Esquartejado

Acordo. Me deparo com um corpo feminino esquartejado. No quarto, a luz entra sorrateira pelas venezianas. Que cadáver é esse? Me parece familiar. Não sei como cheguei, nem me recordo o que ocorreu. Mas com certeza passara a noite nesse ambiente, adormecera. Com que será que sonhei, se sonhei? Ando de um lado para o outro, fitando o sangue que mancha os lençóis. Eu estava deitado, mas não me sujei. Será que matei? A falta de contato pode ser um indício. Mas eu toquei. Ainda sinto as vibrações dessa pele. Ou será que sinto as da minha? Essa mulher, era que sou eu? Não pode ser. Estou me olhando em frente do espelho, tenho feições masculinas.

Após uma pausa, penso apenas em duas óbvias possibilidades, ou a matei ou alguém, um outro, a matou. Pois não poderia matar a si dessa forma, não se trata de suicídio. Não sei que horas são, mas se a claridade invade o quarto, ainda tímida, é cedo. Fecho as venezianas, quero que a noite volte, talvez assim me recorde. Que falta de sorte. Não consigo me recordar, de nada. Mas pensar em nada é recordar de um tudo. A mente vazia, cheia de ar. Os olhos dessa fêmea assassinada, são tão expressivos. Perderam o brilho, mas ainda consigo enxergar a luz das trevas que a pupila insinua. Vou tocar essa mão, mas deixarei impressões digitais. Já as deixei por todo lado, que diferença faz?

Essas mãos, tão macias, suaves. Brancas, já antecediam o estado defunto. Caminhamos de mãos dadas, a memória revelou. Para onde fomos? Acabamos aqui, ela foi acabada, eu continuo inacabando. Deve ter um nome, tem rosto de Clarice, mas as mãos são de Júlia, os olhos são de Ana, embora os cabelos sejam de Bárbara e a boca de Carina. A calcinha é tão delicada e recatada, pela vestimenta percebe-se não ser uma vadia. Vá dia, mude para noite, quero tentar retroceder no tempo. Como não é possível ter o passado, quero um futuro revelador, profético, um profeta Curupira, mas em vez dos pés, a mente voltada ao passado. Estou parecendo mais um Saci com as pernas cruzadas. Esse sangue é meu gorro vermelho, só que inunda-me dos pés a cabeça, minha pele é vermelha.

Sim, eu beijei essa boca! Um gosto de menta, só disso me recordo. O sorriso. Claro, a malícia de mostrar os dentes e esconder a língua, um riso cravado. Tudo está tão arrumado, só a mulher que não condiz com o ambiente, ela nega a ordem mobiliária, fazendo-se um objeto despedaçado. Porque está nua? Nós transamos. Existe resquício de sêmen em meu prepúcio. Mas estou impecavelmente vestido. Não é possível que tenha penetrado ela depois de morta. Não. Me recordo dos gemidos, mortos não gemem. Muito menos gozam. Ela gozou para mim. Como posso ter matado quem sem matou em orgasmo comigo?

Esse sobretudo pendurado. Existia outra pessoa. Um homem, de barba por fazer, corpo atlético. Mas onde ele está? Então foi ele. Matara e agora deseja incriminar-me. Desgraçado. Fugiu o patife. Não deixou vestígios. Só pode ter sido esse sujeito. A fisionomia é bem nítida em minha mente, a forma desleixada de se vestir. Saímos juntos, os três, de mãos dadas. A barba roçara meu rosto. Um triângulo amoroso. Uma discussão, pode ter ocorrido por ciúmes, crime passional. Mas porque não me matara? Quisera me fazer sofrer com a angústia da dúvida, ser condenado por um crime que não cometi? Que castigo me infligiu, deve me odiar. Mas por qual motivo? Esse cheiro de cigarro, não considero que o tabaco produza aroma. Eu não fumo, isso é resquício desse outro ausente.

A mais ausente é essa mulher esquartejada. Nunca vi um ausente tão presente. Olho esse corpo exposto, sem nada a revelar. Parece uma paisagem, pintaram essa morte, tiraram uma vida para criar uma arte. Mas porque sinto o pênis penetrar a vagina? Não tenha vagina, nem vulva, só mesmo pelos pubianos, mas a semelhança acaba aí. Parece que a morta dorme, tenho a esperança tola que vai acordar. Mas se levantar me assustaria. Como posso conceber ver essa mulher cadáver andando com marcas de violência, falando com boca morta, desfilando sua nudez ferida? Morri junto, me sinto um pouco morto, talvez menos vivo. Se ocorreu um crime, onde está a arma, o objeto que ocasionou a lesão? Já procurei, revirei, até em minha nudez procurei, mas nada encontrei.

Parece jovem. Quantos anos ela tinha? Quanto tempo, está morta? A porta está trancada por dentro, as chaves comigo. O outro homem talvez tenha saído pela sacada, mas não existe saída, apenas uma janela rente, também trancada. Ele deveria estar aqui. No banheiro existe um aparelho de barbear jogado na lixeira, então ele mudou a estética. Com a barba feita, meu rosto se parece com o dele. Seria insanidade me imaginar sendo um outro. Sofro de dupla personalidade, desvio de caráter? Será que assassinei com um outro eu e depois me refiz? Porque essa morta idiota não fala comigo? Malditos os mortos que são mudos. Pelo menos não são surdos. Ela vai continuar a me ouvir.

Fiz tudo isso sem sair do lugar. A mente que vagara. Sou eu. Estou esquartejado. Consigo ver a silhueta feminina, um eu travestido. Fui dividido em pedaços, mas continuo a raciocinar. A mente é tão vil que suporta o despedaçamento do resto do corpo? Consegui mutilar eu mesmo. Fui prostituído pelo meu alterego. Mas jamais eu conseguiria fazer esse estrago. Agora enxergo. A noite chegou novamente, percebo no canto escuro do cômodo, essa outra figura, com sorriso sombrio. Nunca estive no controle, o tempo todo era você. Agora te encaro e me vejo, consigo perceber o gesto com que esfaqueara essa carne mesma se fazendo de outra.

Matando a nós, matou a si. Cometera um outrencídio, um altericídio. Seu voyeurismo macabro, encerrou esse quarteto. Formávamos um quadrilátero, mas um dos ângulos saiu do compasso. Vazou nossas formas, abrindo o que antes era coeso, dispersando as extremidades, causando pontos soltos, que precisavam dessa comunhão. Um a um estamos sendo mortos. Já me faço projetado nesse ser esquartejado.Você é a última possibilidade, se escapar, será uma linha sem controle, perfurando, cosendo o que aparecer em sua reta. A vista está escurecendo, me diga apenas o porque. Esse sorriso satânico levarei para o túmulo, mas continuaremos como fantasmas que irão segui-lo, como sombras malditas, seguindo cada passo.

Também começo a sangrar, agora sei que o outro, aquele barbado, sangrara da mesma forma. A mulher foi a primeira a se degenerar. Esse último, o assassino, um dia também sucumbirá. Porque esses médicos não o deixam morrer? Não sabem que estão salvando a vida que menos vale a pena. Pagarão posteriormente pelo equívoco. Já não tenho mais forças para continuar Não existe luz no fim do túnel, apenas o túnel, vertical, como um poço sem fundo, um escuro profundo.