Entrevista com um Vampiro

— Boa noite, Senhor!

— Boa noite, cavalheiro!

— Como devo chamá-lo?

— Leonard.

— Ok, Sr. Leonard.

— Sem a necessidade do “senhor”.

— Claro.

— É um vampiro?

— Sim.

— Há quanto tempo?

— Diria que há milênios.

— Tanto assim?

— Porque não? Isso que considera grandiosidade temporal, apenas parece muito aos olhos de quem tem a vida breve.

— Pode relatar a data precisa?

— Não vejo necessidade em fazê-lo.

— O que causou essa transformação?

— Herança.

— Mas pela presumível idade, acredito que seria uma espécie de progenitor.

— Existem muitos que me antecedem.

— Pensara que fosse um evento recente na História.

— Isso ocorre por influência literária. O imaginário cria a figura mítica e os romancistas são tomados pelo modismo das mentalidades.

— Mas porque relataram somente agora?

— Já relatam há tempos remotos. Os nomes utilizados que foram se modificando ao longo do tempo.

— Então aqueles antigos demônios...

— Não utilize termos de forma tão anacrônica.

— Peço desculpas.

— Somos cultuados de diversas formas, mais amados do que odiados, justamente pelo temor que causamos.

— Mas não amamos o que tememos.

— Então porque amam o deus das escrituras que profere tanto terror com seus castigos?

— Já que tocou no assunto. E Deus?

— Não existe.

— Mas e os relatos das escrituras?

— São tão verídicos como os personagens de Anne Rice.

— Mas quem os governa?

— Nós governamos a nós mesmos. Muitas vezes nos chamam de deuses. Jeohwá foi um vampyr.

— Foi?

— Sim. Nietzsche estava correto ao definir a morte desse deus. Claro que sua filosofia se referia a algo muito mais abrangente do que isso. Mas as palavras se encaixam também de forma literária, já que o deus cultuado pelos cristãos, um vampiro de tempos remotos, sucumbira.

— Como ocorreu?

— Não convém mencionar.

— E Jesus?

— Queres falar de homens comuns?

— Ele foi comum?

— Tem dúvida disso?

— Possuem leis?

— Sim. Seguimos uma hierarquia. Pertencemos a certa Camarilla. A hierarquia segue conforme o grau de poder dos que pertencem a ela. Assim como na sociedade de vocês, temos disputas políticas, em dadas épocas, mudam-se os comandos. Batalhas ocorrem e alguns sucumbem. Existem também os que destroem a si por não desejarem mais perambular pelo mundo.

— Possuem um livro de leis?

— Nossos cérebros. Nossas leis são simples e transmitidas aos que se tornam um de nós.

— Acreditam em magia?

— Outra forma de crendice.

— Habitam outros mundos.

— Desconheço quem faça.

— Então são de domínio terreno?

— Sua pergunta é tola, já havia respondido anteriormente.

— Realmente. Peço desculpas.

— Peça menos desculpas, concentrando-se para não necessitar utilizar esse mea culpa.

— Sim.

— Prossiga.

— E quanto aos mitos?

— Eles contém algo de real. Existimos. Quanto aos relatos descritos, além de precauções teológicas, não passam de superstições.

— Mas bebem sangue?

— Sim. É uma necessidade característica de nosso organismo.

— Então o mito possui algo de verídico.

— Sim.

— E quanto a alho, cruzes, etc.

— Inúteis.

— E luz solar?

— Afeta-nos como a vocês.

— Mas porque os ataques noturnos?

— Nas trevas temos o sigilo. Evitamos a exposição desnecessária.

— Com esse poder, porque se esconder?

— Nossa natureza aprecia os jogos. A caçada precisa ser estimulante. Um confronto aberto, faria com que aprisionássemos vocês, feito animal em abatedouro. Perderia a emoção que contemplamos nos olhos de terror de uma vítima.

— Sentem piedade?

— Pergunta a um lobo se possui piedade em relação a um rebanho.

— Entendo.

— Qual o sabor do sangue?

— Seria como perguntar como lhe parece o chocolate. Cada espécie possui sua forma de degustar, assim como cada indivíduo sente gosto de maneira singular.

— Sobrevivem sem beber sangue?

— Não.

— Então existe necessidade em conservar-nos enquanto comida.

— Exatamente.

— Possuem sentimentos, como afeto.

— Isso não faz parte de nossa natureza.

— Seu corpo é gélido.

— Sim.

— Sua força é maior que de um homem comum.

— Sem dúvida. Veja como consigo entortar essa espessa barra de ferro com simples movimento do polegar. Segure esse bastão. Agora posicione e acerte meu rosto.

— Nãoo!

— È uma ordem.

— Com toda a força investe com uma pancada que faz partir o objeto. A face mantendo-se intacta, sem um arranhão sequer.

— Percebeste?

— Sim.

— Viu que sem precisar caminhar sobre águas, me fiz crer? Uma afiada lâmina entortaria ao tentar perfurar-me.

— É impenetrável.

— Não. Apenas não dominam algo que consiga competir em força com nossa estrutura.

— Já matou muitos homens?

— Apenas me alimento.

— Transformam-se em outros animais.

— É possível fazer. Mas nem todos dominam a arte.

— Quanto mais antigos, mais fortes.

— Costuma ser. Acumulamos força, principalmente se bebermos de outros de nós. Mas são oportunidades raras. Não temos o costume de causar baixas na própria espécie.

— Mas e quanto as batalhas a que se referiu?

— São atípicas. Somente crises graves as causam. E poderia contar nos dedos de uma mão as que ocorreram. Ao contrário das guerras que sua espécie trava. Nós mesmo apaziguamos seus conflitos. Não seria interessante vê-los extintos.

— Procriam?

— Não.

— Porque não se alimentam de outros animais?

— O homem é mais próximo. Pois fomos homens também, existe uma relação consangüínea entre espécies.

— Mas o que iniciou essa espécie vampiresca, tem ideia de como era?

— Homem também. Somos uma mutação. Nos tornamos o que chamariam de anomalia. Só que nosso desenvolvimento trouxe mais vantagens. Acredito nisso.

— E as desvantagens?

— Ter que se alimentar constantemente de sangue e a pior é a eternidade.

— Tantos sonham com ela.

— Apenas porque não a vivenciaram. É um tormento.

— Não pensa em dar um fim nisso?

— Sim. Em diversos momentos. Mas ainda considero vagar algo intrigante. Ocorrem circunstâncias que ainda conseguem me surpreender. Por conta delas prossigo.

— Mencione uma.

— A sociedade se modifica, mesmo percebendo antigos equívocos, surgem figuras singulares, que me preenchem os olhos, trazendo ricos conhecimentos.

— Porque não interferem em nossos atos?

— Interferimos por existir. Fora isso, a dádiva é contemplar o acaso e servir-se dele. Eis o maior aprendizado.

— E quanto a erudição?

— Chega a ter utilidade. Transito de um idioma a outro, como consigo modificar trejeitos para não tornar uma conversa pedante com uns e tola com outros.

— Se arrepende de algo?

— Não.

— Gostaria de retornar no tempo?

— Isso seria o mesmo que dizer que me arrependo. A resposta é não.

— Se alimenta de outras substâncias?

— Sim. Mas nenhuma é como o sangue. Seria como a água para vocês, não se vive sem ela, por mais que tenhamos outros aromas sedutores.

— Dorme em caixão ou embaixo da terra?

— Em uma cama macia.

— A religião lhe desagrada?

— Apenas considero um apego desesperado.

— Freqüente missas ou outras espécies de cultos?

— Só quando desejo me alimentar de alguém que ali esteja.

— A música lhe agrada?

— Sim. Mas com suavidade escuto, a audição aguçada faz perceber nuances onde nem imaginam explorar.

— E quanto as guerras que travamos?

— Épocas em que nos banqueteamos com menos pudor. Mas sempre evitemos o extremo que possa levá-los ao fim.

— Já matou um dos seus?

— Já.

— Imagino que o raciocínio seja acima do nosso.

— Não necessariamente. Como comentei acerca do acaso. Nossos cérebros são limitados como de qualquer um de vocês. Mas quando surge uma mente que se destaca, um Einstein, Nietzsche, Marx, somos surpreendidos. Expandimos graças a estas figuras singulares.

— Adoecem?

— Somente por falta de sangue.

— Sangue contaminado o afetam?

— Não.

— Dormem?

— Normalmente.

— Porque criam novos vampiros?

— Para não extinguir a espécie, além de renová-la com novas mentes.

— Mas e se os novos não se adequarem e causarem a ruína?

É um risco que devemos correr. O novo sempre será uma imposição, não poderemos fugir dela.

— Existem vampiros crianças?

— Sim.

— Com qual intuito?

— O mesmo de adultos, criar novo safra.

— Já transformou muitos?

— Não. Nem eu e nem os outros. Fazemos de forma comedida. É preciso cautela, senão irá se tornar epidemia, perderemos o controle.

— Alguma vez ocorreu algo parecido.

— Sim. O que causou uma das batalhas das quais comentei. Os antigos guardiões dizimaram milhares. A força dos antigos é insuperável.

— Existem muitos “guardiões”?

— São um número reduzidíssimo.

— Já conheceu algum?

— Sim. Tive a honra.

— Algum deles deixou de existir?

— Soube apenas de um caso.

— De onde viemos e para onde iremos?

— Nenhum de nós sabe e jamais saberá. Isso não me importa. Aprendi que o instante é a preciosidade, nele a eternidade se manifesta, basta estarmos nos fazermos menos atentos, deixando ser inundados por esse nada que é tudo.

— Existem vampiros privados de alguns dos sentidos ou membros?

— Sim. Alguns foram transformados quando eram cegos ou mutilados. Para termos a experiência de um ser privado, de forma mais enfática. Nosso desejo é aprender ao máximo, para isso precisamos de uma gama ampla de experiências.

— Ciência.

— Ciência geneaológica, eu diria.

— O que mais lhe agrada ou desagrada?

— Já respondi acima. Mas repetirei para que fique claro. O que mais me agrada é o acaso e o que mais me desagrada é a eternidade.

— Praticam esportes?

— Sim. Como hobby.

— Existem espíritos?

— Assim nos chamam, quando aparecemos de forma inusitada.

— Existem vampiros com formas diferentes, como nosferatus, etc?

— Sim. Mas são todos da mesma raça. Seria como a raça humana, que possui rica diversidade, conforme influência ambiental, etc.

— Mas me refiro a poderes distintos.

— Não. Seria como vocês, apenas modificações estéticas.

— E os livros e estórias sobre vampiros que chegam ao público?

— São divertidos. Alimentam o mito e afastam o imaginário da realidade.

— Porque me concedeu essa entrevista?

— Estamos em um momento de descrença. Será deixada como tantos outros registros ficcionais, considerado algo fantasioso e tolo.

— Ainda assim poderia ter evitado. Isso é uma síndrome de Lestat?

— Sou menos patético. É interessante mantermos registro. Até pela forma como o impacto da revelação é recebido por vocês.

— Existiram outros, então?

— Claro.

— Como dormiremos tranqüilos depois disso?

— Já não dormem sem isso.

— Fui escolhido por qual motivo?

— Mais uma peça do acaso. Logo terá a memória apagada. Só ficará o registro, sem que saibam o autor. Você está sendo usado como instrumento para algo maior que seus princípios.

— Então devo presumir que nem o nome que revelou seja verdadeiro.

— Presume bem.

— Restará algo em mim que possa fazer-me recordar disso ou de vocês?

— Em todo ser humano há. Por isso criaram o mito. Basta cair na escuridão de um fechar de olhos, ou quando estiverem diante de um grande temor, serão acolhidos por nossa presença, que vela por suas vidas. Como guardiões incansáveis.

— É aqui que nos despedimos?

— Que você se despede.

— Um prazer conhecê-lo, Leonard.

— Recíproco. Aproveite o restante de sua intensa e breve vida.

Este manuscrito fora encontrado em local desconhecido, divulgado na internet pela amplitude virtual, assim como o anonimato em meio a diversidade de registros eletrônicos. Sua data é desconhecida, bem como de seus autores.