O Sanguinário (ou Vingança é Sede)

Criado dentro dos açougues e dos matadouros, acostumou-se à visão, ao cheiro e ao gosto do sangue. Mais que se acostumou, aprendeu fatalmente a apreciá-lo, a saboreá-lo, a desejá-lo. Desde criança, sua vida foi imersa na presença sanguínea, em meio ao aroma da morte, às carnes cruas sanguinolentas, às poças escarlates pelo chão, ao gotejar incessante do sagrado líquido orgânico. Vivia o sangue durante o dia e sonhava com ele durante a noite.

Seus sonhos eram constantemente regados de uma chuva sanguínea, e as suas paisagens oníricas sempre variavam em tons de vermelho, por vezes incendiados, por vezes úmidos, pelos céus, pelos horizontes, onde, ao longe, bandos de corvos disputavam espaço em açudes inundados de sangue, pelos campos sem termo devastados por batalhas, pelas estradas encharcadas do sangue de todas as guerras, pelos rios tingidos de um vermelho infinito, que nunca cessava de correr, que parecia provir de todos os lugares.

Nestes mesmos sonhos, ele contemplava cenas de sangrentas batalhas impiedosas, espadas e adagas perfurando peitos e cortando gargantas e decepando mãos, punhaladas que arrancavam nacos de carne, tiros que estouravam cabeças, furavam olhos e espalhavam pedaços de órgãos pelas coxilhas banhadas de sangue.

Sempre auxiliava seu pai nas carneadas, vibrava em seu âmago um imenso prazer nesses instantes, deliciava-se em matar bois, ovelhas, porcos, observar em profunda concentração o sangue escorrer quente e grosso, respigando sobre suas próprias roupas, sobre suas mãos, sobre sua face. Sentia sede e fome ao ver as bacias que eram colocadas para acumular o sangue das vítimas transbordarem com aquele viscoso líquido, que corria profuso das gargantas dos animais. Era invadido por um anômalo prazer ao ver o sangue coagulando-se juntamente com a terra, ao observar os cachorros pintados pelo líquido sanguíneo disputando e dilacerando brutalmente as vísceras que a eles eram jogadas para saciar sua fome bestial, tais como intestinos e pulmões. Naqueles momentos, ele desejava ser como os cachorros.

Seu prato preferido era, naturalmente, carne, carne mal-passada, quanto mais mal-passada, melhor. Crua sempre era bem-vinda. Seu prato estava sempre sanguinolento. O sangue que restava após as refeições era comido com pão.

Durante toda sua adolescência, foi considerado como alguém frio e violento, que não hesitava bater em qualquer outro que cometesse qualquer ato que ele percebesse como sendo injusto, seja consigo mesmo, seja com outros. Batia violentamente, até fazer a vítima sangrar. Muitas vezes tinha que ser impedido, ou acabaria por assassinar seu oponente. É importante salientar, no entanto, que ele nunca agredia alguém sem motivos que ele acreditava serem justos. Mas agredia por vingança. Para ele, a vingança era algo sagrado. Homem que fosse homem não poderia deixar passar em branco qualquer tipo de desaforo. Deveria se vingar. Nem sempre a vingança se consumava com agressões físicas. Mas ele preferia que assim pudesse ser. E quase sempre era.

Este de quem agora vos falo ficou conhecido como “O Sanguinário”. Foi em 1893, com 20 anos, que O Sanguinário ingressou nas fileiras dos Maragatos durante a Revolução Federalista, que tingiu de vermelho os campos do sul do país. Finalmente, estava naquilo que mais desejava: a guerra. Nutria um ódio visceral, verdadeiramente espantoso contra os partidários da situação, os pica-paus, ou chimangos. Seu objetivo na guerra era extremamente simples: matá-los. Se fosse possível, todos. De preferência, matá-los com um banho de sangue. Nada poderia ser mais prazeroso para ele. Tinha predileção por matar com a espada ou com o punhal do que com armas de fogo. Era mais sangrento e mais impiedoso. Refestelava-se em ver o sangue quente e espumoso derramar-se sobre o gelo da geada dos campos gaúchos. A névoa que se erguia com aquele contato do calor do sangue com o frio do orvalho congelado era para O Sanguinário um verdadeiro espetáculo. A carnificina era o seu meio natural.

Durante o conflito, O Sanguinário matou 117 chimangos, vários deles durante as degolas de prisioneiros, ocorrência bastante comum na Revolução Federalista. Os prisioneiros tinham suas gargantas cortadas como forma de execução não exatamente por crueldade, mas porque não havia meios de mantê-los durante a guerra, e também era uma maneira de poupar munição, não se utilizando de balas. E essa forma sangrenta e impiedosa de matar um prisioneiro era, naturalmente, a preferida de O Sanguinário. Sempre que ocorriam degolas (e ele sempre sugeria para seus superiores que elas deveriam ocorrer o quanto antes), ele era o primeiro a degolar e o que degolava mais prisioneiros, sempre de forma extremamente brutal, fazendo jorrar sangue das gargantas para todos os lados, como se carneasse um animal qualquer. Não, de forma ainda mais violenta do que o faria com um animal, porque seu ódio naqueles instantes era verdadeiramente indizível. Porém, era um ódio frio, sem extravasões além do ato de matar, sem gritos, sem emoções de êxtase. O Sanguinário matava e, depois, praticamente embebido no sangue das vítimas, fixando seus grandes olhos de uma frieza glacial em seus companheiros de batalha dizia, calmamente, com uma calma que assombrava: “eles mereciam, cada um deles mereceu o que teve.”

O Sanguinário, como já foi dito, matava sempre por vingança. Matando os partidários da situação, ele entendia que se vingava daqueles que exploravam ou permitiam a exploração do povo gaúcho da época, daqueles que enriqueciam à custa da miséria dos trabalhadores do campo. Seus motivos eram justíssimos. E todos deveriam pagar com a morte. Mas esses atos de morte por vingança eram também o motivo da vida de O Sanguinário. Se não houvesse os motivos acima mencionados, ele encontraria outros motivos para saciar a sua monstruosa sede vingativa. O importante era a vingança. Havia em O Sanguinário um desejo de vingança infinito, nunca plenamente satisfeito, algo que nem mesmo ele sabia explicar, e nem buscava fazê-lo, e nem queria. No entanto, ele não se vingava de ninguém se não encontrasse um motivo justo. Justo no seu entender, que fique bem claro. E ele acabava sempre por encontrar um motivo. E se justificava. E se vingava.

E não havia, para ele, sentimento melhor do que o de sentir-se vingado, era o seu céu, a sua glória, a sua religião, a sua filosofia, o seu motivo de manter-se vivo e de acordar todas as manhãs. E o cheiro da vingança era o cheiro do sangue, a sua cor era a vermelha, o seu gosto, o gosto do sangue. Se não houvesse sangue, a vingança não teria sido plena. E quando O Sanguinário sentia-se plenamente vingado, saboreava o gosto da vingança durante todo o tempo em que se mantinha acordado. Aliás, dormindo, também sonhava com sua vingança concretizada.

O Sanguinário pensava (não exatamente com estas palavras, mas traduzindo para uma linguagem mais civilizada, seria mais ou menos isso): “Estar vingado... Sentir-se grande, sentir-se forte, sentir-se firme, ter orgulho e ser temido. Rir por último. Ver os desgraçados ajoelhados aos meus pés implorando piedade. Eu não tenho piedade! Isso, estar vingado! Mostrar a eles quem eu sou, a minha força, a minha vitória. Mostrar que sou mais forte que todos eles e que não levo desaforo para casa! Acabar com o riso na cara daqueles desgraçados, acabar com a alegria deles. Estavam pensando que eu iria esquecer, que iria deixar por isso mesmo, que tudo ficaria assim enquanto eles se divertiam às minhas custas? Mostrei que eles se enganavam, vi eles sofrendo como eles me fizeram sofrer, fiz eles pagarem pelo que fizeram, fiz justiça com o fio da minha adaga. Naquele sangue derramado está a minha alegria, agora me sinto em paz, agora é que vi que tudo que passei e sofri não foi em vão. E não me arrependo. Mataria todos aqueles desgraçados quantas vezes fosse preciso. Pensavam que poderiam cagar em mim e que eu não faria nada... Pensavam que aqui não teria homem e fibra o bastante para uma vingança... Mas eu esperei o momento, alimentando a minha raiva, e me vinguei. Estou vingando, e é só isso que importa.”

Em 1930, com 57 anos, depois de participar de vários outros conflitos e revoluções e ter perdido a conta de quantas pessoas já havia matado, de quantas vinganças cruéis já haviam perpetrado, O Sanguinário contraiu tuberculoso e recusou-se a receber qualquer tratamento contra a doença: Dizia: “Eu quero morrer assim mesmo, esvaído em sangue, só que esse sangue não será nenhum outro homem que derramará... O meu sangue ninguém derrama, e nele ninguém toca. Agora o destino se vinga de mim. Deixa ele se vingar. Vou morrer no meio do meu sangue, mas derramado pela mão do destino, não pela de um homem. É assim que quero. É assim que será.”

E assim foi. O Sanguinário morreu esvaído em sangue, após uma brutal crise de hemoptises causada por uma tuberculose galopante. E sanguinária...

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 11/07/2011
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