Olhares e odores

"Abaixe!" gritou Vincent no momento que a bala passou centímetros acima de cabeça de Wanda. As coisas estavam ficando feias para os dois. O Maverick preto que usaram para fugir estava cheio de buracos de bala. Wanda cambaleou no momento em que quase foi acertada e rolou no meio da grama -- o velho Wilson estaria ocupado demais e precisaria se mover se quisesse acerta-la lá. Vincent se virava com sua Colt Python para mante-lo imóvel, mas não tinha como sair de trás do carro. Wilson usava duas velhas Blackhawk e não parava de atirar.

Da porta aberta do veiculo Vincent puxou uma garrafa de Red Label que atirou no ar. Era a distração que precisava. No instante que Wilson desviou o olhar para cima ele descarregou suas duas ultimas balas. O maldito velho foi atingido no braço direito e uma bala fez uma viagem por seu rosto levando consigo cartilagem, sangue e pele do nariz, e fazendo um estrago no olho esquerdo que ninguém gostaria de ver o que sobrou.

Wanda se levantou naquele mesmo momento e seguiu atrás de Vincent quando ele se aproximou do homem caído. Seu revólver S&W modelo 38 estava vazio mas ela ainda assim o segurava por medo. A luz do sol apareceria dentro de algumas horas, mas, agora eram apenas os três no meio de uma estrada qualquer.

-- Ele está morto?

-- Ainda não tenho certeza. -- E como se para confirmar que estava vivo, o velho começou a tossir, tentando respirar pela boca e cuspir o sangue que entrava do nariz. Wanda deu um gritinho que seria cómico para qualquer um que pudesse testemunhar a cena.

-- Acho que já basta, não?

O velho levantou a mão boa e mostrou o dedo do meio para Vincent. Este se abaixou e apontou a arma direto no olho direito.

-- Atravessamos duas cidades, levamos uma chuva de balas, você fez meu carro parecer queijo suíço e agora você vem me mostrar este maldito dedo? Me entregue logo as chaves da sua caminhonete antes que eu me arrependa de deixar você vivo.

-- 'ocê 'ai pa'ar por isto, 'eu des'a'ado.

-- Tá, tá, que seja, agora fica aí quietinho que logo logo alguém vem te buscar.

Começou a se afastar quando Wanda perguntou.

--O que foi que ele disse?

--E como eu poderia saber?

Deixaram o queijo-Maverick-suíço para trás e pegaram o Ford F-250. Do Maverick levaram um saco cheio de dinheiro e um violão que por milagre saiu ileso do tiroteio. Viraram para um portal de madeira que abria caminho numa estrada mais fechada, beirando um rio sujo e fedido que soltava uma espuma de resíduos tóxicos no ar num fenômeno bonito mas nojento. A sua esquerda árvores e mais árvores, cobriam o caminho íngreme com curvas sinuosas. Parecia não ter fim. Não sabiam para onde iam, mas, uma certeza tinham. Para o mais longe possível de Wilson.

Entraram numa cidadezinha pequena, provavelmente construída quando o rio ainda era limpo e não impregnava um odor podre que envolvia a cidade por completo. O combustível tinha acabado, não faziam ideia de onde estavam, não tomaram café da manhã e o sol do meio dia evaporava mais depressa a agua desafiando ainda mais o olfato de quem passasse. A primeira coisa que notaram foi a ausência de posto de gasolina.

--Mas que droga! Me pergunto se tem como isto ficar ainda pior.

--Não pergunte. --Vincent notara também a total ausência de veículos. E de pessoas. Seria muito mais fácil enumerar o numero de coisas que não faltavam ali.

Tinham passado por dezenas de cidades desde que fugiram do padrasto de Wanda. Vincent há muito tempo tinha aprendido como atirar antes de fugir de seu pais de origem. Wanda nunca soube o que aconteceu. Não que já não tenha perguntado milhares de vezes. Só o que conseguiu foi que ele a ensinasse a atirar e a ensinasse o que é amor. Quando soube que Vincent fez, Wilson foi encarregado de acabar com o terceiro namorado de Wanda. A religião deles não permitia namoro. O túmulo dos que tentaram era um testemunho muito maior do que qualquer pregação.

Ainda assim Vincent fez o que Wanda achava que era impossível. Deu a ela liberdade. Levaram o dinheiro que os fieis davam para o velho durante os cultos, e pegaram suas coisas para fugir. Mas o patrão de Wilson não era conhecido apenas como um pregador de fim de semana. Uma fazenda inteira e dezenas de homens bem armados estavam de prova. Deviam fugir para bem longe. Se fossem capazes de pensar em onde queriam chegar, era certeza que era perto demais.

Mas o destino foi cruel demais com os dois de terem chegado aquele lugar. O ar era carregado de morte. As portas estavam todas abertas, e rangiam com o vento que levava a poeira para longe. Mesmo com aquele calor, Wanda sentia calafrios. Arriscaram entrar pela porta de uma das casas, quando encontraram o que parecia ser um braço. Um braço mole. De alguma forma, faltava-lhe os ossos. Mas, fora o corte limpo e preciso que marcava o fim do antebraço, não havia nenhum outro que explicasse porque daquilo. A tensão aumentava dentro daquele escuro. Wanda começou a querer chorar e Vincent deu alguns passos para trás. Quando a porta bateu.

Estavam presos no escuro de um cômodo quase vazio, que até aquele momento era iluminado apenas pela porta, agora o único foco de luz era a janela de um quarto lo nge, que logo se viu coberta. Vincent se preparava para atirar se alguém tentasse ataca-los, mas, não conseguia distinguir som algum. Parecia que dezenas de ratos, insetos, e seja lá o que era que rastejasse estava provocando dezenas de pequenos ruídos que mexiam com os nervos dele. Começou a atirar, o que somente piorou a situação.

Tudo bem que aquilo fosse milhares de pequenos olhinhos reluzindo ao clarão de cada tiro. Além de bala alguma acertar um deles, o brilho refletia e voltava e parecia um show pirotécnico. Vincent apalpou o bolso de sua camisa e puxou um isqueiro. Arrependeu-se imediatamente. Wanda urinou nas calças e começou a rir histérica. Ele apagou o isqueiro, puxou um cigarro, acendeu e sentou-se no chão. Do fundo da sala, que, aliás, se estendia para muito mais longe do que uma sala comum veio algo daquilo que eles viram.

Aquilo que eles entenderam como sendo uma língua passou ao redor deles, com vários pequenos olhinhos, iguais aos que estavam saindo da parede e algo do meio do escuro fez um barulho que somente poderia ser comparado com alguém batendo a porta de um forno. Aquela língua cheia de olhos tinha também pequenas extensões como antenas de lagostas e quando encostavam no corpos dos dois parecia pegajoso. Nos últimos segundos as mãos dos dois se encontraram e as ultimas palavras de ambos foram declarações de amor.

Horas depois, chegaram homens armados, que ao verem a caminhonete de Wilson, investigaram todo o lugar. encontraram apenas restos de roupas rasgadas e objetos metálicos, uma caixa de cigarros melada por alguma coisa, e meio sapato. Sem entender nada, continuaram sua busca pelas casas, sem verem as enormes asas cobertas por escamas transparentes se arrastando para a agua suja para um novo repouso.