Cânticos do inferno

Dizem que os espíritos vagam aqui na terra antes de assumirem seus lugares em outra dimensão e que durante o velório eles podem até mesmo estarem sentados ao lado de quem vela pelo corpo até que ele possa ser levado a um cemitério, ou cremado
em algum lugar destinado a isso. Esta é a realidade de um cadáver ou pelo menos deveria ser assim...
Já haviam se passado 23 horas desde que François havia tido um choque anafilático e a uma hora do enterro, aquela mescla inusitada de corpo e espírito começou a ouvir as vozes primeiro e depois os cânticos de quem o rodeava, sentiu o arder da cirurgia no abdômen, mas estava num outro plano debatendo-se num
misterioso labirinto sem encontrar a luz, o mais estranho é que tinha os sentidos humanos, mas não podia transmitir os comandos a seu corpo. 
O badalar das horas no imenso relógio na sala o lembrava de que as horas iam passando e ficava cada vez mais perto o momento do enterro do corpo.
Assemelhava-se a uma navalha pressionando sua jugular a ânsia em gritar a alguém...Me salvem...Estou vivo...Vejam... 
Se o espírito estava resignado a fatalidade, o vislumbre de possuir novamente a vida, encorajava François a desesperadamente tentar voltar. 
A tarde marejada a beira mar era uma linda aquarela, e ele estava tão perto sem poder tocá-lo, somente aquele maldito som dos cânticos de encomendação dos extintos, lúgubres e soturnos como a escuridão da morte...
Quando fizessem 24 horas de velório iriam conduzir seu corpo pelas vielas da Riviera, entre o perfume das flores, a visão paradisíaca do mar e o choro inconsolável de todos até o cemitério, e a sua esperança acabaria de maneira miserável e fatalista dos condenados ao além. 
Faltavam 20 minutos para o enterro, e sob a intensa luz que entrava pela porta da capela funerária, seus pais e irmãos entraram todos juntos no ambiente
reuniram-se todos num cantos, conversaram, ao final todos fizeram um sinal afirmativo, e partir dali ele sabia que iria morrer mesmo como corpo. 
François lentamente ergueu a cabeça que estava entre as mãos e viu muito claro que não havia mais o labirinto, somente uma luz...E como que que transportado para seu corpo sentiu os solavancos do carro fúnebre, a sensação era de afogamento, mas os músculos não regiam...Por Deus iria sentir o sufocamento da morte novamente, ouvia os cânticos, em flashes reviu sua vida,
seu coração batendo, a agonia lenta tinha cheiro de jasmim e aquelas malditas rendas a cobrir-lhe o rosto exalavam um nauseante cheiro de lavanda... 
O carro parou...
François preparou-se para o ato final... Mais uma subida e entraria no cemitério mais uma alameda dentro dele e estaria depositado no mausoléu de sua família... 
Mas estranhamente o carro não desceu... Não, não podia ser, teve ímpetos de buscar suas ultimas forças, para gritar...gritar...
Mas a memória lhe trouxe algo terrível... O pedido que ele fez um dia a sua irmã, o maldito pedido...
A tarde já ia dando lugar ao crepúsculo, quando longos e dolorosos gritos foram abafados na alta chaminé do crematório a beira de um furioso e barulhento mar. A fumaça e depois as cinzas foi tudo que sobrou da agonia de François... 
Tudo a pedido dele que gostaria que suas cinzas fossem
jogadas ao mar da Riviera Francesa...

Malgaxe
 

Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 05/09/2011
Código do texto: T3202803
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.