A Tempestade Sem Fim ou A Vingança do Incompreensível

Sentia-se uma negra depressão de espírito, um desânimo desolador, um intenso desespero ao contemplar-se todos aqueles habitantes da pequena cidade de Aswalennes. Andavam pelas ruas como autômatos adormecidos, em profunda inconsciência. Realizavam todos os atos do cotidiano em uma decadente e brutal insensibilidade, eram como zumbis que mecanicamente viviam, sem saber o porquê de suaS existências inúteis. Observando-se com atenção toda aquela gente, era-se invadido por uma “insuportável tristeza”, como diria Poe, e percebia-se de forma contundente a que ponto chegou a degeneração, o embrutecimento dos seres humanos em nossa atual época. Viviam por viver, ou talvez nem por isso...

Não havia sentimentos naqueles seres, não comportavam ideais, nem uma gota de autêntica espiritualidade. Consistiam em verdadeiros mortos-vivos, comendo, bebendo, dormindo e procriando como animais, ou abaixo destes, sem dúvida, uma vez que a tudo desarmonizavam, desequilibravam, destruíam estupidamente. Seriam aquelas pessoas seres dotados de almas ou algo semelhante? Aqueles entes semi-robóticos pareciam seguir fielmente a um programa pré-estabelecido, programa este que fazia todos pensarem da mesma forma, a terem gestos iguais, a submeterem-se a padrões de moda e a considerarem como desprezível tudo o que fugisse às degradantes regras gerais, em absurdas idiossincrasias. De modo que todos apreciavam as “músicas” mais degeneradas possíveis, destituídas de profundas emoções e de real sensibilidade. Liam tão-somente, se é que liam, os mais imbecilizantes textos, assistam aos programas televisivos mais corrompidos e julgavam todas essas imundas pragas como as melhores criações humanas.

Sentia-se intensa repugnância e verdadeira dor contemplar-se aquelas crianças, jovens e adultos, homens e mulheres, brancos e negros a decaírem cada vez mais no lodo da vida sem sentido, na podridão de uma acomodação vergonhosa, em existências desgraçadas e dissimuladas em falsas “alegrias” de consumo e, o que é ainda pior, sendo tais desgraças e dissimulações levadas na estúpida brincadeira, onde tudo não passava de uma festa bestial. Que espetáculo deprimente! E nada podia ser feito, a não ser baixar a cabeça e aguardar o final... E todos brincavam no completo retardamento, enquanto o planeta agonizava aos gritos, enquanto a injustiça e a miséria imperavam soberanas, enquanto os olhos escuros da morte espreitavam por todos os cantos... Mas nada, absolutamente nada era capaz de retirar da lama aqueles seres idiotizados, nada poderia erguer suas faces corrompidas, nada poderia impetrar qualquer sentimento de elevação naqueles corações carcomidos pelos vermes do materialismo. Haviam-se habituados ao horror inconscientemente, tudo era normal.

E foi naquele cenário aflitivo de vulgaridade e desolação, que certo dia, de uma hora para outra e sem a menor explicação lógica, o céu escureceu assombrosamente e pesadas nuvens inteiramente negras e ameaçadoras dominaram toda a atmosfera, carregando-a de maneira assustadora de um clima de tempestade iminente jamais percebido em qualquer local do mundo que se tenha notícia. Aquele horror nos céus não fora previsto por nenhum serviço de meteorologia, nem mesmo chuva era esperada, quanto mais aquelas nuvens quase que inacreditáveis, sobrenaturais. Elas surgiam rapidamente, vertiginosamente, de todos os lados do horizonte, trazidas por frios e insanos vendavais avassaladores que jamais cessavam. E principiou uma infernal constelação de terríveis relâmpagos, raios pavorosamente ramificados que ocasionavam um retumbar de trovões que fazia sacudir as residências, amedrontando como nunca todos os moradores de Aswalennes...

Os aswalennenses jamais presenciaram tamanha e tão funesta preparação para uma tormenta. O dia tornara-se noite, somente iluminado pelos hercúleos relâmpagos, enquanto o vendaval uivava furioso, arrancando árvores e postes, destelhando casas, derrubando pessoas pelas ruas. Um clima pesaroso, de tragédias e maus-presságios tomou conta de toda a região, e os moradores recolheram-se em pânico a suas casas, suando frio, alguns tremendo, quase projetando seus olhos para fora das órbitas oculares; um nervosismo incontrolável apossara-se de toda a população. Perguntavam-se o que era aquilo, o que iria acontecer, as residências seriam destruídas pelos raios, viria um tenebroso furacão ou um dilúvio bíblico... Curiosamente, não choveu uma gota nos dias subseqüentes, pelo menos até o 5º dia. Não obstante, o clima opressivo da tempestade não se alterou em absolutamente nada. Apesar das devastadoras lufadas de vento, as nuvens negras pareciam não sair de seu lugar, e prosseguiam os aterradores raios e trovões, com inúmeras casas já queimadas ou destroçadas pelos mesmos. Contabilizavam-se as primeiras vítimas daquela catástrofe, mortas pela força implacável da ventania, pela violência dos raios ou simplesmente pelo próprio medo abominável.

Torna-se claro que toda a cidade deixou de funcionar, todas as atividades e trabalhos foram suspensos, pois a população inteira encontrava-se estarrecida e amedrontada em suas casas. Não se sentia outra coisa, a não ser medo e dúvida...

E sucedeu-se que no 5º dia, após um período arrasador de ameaças e destruições “a seco”, uma chuva torrencial caiu sobre toda a região, alagando as ruas da cidade. No entanto, a chuva não perdurou por mais de meia-hora, para em seguida cessar totalmente, permanecendo sem chover por cerca de 5h, durante as quais não se vislumbrou o menor indício de melhoria do tempo, muito pelo contrário, o céu encontrava-se mais negro do que nunca, e os vendavais, ainda mais enfurecidos e perigosos. Passadas as 5h de agonia, uma nova torrente de chuva caiu implacável por mais meia-hora. Tal quadro permaneceu quase que inalterado por mais 5 dias, ao fim dos quais a violência dos ventos e dos raios deu sinais de redução. Porém, o céu mantinha-se em sua odiosa escuridão, e o sol, durante esse período, mal permitia que se distinguisse se era dia ou noite. Os intervalos de chuva continuaram exatamente como antes, com absurdas pancadas de meia-hora de 5 em 5 horas. De modo que com o aplacamento da fúria do vento e dos relâmpagos, as destruições por eles ocasionadas também se findaram. Não obstante, no 12º dia da tempestade, o surgimento de um quadro dantesco chocou de forma peremptória os habitantes de Aswalennes...

Foi dito que todas as famílias estavam reunidas em suas casas, mas conforme se acalmava o temporal, foi necessário que alguns deixassem suas residências para obter alimentos. Cada família decidiu que um ou dois de seus membros fossem até os mercados. Alguns destes decidiram reabrir suas portas, outros, que não o fizeram, foram saqueados. No entanto, melhor seria que os desgraçados que saíram às ruas houvessem permanecido em casa... Tais pessoas cumpriram com sua incumbência, trouxeram os alimentos, porém, passadas duas ou três horas após seu retorno, principiaram elas a ouvir os trovões de uma forma extraordinária, como se fossem explosões abomináveis, quando na verdade eram sons normais e inofensivos.

Isso ocorreu com todos os que saíram às ruas, sem a mínima exceção. Seus familiares não conseguiam entender o que estaria acontecendo, posto que para eles os trovões pareciam soar distantes. Contudo, as vítimas berravam devido à dor nos ouvidos, tamanha era para elas a intensidade anômala dos sons, gritando que seus tímpanos iriam estourar... O que de fato aconteceu. E ao arrebentarem, a dor nos ouvidos se intensificou em paroxismos, os infelizes berravam e blasfemavam em insuportável desespero, até que seus ouvidos explodiram em torrentes de sangue, numa trágica e brutal visão contemplada pela estúpida impotência de seus familiares.

Entretanto, o horror não se estancou nesse ponto. As vítimas, já com seus ouvidos destruídos e obviamente surdas, sentiram que a dor iniciara a reduzir-se, o que não significou consolo no estado em que se encontravam. Até porque algo pior estaria por vir. Instantes depois, um outro fenômeno monstruoso veio a afetar os desafortunados que caminharam sobre aquela negra, funesta, maldita atmosfera da tempestade infindável. Que maldição carregavam aqueles ares insanos? Que espécie de desgraça recaiu sobre aqueles miseráveis? Sim, porque seus olhos passaram a sofrer de uma terrível sensibilidade à luz dos relâmpagos, que em verdade eram relâmpagos de luminosidade completamente normal. No entanto, para as vítimas, constituíam aqueles raios em uma luz infernal, um brilho diabólico que cegava seus olhos. Cada relâmpago que se alastrava pelos céus causava um choque demoníaco nos olhos dos infelizes, ocasionando uma dor ainda mais dilacerante que a dos ouvidos. Aquelas pessoas urravam e choravam alucinadas, impossível não sentir o coração profundamente tocado por tão pungente cena. E sucedeu o esperado. Seus olhos, não suportando aquela luz absurda e a dor suprema, congestionaram-se de sangue até explodirem em um horripilante espetáculo infernal.

Bem, creio que devo apressar o fim desta trágica história e poupar um pouco o leitor. Os miseráveis encontravam-se agora surdos e cegos, sangrando, mergulhados no total desespero, que seus parentes compartilhavam medonhamente. De modo que chegou o instante da regular torrente de chuva, a irritante meia-hora que de 5 em 5 horas assolava aquela amaldiçoada cidade. Foi o golpe de misericórdia. As águas da chuva, inofensivas para aqueles que não haviam deixado suas casas à busca de alimentos, foram fatais para os desafortunados que o fizeram. A chuva, ao entrar em contato com o solo, exalava uma névoa estranha, uma espécie de vapor que se alastrou por todo o ambiente, invadindo todas as residências. As vítimas, ao aspirarem aquela névoa, que aos outros era benigna, eram instantaneamente asfixiadas e morreram em questão de minutos, diante da impotente perplexidade de seus familiares que choravam e gemiam morbidamente. De forma que em todas as famílias, pelo menos um ou dois membros faleceram nas terríveis circunstâncias. Todas as mortes ocorreram no 12º dia da tempestade, em intervalo não maior que 3h. No dia seguinte, tudo principiou a retornar ao seu estado normal. Não houve mais chuvas, cessaram-se definitivamente os raios e o vento, e as nuvens negras paulatinamente foram se dissipando, até que a luz solar voltou límpida e triunfante.

E passaram-se os dias, as semanas, os meses, os anos, mas todos os habitantes de Aswalennes, brutalmente traumatizados pelas mortes monstruosas de seus parentes, não esqueciam aquelas cenas extremamente tocantes, e tinham agora a sensibilidade à flor da pele. Não eram mais os mesmos seres humanos de antes da tempestade, o sofrimento por que passaram havia os transcendentalizado, ao menos por certo período de suas existências. A mudança de suas vidas refletia-se em toda a cidade. A violência reduziu-se a níveis mínimos, as pessoas tornaram-se honestas, sinceras e tolerantes, trabalhavam com mais seriedade e demonstravam bem mais amabilidade e compreensão para com seus semelhantes. Principiaram a compreender e a serem sensíveis às tragédias da humanidade, tornando-se mais conscientes com relação a problemas sociais e ecológicos. Passaram até mesmo a apreciar as verdadeiras artes, a lerem poemas, a contemplarem pinturas, a ouvirem música clássica...

Porém... o tempo passou, os anos vieram e se foram, e, com eles, os profundos sentimentos dos habitantes de Aswalennes, que retornou a sua antiga decadência... E uma negra, uma escura nuvem apontou distante no horizonte que, suavemente, brilhava em relâmpagos...

Este conto está incluído em meu livro, CONTOS DO CREPÚSCULO E DO ABSURDO, com 33 obras. Para maiores informações, visitem meu blog www.poemasdoterminoecontosdofim.blogspot.com ou entrem em contato comigo pelo e-mail alreiffer@hotmail.com

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 04/12/2006
Reeditado em 05/12/2006
Código do texto: T308905