O MENINO QUE SUMIU DE VISTA

Quando eu fui criança sonhava em ser maquinista. O apito do trem cortando a noite escura exercia um mágico fascínio sobre mim. Acordava todas as noites com o trem assobiando longe, mas vibrante na escuridão. Amava a velha maria fumaça que cruzava a cidade e passava perto da escola em que eu estudava, várias quadras distante da minha casa. O trem contava histórias de lugares distantes que visitava, feito o avô que nunca tive, para me fazer dormir de noite.

Hoje, no lugar que não estou, posto que já não sou mais, quando eu ouço esse antigo avô resmungando sobre os seus trilhos, eu relembro quem eu fui no passado, sentindo uma vaga tristeza pelo que seria agora. Tristeza essa de quem não pode nem chorar, a pior forma de tristeza. Sonho muito com a nostalgia da pobreza e da bondade que caracterizavam o menino simples que já fui. Eu era possuidor da pureza que as crianças naquela época já não queriam mais. Essa ingenuidade era proveniente do fato de que até os nove anos eu fui criado sozinho. Minha mãe não permitia que eu saísse lá fora na rua. Pouco importava, morava com meus pais na sede de uma firma de terraplenagem em que eles eram caseiros, tinha mesmo um quintal imenso para eu brincar. Quanto aos garotos da mesma idade já eram maliciosos e delinquentes.

Posso dizer que fui feliz com todos os dissabores que amarguei na infância. Pobre sim, mas me sentia rico porque sabia brincar, eu tocava meu velho pião no chão, pegava ele com a fieira e fazia com que ele continuasse girando, na palma da minha mão, diante do pasmo e da inveja das demais crianças no pátio da escola.

Por que estou evocando as sombras do passado? Nem sei exatamente; todavia lembrando os fatos alegres que marcaram o que vivi, eu consigo enfrentar também a lembrança das dores. Como aquela provocada pelos meninos maiores que me surravam tanto e que, pior de tudo, me desmoralizavam perante minha turma. Ou o time de futebol que literalmente me chutava pra fora do campo o tempo todo, e não me deixava participar.

Dizendo as coisas desse jeito passo a impressão de que padeci muito, tendo motivos para me tornar um adulto amargurado. Nem sei se chegaria nesse ponto.

Por que sabe de uma coisa? Isso aí não representava nada e nada representa. Eu não estava lá esse tempo todo. Eu sumia enquanto meu corpo ficava lá inerte sem reagir. Nessas horas de aperto, a alma abandonava meu corpo lá pra que ele apanhasse sozinho dos caras maiores, levasse socos na boca e no estômago. Eu nem escutava as chacotas que eles faziam sobre minha mãe. Apanhava quieto, aéreo e encurralado. Isso acontecia com frequência.

Eu era apenas um menino mais quieto do que os demais. Inteligente, eu tentava prestar atenção nas aulas. Não me deixavam. Logo eu devia dar satisfação para os grandalhões da turma que se sentiam meus donos, me chutavam na saída, me insultavam de franga, de bixona e tudo mais. Sim, eu fervia feito carne vermelha numa panela de pressão.

Certa tarde um desses babacas, valente postado junto de sua gangue no pátio da escola, me disse que eu era a sua puta, me ergueu pelos meus ombros e queria me forçar a chupar seu pênis. Imprecava palavrões e xingamentos inacreditáveis, que eu nem acreditava estar ouvindo aquilo. “Chupa meu pinto imbecil, vem pegar nele, vem mulherzinha!...” Na hora não pensei em nada, não aguentei, reagi contra o desatinado frente a esses trogloditas. Meu melhor murro passou batido no ar, nem chegou perto dele e eu desequilibrado estatelei no chão, enquanto a gangue caía na gargalhada diante do frangote que nem sabia brigar. Nesse dia apanhei tanto, mas tanto... Então, eu não estava lá de repente, minha mente sumia de novo na sombra, sabe, como se tivesse sido abduzido, inconsciente igual naqueles filmes de ficção científica em que as naves alienígenas sequestram as pessoas para estudar a raça humana.

Quando voltei, minhas costelas doíam como se tivessem partidas no meio. Enfiei a mão no nariz e ela ficou tingida de sangue. Tossia muito, me bateram tanto nas costas...

Não suportei mais. É muito estranho para mim tudo isso, não consigo entender até hoje o que me motivou de fato, se era angústia, a sensação de apanhar sozinho, de estar sozinho, o silêncio depois da surra, a mudez da minha vida, o desespero. Contudo eu havia enlouquecido mesmo, levantei do chão e logo queria abraçar aquele velho avô de quem eu tanto gostava. Ele abria seus braços para mim sobre os trilhos, vinha na minha direção fumando seu cachimbo barulhento, eu fiquei parado ali esperando sua chegada desde que levantei do chão, e só sei que depois disso eu não senti mais nada; a dor dos pontapés daqueles animais que eram meninos iguais a mim, a sua covardia gratuita, nada disso mais existia nem tinha importância. Eu não sentia mais nada de novo! Eu havia sumido mais uma vez.

Todavia, desde essa tarde que faz tempo, eu não consigo achar mais o caminho de volta.

Quando eu fui criança, sonhava em ser maquinista.

Sátiro Safo
Enviado por Sátiro Safo em 21/07/2011
Código do texto: T3110278
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