A Passagem

Decidi ir para o campo com o intuito de aliviar-me, ao menos parcialmente, do terrível peso que sobre mim recaía. Sei que o perspicaz leitor entenderá que o peso a que me refiro não é simplesmente físico, mas de uma espécie um tanto mais sutil, qual seja, psíquico e espiritual. Creio, não obstante, que o mesmo leitor considerará tudo um completo absurdo, no momento em que eu revelar no que se constitui semelhante “peso”. O que insanamente pesava sobre meu mundo emocional e sobre a totalidade de meu espírito eram idéias, sentimentos e intuições intimamente ligados à Dor e ao Mistério Universal. Era como se eu fosse um homem amaldiçoado, condenado a sofrer internamente tudo aquilo que atormenta a humanidade através de seus trágicos milênios, atingindo limites insuspeitados, até mesmo rompendo as barreiras humanas.

Sim, porque eu também captava os sentimentos de outros seres, animais e vegetais, dos elementais da natureza, e quem sabe até onde chegaria a minha assimilação da dor alheia, que, no fundo, não era inteiramente alheia, mas minha também. Todas as tragédias que assolaram, e ainda assolam, o ser humano, desde às guerras às misérias, das catástrofes aos genocídios, das fatais descobertas às insondáveis dúvidas, dos amorosos fracassos às modernas degenerações, tudo isso vinha devorar-me as entranhas. Eu me sentia plenamente culpado por todos os erros, por todos os crimes, o remorso caía-me como uma nuvem negra e pesarosa, contra a qual era inútil lutar. E por trazer comigo essa anômala e injustificada culpa, naturalmente ansiava de forma desesperada por tentar solucionar todas as cósmicas questões que me perturbavam, realizando um ato definitivo de salvação. Porém, compreendi, obviamente, que isso me era absolutamente impossível.

E ia ainda além o meu comportamento de perfeita insânia, pois sobre a culpa eu carregava também o desejo irrefreável de obter respostas irrefutáveis para todas as dúvidas e mistérios que pululam na alma humana, de retirar o véu de todos os arcanos, de decifrar todos os segredos. E essa singular perturbação de minha psique, conforme já mencionado, lançava sombrio galhos por sobre todo o mundo natural. De modo que eu também sentia em meus ultra-excitados nervos a dor das florestas arrasadas, dos animais massacrados, dos rios aniquilados, dos ares contaminados, enfim, de todos os entes, habitantes físicos ou não, do império da natura. Era como se eu fosse todos eles.

Desconhecendo a origem de tão doentio e insuportável comportamento anímico, dessa anomalia psíquica que de maneira cruel me afligia, parti rumo à própria natureza, a um local onde ainda se encontrava integralmente preservada, buscando um bálsamo a minha legítima dor cósmica. Ao penetrar naquelas estâncias onde ainda palpitava a vida pura e triunfante, isolada da decadência das regiões urbanas, automaticamente fui recebendo um sagrado lenitivo ao meu sofrimento, pois não desejava cura, sabendo-a inviável, mas tão-somente um benigno alívio.

Ali, eu não me encontrava apenas situado entre plantas e animais, porém profundamente submergido em um mundo de autêntica paz, equilíbrio, inocência e harmonia, espiritualmente integrado com as sábias almas das árvores, com o inefável canto das aves, com os inescrutáveis rumores vivos dos rios, com a inquietante presença invisível de mamíferos, répteis e anfíbios, ocultos e silentes, porém conscientes e atentos nas sombras santas da mata. Como já afirmei, sentia-me fazendo parte de todos eles.

E fui, então, penetrando mais e mais na mata, até que, em um trecho muito fechado do denso bosque, escutei um som de fortes correntezas. Parti em direção ao som e minutos depois avistei um belíssimo rio de límpidas águas. No local em que me situava, o rio apresentava um trecho de rápidas corredeiras, mas, descendo um pouco, encontrei uma parte em que seu leito se alargava, formando uma espécie de piscina natural orlada de grandes lajes de pedra, onde a água tornava-se bem mais plácida, convidativa a um bom mergulho. E foi o que fiz, estimulado pelo forte calor de verão. Contudo, ao mergulhar naquelas águas, fui tomado por um alucinante sobressalto. Dificilmente conseguirei transmitir uma idéia cabal da simultaneidade das estranhas sensações por que passei.

Logo ao entrar no rio, senti que sua temperatura era relativamente elevada, um tanto morna, o que não era de se esperar em um rio cujas águas estavam totalmente cobertas por uma densa sombra. Ao mesmo tempo, percebi uma intensa luminosidade por entre a água, e então abri os olhos. Ao fazê-lo, constatei que tranqüilamente eu poderia manter meus olhos abertos naquele ambiente aquático sem a mínima dificuldade. Ainda mantendo a respiração presa, para meu estarrecimento, naquela absurda simultaneidade, dei-me conta que aquele peso psíquico-espiritual que sobre mim pairava representou-me agora tornar-se um terrível peso físico, um peso que me fazia afundar, sem que evitar eu pudesse, por mais que eu oferecesse resistência.

Desesperado, senti-me lenta e implacavelmente submergindo mais e mais naquelas águas claras em demasia, de modo que, não podendo mais reter a respiração e compreendendo que iria afogar-me, abri a boca. Mas ao fazê-lo, sobreveio-me um inclassificável alívio... Eu podia respirar sob a água! Sim, ao inspirar, o que entrava em minhas narinas e pulmões era ar e não água. Todavia, continuava afundando, aquele peso avassalador carregava-me para o fundo do rio, e eu mal podia imaginar o que me aguardava...

Meu ritmo de imersão era bastante lento, mas pensei que já devia ter atingido o leito há muito tempo, pois era impossível que o rio fosse tão profundo. No entanto, após tantos acontecimentos insólitos, nada mais me surpreenderia. Mantendo sempre os olhos abertos sem o mínimo incômodo e respirando com absoluta normalidade, principiei a dispensar mais atenção aos meus aquáticos arredores. A luz agora se mantinha constante, cessara de crescer, e, ao longe, como se eu estivesse nas águas de um mar, observei gigantescos cardumes de peixes de variados tipos e tamanhos. Algumas espécies eram conhecidas, outras não. Também vi tartarugas, cobras d’água, creio que até mesmo um boto e um jacaré, bem distantes.

Afinal, qual seriam o diâmetro e a profundidade daquela “piscina”? Eu ainda estaria nela ou agora me achava em remotas e absurdas regiões? E à medida que descia a maiores profundidades, comecei a divisar outras categorias de peixes e répteis, que me eram completamente desconhecidos e estranhos, de uma estranheza inquietante. Nem mesmo em livros havia visto coisa semelhante àquilo. Aliás, alguns deles nem pareciam ser peixe, réptil, anfíbio ou mamífero. Notei também que a luz iniciara a reduzir-se, e ao olhar para baixo, assustei-me quando percebi que em uma profundidade aparentemente muito distante, não havia mais luminosidade, mas somente uma enigmática e horripilante escuridão. Até então, encontrava-me relativamente sereno, porém após tal visão, fui tomado de um intenso nervosismo. Mais uma vez tentei combater aquele impiedoso peso que me impelia para as profundezas, e outra vez foram inúteis meus esforços. Resignei-me então, e preparei a alma para o que estaria a minha espera...

A partir desse instante, a redução da luz tornara-se indiscutível, e as categorias de seres que agora observava eram ainda mais bizarras, absurdas até, embora de muitos deles, pela pouca luminosidade, eu apenas percebesse seus vultos espantosos. Tais animais aparentavam ser muito antigos, realmente pré-históricos, de alguns até tive a sinistra impressão de já tê-los visto em livros de Paleontologia, o que me causou perdurável assombro. Aqueles seres esquisitos, muitas vezes, passeavam diante de meus olhos, miravam meu rosto de uma forma inquisidora, pelo menos essa foi minha impressão, como se quisessem saber quem eu era e/ou o que fazia ali. Suas faces eram verdadeiramente inauditas, anormais, estarrecedoras, jamais havia presenciado peixes, ou o que quer que aquilo fosse, com olhos tão imensos e exorbitantes, de absurdo comprimento ou demasiada largura, muitos de cores aberrantes, outros, completamente negros.

Prosseguindo minha descida àquelas abismais regiões do mistério cósmico, atingi um ponto aterrador, onde a treva imperava em plenitude. Sem a mínima luminosidade, não via absolutamente nada. Tampouco ouvia qualquer espécie de manifestação sonora. No entanto, a ausência de visibilidade não perdurou por muito tempo, pois em determinado momento, por entre a espessa escuridão, principiei a distinguir a formação de certos cenários como que suspensos e meio à treva. Eram cenários onde se desenrolavam acontecimentos, os quais consistiam em fatos históricos, pelo menos a maioria deles. Porém, outros, não sei dizer se realmente o eram, pois não os conhecia. E quando digo que não os conhecia, é porque semelhantes acontecimentos não se encontravam relatados em nenhum tipo de compêndio de História, e creio que é assim porque consistem em ocorrências extremamente antigas e, por isso, estão fora do conhecimento dito científico.

Mencionarei apenas algumas de minhas visões desses fatos, as mais relevantes, pois foram tantas e tão diversas e ao longo de tão imenso intervalo de tempo (que foi calculado somente psicologicamente, pois não possuía relógio para determiná-lo com precisão) que seria completamente inviável relatá-los em seus pormenores. De modo que, conforme avançava em minha submersão que parecia eterna naquelas águas escuras e mornas, tive, dando início à histórica série, a visão do desastre do Tsunami na Ásia, seguido pelo atentado às torres gêmeas nos EUA. A seguir, sobreveio uma cena de brutal devastação na floresta Amazônica.

Essas foram algumas das visões mais contemporâneas. Depois delas, menciono uma relacionada à 1ª guerra no Golfo Pérsico, outra onde desfilavam ante meus olhos os horrores da fome na África, outra ainda sobre o apocalipse da Guerra do Vietnã etc... Logo após, vi os holocaustos da 2ª Guerra Mundial, a Revolução Socialista no início do século... Assim, cheguei ao século XIX, do qual pude contemplar cenas de seus inúmeros conflitos, dos ilusórios progressos científicos, das grandiosas manifestações artísticas frutos do movimento romântico, a Revolução Industrial, as batalhas napoleônicas. Ao chegar ao século XVIII, divisei, na escuridão infernal daquele rio sem fim, terríveis momentos da Revolução Francesa; do século XVII, vi a ostentação das grandes cortes dos monarcas europeus; do século XVI, toda a glória do Renascimento em suas múltiplas manifestações, vislumbrei a descoberta e colonização da América, as grandes viagens marítimas, até que atingi a Idade Média. E passei a contemplar toda a magia e misticismo da época, os castelos, os feudos, os cavaleiros andantes, magos e alquimistas, as batalhas entre árabes e espanhóis, as cruzadas à Terra Santa, os povos bárbaros... Ao mesmo tempo, presenciei o desenvolvimento das civilizações pré-colombianas na atual América.

Até que o triunfal Império Romano se descortinou ante meus olhos perplexos, com toda sua força e esplendor. Em um primeiro momento, vi sua decadência, para em seguida atingir seus áureos tempos de marciais e soberanas conquistas. Entre esse período, fui mais um observador da crucificação do Cristo e do drama de sua Paixão. Voltando ainda mais no tempo, vi-me em plena era da soberba civilização grega, com seus sábios e gênios na arte, ciência e filosofia, com sua portentosa riqueza mitológica.

E passei a vislumbrar o Oriente e toda a glória e exuberância de suas vetustas civilizações, desde Buda e suas lendárias andanças, até o mistério dos Vedas hindus. Instantes depois, era como se me encontrasse presente no enigmático Egito Antigo, conhecendo a construção das pirâmides, o brilho dos faraós, as escolas iniciáticas em seus indecifráveis arcanos, e assim fui, de época em época, não só submergindo nas águas, mas também nas eras, como se naquelas visões eu vivenciasse o que há muito fora esquecido, pois após o Egito, vi coisas de que não se há notícia, a não ser nas tradições ocultistas, como antigas civilizações estranhas que teriam se desenvolvido no centro da Ásia, no Sudeste Asiático, no centro africano, em uma imemorial América, com costumes, ideais e hábitos de vida completamente alheios aos atuais, lendas perdidas no desfolhar das infinitas eras.

E finalmente as históricas visões chegaram ao fim. De modo que pude contemplar novamente certa cintilância entre as águas, era a luminosidade que retornava e alastrava-se gradualmente por todo o ambiente. Porém, além das águas, não via mais nada, nenhum ser. Mas tive a impressão de estar atingindo a superfície, talvez voltando ao ponto de partida. E, de fato, momentos depois, eu me encontrava saindo do rio, não de ponta-cabeça (isto é, em posição invertida), como se poderia imaginar, mas de forma normal.

Talvez, em algum instante que não pude perceber, ocorrera uma inversão de minha posição, e o movimento de descida mudou de sentido, quer dizer, passei a subir e não mais a descer... Mas isso é apenas uma hipótese. Não obstante, ao sair do rio, verifiquei que este não era o mesmo em que entrara, que não era o mesmo local de anteriormente. Ainda era uma floresta, mas agora de aspecto assombrosamente não-familiar, muito ancestral, eu diria. Tudo ali transmitia uma profunda sensação de antigüidade, de algo pré-histórico. Uma vegetação exuberante se alastrava, com árvores gigantescas e de aspecto muito singular. Não pude reconhecer nenhuma espécie. Ouvia cantos de aves, mas, da mesma forma, nenhum deles identificáveis.

Era tudo tão bizarro que me insuflava um temor inevitável do desconhecido. Aquilo parecia um outro mundo. Teria eu viajado para alguma outra parte do planeta? Ou do tempo, quem sabe? A essa altura, tudo era possível. Após tais questionamentos, observei um animal, algo como um pequeno mamífero, e, este sim, eu já havia visto... em livros de Paleontologia, descrito como extinto há milhões de anos... Nesse instante, meu espanto foi completo. Ainda caminhei por alguns metros por entre a selva, até que divisei na grama algo como uma chave, muito bonita e diferente, integralmente prateada e brilhante, em excelente estado de conservação, sugerindo que estaria ali há bem pouco tempo. Apanhei-a e mantive-a em minhas mãos.

Porém, meu assombro se exaltaria ainda mais quando presenciei aquele horror inacreditável... Após ter ouvido um som absolutamente insólito, vislumbrei acima das árvores e a grande altura, uma terrível nebulosidade. E pior, que eu já conhecia de fotos. Era o nebuloso cogumelo de uma explosão atômica, exatamente como as traumáticas experiências do século XX. Aquela nuvem apocalíptica da infernal explosão crescia e se expandia rapidamente nas atmosferas, e compreendi que em breve, muito em breve, aquele local em que me encontrava seria inundado pela maligna radioatividade.

Não pensei duas vezes e atirei-me novamente no rio como um desvairado. Por conseguinte, senti que outra vez aquele conhecido peso psíquico espiritual voltava a me assolar de forma física, e reiniciei meu processo de imersão. Tudo ocorreu de idêntica maneira que a anterior, só que ao contrário. Assim, contemplei inicialmente as imagens ancestrais, para ir, paulatinamente, avançando no tempo, até atingir a época atual.

Contudo, o desfile das imagens não cessou nesse ponto. Prossegui por um intervalo de tempo relativamente curto, bem curto, onde, creio, fui presenteado com catastróficas visões do futuro, onde só reinava o horror, a morte e a destruição. Por fim naquele processo já conhecido, cheguei à superfície do rio. Porém, agora, o que vi, gelou-me até as mais íntimas fibras do espírito...

Ali, cercando o rio, não havia nada, a não ser um cenário desolado, de aniquilação absoluta. Somente terra, terra negra, lodo repulsivo, sob um céu deprimente de total escuridão, de onde descia uma névoa malevolenta. Nenhuma árvore, nenhuma planta, nenhum ser, nenhum som, nem mesmo do vento. Aterrado e respirando com dificuldade, durante alguns minutos, caminhei penosamente, até que, para certo alívio, se é que isso era possível, divisei, ao longe, uma imensa e frondosa árvore. Ofegante, dirigi-me até ela. Minha pele queimava, meus olhos ardiam, minha respiração transformava-se em estertores, mas consegui chegar até a árvore. Misteriosamente, ela mantinha-se absolutamente intacta em meio a tanta destruição e em ambiente tão hostil.

Era um vegetal imponente, de majestático e respeitável aspecto. Não me era conhecida sua espécie. Aparentava não sofrer em nada com a chocante nocividade daquele local, e suas folhas irradiavam vida e saúde, em luxuriante exuberância. Aproximei-me ainda mais da árvore e percebi em seu tronco que havia uma espécie de pequeno orifício. Pude então identificá-lo como uma espécie de fechadura. Obviamente, de maneira imediata, associei-a à chave, que ainda carregava comigo. É desnecessário que eu diga que meu primeiro impulso foi exatamente o de experimentar a chave prateada na suposta fechadura. E ao fazê-lo, de forma instantânea, assomou-se ante mim um surpreendente cenário de uma outra floresta, e ainda percebi que não só a contemplava, como também me encontrava em seu interior. Olhei ao redor, observando com extremo cuidado toda a selva, seus mínimos detalhes.

E novamente uma insólita sensação apoderou-se de meu espírito... Tudo ali era bizarro, árvores nunca-vistas, plantas rasteiras completamente anormais, cantos de pássaros não só desconhecidos, mas além disso, absolutamente inacreditáveis... Isso sem falar naqueles dois seres, que eu classificaria como anfíbios gigantes, que se ocultaram na estranha mata, devido a minha presença, creio. Porém, a sensação de que falo agora não era de antigüidade, de coisas pré-históricas, mas justamente o contrário... de inaceitáveis irradiações futurísticas; minhas intuições eram invadidas por uma absurda sensação de um longínquo futuro... O qual, não obstante, transmitia-me completa e injustificada impressão de segurança. E foi com essas categorias de sensações que, com estranha serenidade, avancei lentamente pela absurda selva, na deliciosa expectativa pelo que me reservaria o Mistério do Cosmos...

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 04/07/2011
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