Carlos, o defunto

Ai, ai, ai, meu amigo o que eu não daria agora por um cigarro, mas, o que estou dizendo meus pulmões agora se acumulam vermes, eu só enxergo porque vejo sem olhos, aqui nesta fúnebre prisão eu escrevo minha memórias, cansei de bater e ninguém abrir, cansei de gritar e ninguém ouvir, afinal quem ouve os mortos?

Mas ainda conservo a vontade de fumar, pelo menos de câncer não pereço mais, mas antes de mais nada deixarei de má educação e a ti meu bom leitor vou me apresentar, ahammmm...

“Eu me chamo Carlos e sou um defunto”

O que foi? Nunca leu um defunto antes? Já deve ter lido vários porém o que escreveram antes de morrer e a maioria dos defuntos não escreve, mas eu nem sempre fui defunto, já fui uma pessoa como qualquer um de vocês que se digna a ler estas memórias póstumas, se você está com tempo, pois sente-se, puxe uma cadeira... acomode-se na sua poltrona ou cama que eu irei lhe contar como Carlos o vivo, virou Carlos o defunto...

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Tudo começou em um dia onde eu procurava emprego, já faziam sete meses que eu estava desempregado na nossa grande e bela terra da garoa. O seguro desemprego já tinha ido, os últimos centavos também e há duas semanas a paciência de minha esposa em viver na pendura, sozinho e vivendo de biscates, todo tipo, mascate, panfleteiro, homem-placa, pipoqueiro, camelô, gigolô e por último engraxate... por sorte (ou azar) naquele dia achei um jornal no banco da praça, corri olhar os classificados de empregos, onde foi ali o cerne de minha desgraça, um anúncio que dizia,

[ PRECISA-SE DE AJUDANTE NÃO CURIOSO ]

Meu amigo leitor, se você quer que alguém mexa em algo, peça que não mexa, se quer que olhe mande não olhar, pois bem queriam um não curioso adivinha os tipos que apareceram para a vaga. Nem era tão longe, liguei antes e disseram o salário, uma voz cansada de um possível velhinho, que logo perguntou se eu era curioso, eu disse “claro que não sou a pessoa mais desinteressada por coisas que não me interessam do mundo”, mandaram ir e eu fui, era uma loja estranha em uma rua estranha, na fachada dizia: “Loja de artigos raros do Sr Cheng Lou”.

Toquei a campainha e esperei, saiu de lá um chinês fedido, mal barbeado, mal encarado, velho e ranzinza.

Chegou me empurrando para dentro, pediu meus documentos e foi mostrando a loja:

- Essa loja de altigos ralos, plecisa multo culdado com cosas de Cheng Lou.

Me mostrou corredores e mais corredores de quinquilharias, entulhadas aos montes com poeira sobrando, me disse que eu precisava apenas manter a loja limpa e que eu não poderia mexer em absolutamente nada, nem fazer perguntas sobre os artigos.

Vi latas de cérebros de macacos em conserva, carne seca de cães, artigos estranhos em metal dourado, coisa que lembravam máquinas de ficção científica e outras que pareciam ser usadas para magia negra, Cheng Lou me levou até a porta no fim da loja, essa porta levava à uma escada, ele me advertiu que nunca entrasse ou olhasse para aquela porta, que eu estava proibido de entrar e até de tocar na porta.

Trabalhei ali por 6 meses, não houve dia que eu não olhasse para aquela maldita porta sem uma curiosidade absurda para ela, minha vida melhorou, eu ganhava bem, mantinha tudo arrumado e limpo e nunca fazia perguntas.

Os clientes do Sr Cheng Lou eram em sua maioria chineses, estes bem mais estranhos e sombrios que ele próprio, só conversavam em mandarim, assim o idiota aqui não se ligava nos assunto.

Sempre eram recebidos pelo próprio Sr Cheng, ele nunca me deixava atender seus clientes, nem que fosse apenas para “ablir” a porta. O ritual era sempre o mesmo, chegavam cochichavam, esmiuçavam prateleiras, se maravilhavam com as coisas, escolhiam meia dúzia de quinquilharias inúteis e depois antes de pagar bebiam quantias quase industriais de gim, misturado com um estranho chá de flores, os clientes pagavam e iam.

O mais irritante daquele emprego era agüentar Cheng Lou bêbado, ele se sentava comigo e ficava horas discursando em mandarim e eu fazendo que o entendi, sei que ele me achava um idiota, sei que ele achava todos os ocidentais idiotas.

Depois disso normalmente ele caía bêbado, abraçado à um porta retrato da Jane Fonda no filme Barbarela, como era ridículo meu patrão chinês. Nestas ocasiões eu sempre chegava perto da porta, ameaçava a abrir, eu com o passar do tempo sabia até onde ficava a maldita chave da porta, se eu quisesse.

Bem, como você deve se lembrar, eu havia melhorado de situação financeira, foi aí que minha merda começou, conheci a Rute, a linda e tenebrosa Rute, ela era gótica, se ligava em Death Metal e outras coisas estranhas como piercings espalhados pelo corpo, andar de maquiagem parecendo a Morticia Addans em tempo integral, lia autores negativos e sempre tinha um olhar que beirava o desespero e a tristeza, mas isso era tipo, Rute era meiga e me amava, a pior coisa que já fiz foi o dia que contei sobre o meu serviço a ela, ela se fez de cliente diversas vezes, mas mal foi atendida pelo velho Cheng, um,a vez comprou um sapo da fortuna e outra vez aqueles estranhos gatos da sorte de porcelana chineses, isso tudo só para poder olhar a porta amaldiçoada da loja.

Um dia na casa de Rute, sentados namorando e bebendo vinho, veio o velho assunto que ela sempre insistia, a porta do porão do Sr. Cheng.

- Amor, quando você vai olhar o que tem na porta do porão do Cheng Lou?

- Se Deus quiser, nunca.

- Você não tem curiosidade? E se ele esconder ali algo ilegal?

- Mais um motivo para eu nunca querer entrar no porão dele.

- Uma vez eu li em um jornal sobre chineses que encarceravam escravos de aldeias da China em lojas de fachada no Brasil, já pensou se ele esconde uma escrava sexual ali dentro, ou pior faz tráfico delas em horas escusas do dia? Ele é esquisito o bastante para isso.

- Bem nisso você tem razão, o Sr Cheng Lou é bizarro o suficiente para isso.

- O que você acha que tem lá Carlos?

- Não sei.

- Se você fosse chutar o que você acharia que é?

- Eu penso que ele deve guardar dinheiro dele ou de repente ele vende armas, mais um motivo para não querer ver o que tem lá, ele talvez seja um bandido perigoso por trás daquela cara de idiota, aliás tenho mais receio de idiotas do que de supostas pessoas espertas.

- Você é mesmo um cagão Carlos.

- Quem é cagão? – nessa hora ela mexeu com os meus brios, não aceitava ser chamado de covarde – Não sou cagão, sou uma pessoa de respeito, ele é meu chefe e isso são ordens.

- Há-há-há, cagão!

- Para!

- Cagão, cagão, cagão, cagão.

- Não sou sua nojenta, e vou provar isso.

- Pois prove, eu quero ver, você não é homem para entrar naquela porta e me levar junto na surdina.

- E se eu for lá dentro o que você faz?

- Duvido, se você for lá terei certeza que não é um cagão.

- Eu te levo lá.

- Vou esperar.

Depois dessa noite, a porta me parecia mais tentadora, combinei de na primeira bebedeira do Sr. Cheng Lou, eu ligaria para Rute e ela viria correndo para vermos juntos o que tem na tal porta do porão da loja do china esquisitão.

Isso nem tardou na mesma semana, Cheng recebeu um grupo de clientes VIPs, eram chineses, e para minha surpresa foram até a porta do porão e lá dentro se trancaram, ficaram lá várias horas, Cheng Lou saiu de lá muito sorridente e os outros dois chineses extremamente sérios deixaram com ele uma valise preta e se recusaram a beber com Cheng Lou, mas a felicidade de Cheng Lou era tanta que ele fechou a loja, pediu comida chinesa e se pos a comer e beber comigo, parecia uma comemoração, certamente que ele me contou tudo que havia ocorrido em seus pormenores, porém, em mandarim e eu não entendi patavina do que tinha acontecido, como previsto Cheng bebeu feito um gambá, mas desta vez eu estimulei para que bebesse bem mais enquanto eu mal bebi, quem bebeu foi o vaso com planta dele.

Quando ele caiu eu liguei para Rute. E ela veio correndo:

- Caramba! Nem achei que seria tão rápida a tua empreitada no porão de Chen Lou.

- Vamos logo antes que o coroa acorde.

Mas antes de ir eu fui ver a valise preta, abri e minha surpresa foi enorme, haviam pacotes e mais pacotes de dólares na valise.

- Carlos!!! O que é isso!!! Deixa quieto, você tinha razão, ele deve ser mesmo um criminoso internacional, vamos embora, ele deve traficar armas ou heroína, esquece isso.

- A não, quem é cagão agora Rute?

- Sou eu Carlos, to indo embora.

- Rute, vamos lá a chave já está comigo e o china está quase em coma alcoólico.

- Carlos eu admito, você estava certo vou embora.

- Volta aqui.

Mas ela não voltou, foi mesmo embora abortando o nosso plano curioso, mas ela havia feito algo terrível, havia acordado o demônio curioso que existe dentro de cada homem, me chamou de cagão e de frouxo.

Sem pestanejar, olhei para meu chefe desacordado e feliz, e rumei para a porta com a chave na mão, lentamente abri a porta e acendi a luz, uma luz fraca que dava desespero, era escuro e todo revestido de concreto as paredes do porão, teria ali algum composto radiativo?

Ali havia apenas alguns tambores de aço e alguns sacos vazios pendurados.

Olhei os tonéis de aço e vi escrito, U.S. ARMY Caution, meu Deus!

Eram mesmo armas, pensei, o desgraçado do chinês era um contrabandista internacional de armas. Resolvi sair dali, mas tropecei em um tambor menor que ali havia, que tombou e começou a vazar, um estranho gás verde, eu vi tudo apagar e desmaiei... Acordei horas depois, o gás havia evaporado tambor estava vazio.

Comecei a tossir e muito. Arrumei o barril e corri para fora daquela porcaria.

Por sorte o senhor Cheng estava ainda apagado no sofá da salinha dele, eu fechei a loja e fui embora, tossindo, deveria ser uma arma química aquilo?

Corri para a casa de Rute e contei o que houve, pulei a parte do vazamento do tambor.

- Você está suando frio, vamos ao hospital ver essa tosse.

- Não eu vou ficar bem, vai na farmácia e compra um mel com própolis para mim. Eu vou comer alguma coisa enquanto isso.

Rute foi, tentei comer mas vomitei, eu estava morrendo de frio, eu deveria estar com febre. Me enrolei em um cobertor e quando ela chegou não houve acordo. Minha cabeça zunia de dor, e eu tentei fumar, porém a tosse piorou, por fim ele conseguiu me arrastar ao hospital, arrastar mesmo porque eu não conseguia mais andar sozinho.

- Me desculpe amor, a culpa foi minha.

- Não eu que dei bobeira, tudo vai ficar bem.

Fui atendido e disse que deveria estar febril. O enfermeiro colocou o termômetro embaixo do meu braço e saiu, ficamos calados.

Em alguns minutos o enfermeiro voltou e olhou com espanto:

- Nossa! 26°C!

- Isso é ruim – perguntei.

- Isso é a temperatura ambiente, você está em estado grave, deixe-me ver seu pulso, moça, vá à recepção e espere lá por favor, eu já mando lhe chamar.

- Não eu não vou sair.

Então ele interfonou e vieram mais dois enfermeiros e um médico e tiraram Rute da enfermaria.

- Ele não tem pulso - disse o médico.

- Isso é impossível, a menos que ele estivesse morto – disse o enfermeiro.

Nesta hora minha cabeça começou a girar mais e de repente a dor parou, e senti uma fome absurda, olhei para o médico que estava próximo a mim e o agarrei e o mordi, dilacerei a jugular dele a parti para cima dos outros dois que gritaram, mas foram por mim massacrados, a fome era imensa, devorei o cérebro dos três e a então a fome passou e a lucidez me tornou, meu Deus o que eu fiz!

Corri dali ensangüentado, ouvindo gritos que vinham atrás de mim e quando alcancei a entrada vi Rute que me olhava e chamava sem enteder nada, nem quis conversar com ela com medo de matá-la também, corri até o estacionamento, onde matei um motorista que chegava, mas este eu não pude comer porque os tiros dos policiais já me perfuravam o corpo todo, vai que eu morro de novo.

Sai dali dirigindo, foi então que notei que minhas mãos estavam ficando mais duras, junto com as outras articulações de meu corpo, meu senhor eu era um zumbi, como poderia isso, que merda era aquela que eu havia inalado.

Fui pedir ajuda à única pessoa que eu achava que poderia me ajudar, o Sr. Cheng Lou, isso se eu não o matasse antes dele me ajudar, meu celular tocou, era Rute

- Amor, me desculpa, me sinto culpada por tudo isso, você matou aquelas pessoas, deve ser loucura causada pelo gás, eu contei tudo aos policiais, você precisa se entregar, então tratarão de você.

- Não tem como me tratar eu morri, eu não tenho pulso, nem temperatura, nem batimentos cardíacos, eu virei um morto vivo Rute, eu corri de ti para não correr o risco de matar você, eu sinto uma fome imensa de carne humana. Vou procurar o Sr. Cheng.

- Não amor, se entrega eles poderão te ajudar.

- Eu vou Rute, adeus.

Cheguei na casa de Cheng Lou, mas antes de entrar eu deveria comer alguém, pois do contrário mataria o velho chinês.

Assassinei dois transeuntes e depois de comê-los entrei na loja de Cheng Lou, que para minha surpresa estava devorando uma chinesa que era sua cliente, ao me ver ele gritou:

- Seu imbecil, olhe o que você fez. Você liberou o gás reanimador.

- Eu não fiz nada seu velho muquirana, eu só fui ver que merda vocêtinha lá embaixo.

- Mas não era pla você ter entlado lá deuntlo, tinha motivo para isso, o gás reanimador mata quem o inala e mantém o corpo ativo comendo calne humana por duas décadas.

- O que faremos agora?

- Não há o que fazer, plecisamos ser incinerados ou mataremos todos que vermos andando.

- Nós faremos novos zumbis dos que comermos?

- Claro que não, apenas mataremos, isso não é cinema americano seu idiota.

- Não me chame assim.

- Chamo você do que eu quiser, seu ridículo brasileiro imbecil.

Parti para cima de Cheng Lou com todo ódio que poderia ter de alguém, a culpa era dele, bati muito nele, mas não adiantou, caímos ao chão sem sentir nada, as pancadas não eram sentidas, não sentíamos nada, de repente ele olhou para porta e viu ali Rute parada chorando, seus olhos se arregalaram e gritando faminto tentou pegá-la, eu corri e o agarrei e ali ficamos nos debatento, até que Rute pegou uma espada e cortou a cabeça de Cheng, porém ela ainda se mexia.

Esquartejamos o corpo de Cheng em meio aos seus gritos, por fim resolvemos queimá-lo na churrasqueira do quintal, o incineramos inteiro, passamos dois dias na loja revezando entre atender os fregueses e comê-los, por fim tomei uma decisão.

- Rute, você precisa me esquartejar e queimar, eu já estou morto mesmo, depois você pega os dólares do Cheng e se manda para outro país e recomeça.

- Não posso fazer isso Carlos, eu não teria essa coragem.

- É arriscado ficar contigo aqui, eu quase lhe devorei ontem, eu perco o controle. Mas também ser queimado deve ser horrível, mesmo não sentindo dores como os vivos, a idéia é assustadora.

Rute só chorava, por fim eu tive uma idéia.

- Tem um caixão no depósito do Chen Lou, você me enterra em algum lugar fora da cidade, mas precisa ser rápida, eu posso te devorar nesse meio tempo.

Nisso entrou um freguês que foi atendido por Rute e depois foi por mim morto e devorado. Rute saiu correndo com uma pá, para cavar o buraco para o caixão.

Quando voltou era quase noite, eu já contabilizava 28 mortos em minha fome descomunal. Rute me enterrou, vivo, na verdade morto vivo, antes de fechar o caixão, ela me beijou e eu precisei ter muita força para não arrancar a língua dela com os dentes.

Bem desde então estou aqui, pelas minha contas já se passaram quase 18 anos que estou aqui, minhas carnes estão podres e os ossos expostos, devo estar realmente assustador, mas conservo ainda a vontade de escrever e de fumar, a fome nunca passou, ai ai, o que eu não daria por um trago de cigarro, um gole de cerveja e um bom pedaço de carne, será que Rute um dia volta? Que vontade daquela língua.

FIM

lordbyron
Enviado por lordbyron em 24/06/2011
Reeditado em 24/06/2011
Código do texto: T3054025
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