Inferno - Parte III - Sala de visitas

INFERNO – PARTE III – Sala de visitas.

- Você está bem?

Uma voz feminina vinha de longe. Aproximava-se da minha consciência como um sopro leve, qual brisa prenuncia a tempestade.

- Senhor, você está bem?

Eu não sou nenhum senhor. Senti-me como se estivesse rondando a faixa dos quarenta anos de idade, rumo à terceira idade. Aliás, nunca admiti que o mesmo pronome de tratamento despendido a estes seres dotados da sabedoria de vida se equipara-se ao de um cara em seus vinte e poucos.

Sentei atordoado. O solo estava frio. Pus sobre ele minhas mãos para apoiar-me e senti a lisura dos tacos de madeira. Alguém me segurava por detrás, empurrando minhas costas para frente.

- Foi uma luta terrível! Se te arrastassem para lá provavelmente não voltaria por um bom tempo.

Esfreguei meus olhos e logo desisti dos movimentos circulares, pois todo o rosto ardia febrilmente e qualquer fricção fazia meu corpo estremecer.

Olhei ao redor: um quarto em penumbra, com móveis coloniais em madeira forte. Três metros à minha frente o corredor negro e por ele saíam mãos e cabeças silenciosas, esfumaçadas que tentavam agarrar-se a qualquer coisa que por ali passasse. Não reconheci nenhum dos rostos esfumaçados.

Pelo meu lado esquerdo um armário alto, talvez medindo dois metros de altura, com largas portas talhadas à mão em desenho de folhas que se entrelaçavam e subiam rumo ao topo do móvel, como trepadeiras em uma cerca. Ao lado uma mesinha de cabeceira com um espelho fosco, sujo e com uma rachadura na quina esquerda, como se lhe tivessem dado um soco em momento de fúria. O espelho era emoldurado por longos contornos em madeira, também com folhas talhadas ao redor em um formato pentagonal de ponta cabeça. Muito bonito o trabalho.

Ainda guiando meu olhar atento observei como parte do conjunto da mesa de cabeceira um banquinho de quatro pernas grossas, em forma de ondas do mar, onde as respectivas cristas tocavam o solo, fazendo apoio, enquanto o corpo subia até encontrar-se no meio do assento. Sobre ele um estofamento vermelho almofadado. Parecia aconchegante. Da mesma forma eram as cadeiras encostadas pelas paredes do quarto: mesmas pernas, mesmo material, mesmo estofamento, contudo as pernas em formato de ondas não se encontravam no meio de seus assentos.

- Onde estou? –perguntei.

-Na sala de visitas. - respondeu a voz meiga e delicada que agora percebi ser de uma jovem.

-Pois, me parece um quarto.

Ela deu uma breve risada:

-Bem, é um quarto. Provavelmente de alguma memória sua sobre quando em vida.

- Como assim?

- Chamamos de sala de visitas aqui no Inferno porque a cada um que entra a sala ganha novo aspecto para recepcionar os novos hóspedes. Sempre como um cômodo de uma memória sua do tempo de ser - vivente.

Aquele local realmente me lembrava o quarto de minha avó e, pensando bem, realmente já vira aquele espelho rachado antes.

‘- Julieta, como pôde fazer isso comigo sua vadia?’

‘- Calma, Tenório, não era o que você está pensando! Ele tem razão, você precisa tratar-se, urgentemente!’

‘-Cale a boca! Não quero ninguém se intrometendo na minha vida!’

‘- Solta meu cabelo, Tenório! Esse vício já passou dos limites!Tenório, não!’

‘-Vovô, não faz isso, solta ela!’

‘-Isso é o que acontece com prostitutas como essa velha! Aprenda comigo, mulher deve sujeitar-se ao homem em tudo e não dar palpite em nada! Nunca deixe uma piranha mandar em você ou decidir seu caminho’

‘Vovó, a senhora está bem? Ele já saiu do quarto. Vem levanta, deita aqui. Sua testa está sangrando muito’

‘Eu vou ficar bem, meu anjo’

Olhei no canto direito do quarto e lá estava a cama. Único móvel de metal naquele aposento, tal qual me recordo de outrora.

As mãos suaves de quem me segurava pelas costas, agora acariciavam meus ombros.

- Venha, levante-se porque não é seguro aqui.

-Por que, não?

-Criaturas caminham por todo o Castelo em busca de vítimas para saciar sua sede.

-Sede?

-Sede de sangue, dor,pânico, lamentações. Se alimentam disso. Lembra-se dos rostos e dos gritos de dor que viu no corredor de entrada? Estas coisas atraem os demônios. Tremenda sorte tua eu te encontrar aqui.

Pela primeira vez voltei meu corpo e fitei a estranha que agora estava de pé atrás de mim:

-Sorte? Chama de sorte este lugar?Como consegue ver sorte aqui, no sofrimento eterno?

-Talvez não seja eterno.

- Quer dizer que uma hora acabaria? Então, o que aconteceria com o Castelo do Inferno e o Diabo e...

-Nada disso. Ele não acaba, mas creio que haja uma saída daqui.

-Saída? – perguntei incrédulo – Para onde?

-Eu não sei! São boatos!

-Então, como pode achar que existe uma saída? Um caminho para um lugar melhor com base em boatos? Boatos de quem?Me diga!

- Boatos de pessoas com mais fé do que você! Prefere se conformar e ficar aí, deitado no chão como um nada ou me ajudar a escapar daqui? Já não acha muita sorte não estar perdido nas mãos dos maus espíritos que guardam a entrada do castelo? Anda, levante-se antes que algum monstro venha até aqui atrás do seu desespero.

À contragosto levantei-me com ajuda da mulher que me salvou do fantasma do mendigo vingativo. Apoiei-me nela e fiquei de pé, mal podia me sustentar. Cambaleava para um lado e outro como um bêbado.

- Você não tem condições de andar, deite-se um pouco na cama. Tente recobrar-se alguma energia.

-Preciso dormir...

-Dormir? Aqui ninguém dorme, meu querido. É apenas sofrimento dia após dia. Mas você pode recobrar energia espiritual para manter-se desperto. Desmaiar no inferno é como estar acordado, e tenha a certeza de que nem sempre alguém vai estar por perto para te proteger de eventuais infortúnios.

Ela me dirigia em direção ao leito de ferro, quando uma dúvida me veio à mente:

- Como você me achou?

- Eu venho aqui corriqueiramente atrás de novas almas que atravessem o corredor do inferno para tentar salvá-las dos demônios. Geralmente chego tarde demais, mas por um acaso desta vez alcancei você bem a tempo.

Antes de deitar sobre a cama percebi uma grande mancha de sangue nos lençóis brancos,como se formada outrora uma poça, agora já estivesse seca, mas muito escandalosa em seu vermelho vivo.Deitei-me vagarosamente. Todo o corpo queimava, ainda intensamente.

-Esqueci de perguntar seu nome. – insurgi, enquanto ela me acariciava os cabelos tostados.

-Pode me chamar de Juliet.

Minha avó se chamava Julieta...

Rafael do Nascimento
Enviado por Rafael do Nascimento em 25/10/2011
Código do texto: T3296603
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