Quando os Mortos Voltam
 
 
            Percorro essas alamedas dia após dia. Sepulcros ornamentados, e outros abandonados, enfileiram-se estampando números de vida e morte sobre pedras e bronze. Derradeiras marcas da passagem de tantos por este mundo de lamúrias. Durante o dia, o sol afasta as sombras e o vento espalha para longe os gemidos das almas penadas. No entanto, com o cair da noite, o desespero se ergue da maioria das tumbas e um gemido coletivo se insurge.

            Alguns vivos, de maior sensibilidade, podem escutar aqueles lamentos e um terrível sentimento os aflige. O corpo é percorrido por um calafrio enquanto os pelos dos braços se ouriçam. Sempre que alguém se sente assim, sabe que está respondendo à presença dos mortos. Há uma ligação entre nós que a descida ao seio da terra não consegue isolar. Além dessa, muitas outras são, por pura ignorância, construídas a cada dia.

            Sentei-me, dentro do meu terno desbotado, em um túmulo coberto por mármore. Esperava vê-la de novo, como sempre o fazia. Não tardou a chegar. Sempre vinha às 10 da manhã. Trazia, novamente, um ramalhete de flores coloridas. A cada dia se tornava mais bonita. Seus fartos cabelos, loiros e encaracolados, esvoaçavam com o roçar leve do vento matutino. O vestido, leve e colorido, de seda revelava os traços intensos do seu belo corpo. Eu ainda a amava. Creio que a amaria sempre, mas não podia mais tolerar aquela densa agonia.



            Chegando à minha tumba, sombreada por um flamboyant, ajoelhou-se. Arrumou como pôde a lápide retirando as folhas e depositou o ramalhete novo lançando longe a secura do anterior.

            - Como podem flores se estragar tanto depois de apenas um dia? – Perguntou ao léu.

            Aproximei-me e me postei ao seu lado. Sentiu um ligeiro roçar nos braços e acreditou ser efeito do vento ou de algum pequeno inseto alado. Não sabia que era o meu toque. Em pouco, após chamar-me pelo nome, começou a desfilar todos os seus problemas e, como sempre, terminou por cair em um choro convulsivo.

            Desesperado, precisava comunicar-me com Angelina de qualquer maneira. Tentei sussurrar-lhe aos ouvidos, como já me recomendaram, mas apenas lhe causei um incômodo em forma de zumbido. Ela precisava me libertar, para que a minha vida prosseguisse, mas não sabia disso. Visitava-a durante as horas de sono, mas, ao ver-me, não acreditava que fosse eu e corria sempre apavorada. Queria-me, mas sabendo-me morto, afastava-se de mim em desespero.

            Durante o dia esquecia-se dos tormentos da noite e voltava para chorar a minha perda. Sem saber que o seu pensamento me detinha a este mundo, precisava comunicar-me para que me libertasse. Antes que fosse enterrado, lançou a sua aliança, sem que ninguém visse, para dentro do meu caixão e isso nos atou de modo que não consigo superar. A aliança precisa ser retirada da tumba para que eu siga o meu caminho e ela o dela.

            Foi-se depois de uma hora.

            Fiquei pensando e, naquela noite, decidi para sempre dar um fim ao meu martírio. Busquei o auxílio da alma penada de uma bruxa, que sempre havia evitado. Desfilei-lhe o meu rosário de lamentações. Ouviu-me atentamente e, ao fim, apresentou-me a triste solução. Seria doloroso, mas representaria a única saída.

            Naquela noite requisitei, segundo o seu auxílio, um grupo de almas luxuriosas e prometi-lhes uma orgia no quarto da minha esposa. Quando o sono dominou-a, começamos em sua alcova uma festa de terrível sodomia. Ao levantar-se de dentro do próprio corpo, ficou petrificada ao ver-me com tantas mulheres vadias e caiu em profundo desespero. Sua dor foi tamanha que despertou. Irritada, saiu de casa em plena madrugada levando consigo uma pá. Revoltada, quebrou a pedra sobre a minha lápide. Uma fina chuva começou a cair, o que facilitou-lhe o trabalho, pois amoleceu a terra. Injuriada, enquanto me amaldiçoava, buscava retirar da tumba o sinal de nossa eterna união.

            Ao bater no caixão, molhada e suja, rompeu com facilidade a tampa depois de alguns golpes secos. Viu meu esqueleto acinzentando e, em um gesto de fúria, tentou degolar-me. Nisso, levantei minhas mãos e segurei-a. Ficou congelada de horror. Usando daquela forma apodrecida, abracei-a com vigor másculo. Não teve tempo de gritar. Sob o efeito da chuva e da minha vontade a massa de terra cobriu-nos de um só tempo enquanto minha amada, mesmo sem o saber, poderia usufruir eternamente da minha companhia...
 
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