão se segurou no fogão, levando seu braço por cima da chama onde aquecia o chá.

O fogo foi atraído até sua camiseta e consequentemente até seu braço.

Em desespero ganiu descontrolada lutando contra a chama infernal, enfim pegando um pano abafou seu braço, e tombou desorientada.

Na lavanderia a porta se abria, a do banheiro e dos quartos como em um efeito dominó também se escancaravam. Uma a uma, como um coro.

Na cozinha tudo se revertia como que por magia, a água do chão secava, as manchas nas paredes se apagavam, o sangue, tudo.

Rain dormia profundamente, em determinado momento seu sono se transformava, num suspiro despertou assustada com o pesadelo que acabara de ter com Jenny.

Se levantou, e quase desfaleceu de pavor: por todos os lados de seu quarto, em sua cama, milhares de insetos grotescos: baratas, moscas, cobras, lacraias e besouros saracoteando aglomerados, em cima de seu corpo trêmulo.

Nunca vira tantos, e jamais sentira sensação tão agoniante em toda vida. Levando as mãos a boca nauseada, pensou que fosse desmaiar, tal não sucedeu entretanto, fechando os olhos com força, ela só desejava não estar viva, aquele instante que pareceu eterno perdurou por alguns segundos, enquanto ela respirava ritmicamente tentando se acalmar,

- Isso é mentira. - dizia a si mesma. - Estou inventando isso.

- Não tem nada ali, é só medo, e nada mais.

Abriu os olhos, ao olhar ao redor; nada havia lá, tudo tinha se dissipado, como uma visão do além.

Nenhum inseto, o chão estava limpo.

- Sente medo? - ecoou uma grave voz.

Uma horripilante figura se apresentou a ela, mostrava um rosto desfigurado, vestes rasgadas, diabólico, os olhos vermelhos brilhavam acesos como fogo.

- Prazer em conhecê-la, Rain.

- Mas...

- Eu sou aquele que você nunca quis encarar, sempre estive aqui, você sempre tentou fugir de mim, mas só hoje teve o privilégio de me personificar.

- Você é...

- O medo. Sim, bingo! Em pessoa, o único, o que domina a todos, eu os observo há tempos, minha cara, sou aquele que sempre esteve junto de vocês, de um jeito ou outro. E hoje foi o grande dia em que me apresentei. Cada dor e suspiro de vocês me fortaleceu ainda mais.

- O que você fez com meus amigos?

- Eles apenas me foram apresentados.

- Por que fez isso?

- Rain, vou te dar um presente agora, que ninguém jamais teve, você vai ter o privilégio de me conhecer. Pronta?

- Não.

De imediato ela se viu transportada para um fétido lugar, sujo, úmido como uma caverna, com um rio de sangue, simplesmente repugnante e uma penumbra mórbida.

O chão estava forrado de animais peçonhentos.

Ao virar um caminho turvo deu de cara com seu amigo Darien.

Visivelmente pálido, os olhos inchados, e os lábios escurecidos.

- Darien.

- Ele me pegou, Rain, senti o ar me abandonar. Quer saber como foi? Eu estava tão só.

- Não! Me solta!

Chutando-o se pôs a fugir, um sobressalto assim ela jamais havia provado.

- Rain, - chamou uma voz.

- Jenny?

Sua amiga desfigurada exibia uma horrenda queimadura nos braços e rosto.

- O fogo me derreteu, quer sentir isso?

- Não!

Rain fugiu adentrando outro sinistro corredor da caverna do medo.

Sentiu alguém puxar-lhe a camisa, era Samay banhado em sangue.

- Olá Rain, perdi todo meu sangue! Quer ver ?

- Ah não!

Errante fugiu sem ver por onde entrava, entrou numa lagoa, sufocada no próprio temor; tardiamente viu com espanto que era uma lagoa de sangue.

O sabor de sangue lhe invadiu o paladar, e engasgava em pânico, afogava-se. Era o fim. Tudo fenecia. Os cheiros, sons, sensações lhe abandonavam.

Quando caiu em si, sentou-se na cama, ofegante.

- Acorde, Rain! – chamavam os amigos.

- Oi, - respondeu ela num fio de voz assimilando aquele momento.

- Que sonho hein. Tudo bem?

- Eu estou bem. – sorriu aliviada vendo os seus amigos, todos bem ali, em sua frente, como sempre.

- Você nos assustou.

- Não, estou bem. – afirmou seguramente.

- Venha tomar um café, vai se sentir melhor.

E ninguém viu que da janela um ser sombrio de capuz rasgado os olhava de longe, à espreita.

Ele jamais iria embora.

E você? Do que você tem medo?

Helena Dalillah
Enviado por Helena Dalillah em 17/06/2011
Reeditado em 05/12/2019
Código do texto: T3039870
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