Será que é lenda?

Estávamos todos à sala do apartamento na segunda parte, por assim dizer, do happy hour daquela sexta-feira. A caixa do jogo que iriamos jogar (os 02 casais e eu) estava sendo aberta sobre a mesa do centro. Enquanto afastávamos os copos e as tigelinhas de petiscos, falávamos sem muito entusiasmo, de crendices espirituais. Aí, o Márcio se lembrou de uma estória que ocorreu com um amigo nos confins da Amazônia. Como preâmbulo disse se tratar de uma pessoa muito séria no que se refere a suscetibilidades e crendices bobas. Que era uma pessoa de bom astral, porém sem o viés místico que a desqualificasse como poderia parecer ao ouvir sua estória.

Era fim de tarde. O barco, com moradores da região em que o nosso passageiro desceria já se aproximava deixando surgir lentamente, num ponto da margem densa de verde, o cais de madeira cinza que se projetava do pequeno descampado cor de barro à margem direita. Sentia-se acometido de ligeiro mal-estar e vislumbrava o atracamento para embrenhar-se no mato próximo e se desfazer do incômodo. Quem deveria descer ali, em torno de 15 pessoas o fez rapidamente. Ele deixou no cais mesmo a bicicleta que o acompanhara a bordo e, passados aproximadamente 15 minutos, retornou ao cais surpreendendo-se com a solidão que repentinamente se instalara. Tomou sua condução e adentrou na floresta já escura. Conseguia enxergar a trilha porque frestas intermitentes de um amarelo-pálido lhe pontilhavam o caminho enquanto pedalava rápido. Preferia que fosse mais cedo. Que aquela emergência não o tivesse atrasado para não ter que enfrentar o manto escuro da noite. Sabia que, mesmo sendo veloz, levaria mais de meia hora para chegar à cidade. O barulho de sua própria respiração soava contrapondo-se ritmicamente ao soar da corrente encaixando e desencaixando nas engrenagens da bicicleta. Os barulhos da mata eram som de fundo. Seu pensamento não era outro senão imprimir mais energia na propulsão e acurar a vista para conduzir-se pelos espaços menos acidentados da trilha. De repente um peso instalou-se atrás, no bagageiro. Subiu-lhe um frio na espinha. Não sabia o que era... Ou quem... A Bicicleta ficou muito pesada. Um fio de suor começou descer-lhe à testa. A presença permanecia obrigando-lhe a um esforço sobre-humano para compensar o peso. A simples insinuação da ideia de olhar para trás o deixava petrificado e decido a não o fazer. Assim como chegou a presença sumiu. A bicicleta passou a ter uma leveza que jamais tivera. Pedalou ferozmente na tentativa de fazer sumir atrás de si aquele caminho e seu mistério, mas ainda faltava mais da metade dele. Já começava a achar que havia sido imaginação. Uma ilusão de sua mente, até então tão prática quando, de repente... Tum! O peso voltou... Esforçou-se para não gritar... Sabia que ninguém o ouviria... Que por qualquer mínima mudança de atitude aquela criatura poderia massacrá-lo. Sentiu um bafo quente na orelha... Um odor inimaginável lhe penetrara as narinas... Uma respiração que parecia exibir o domínio absoluto da situação. Seus pés então pareciam partes dos pedais colados a estes em frenético gira-gira... Num desesperado clamor por uma alternativa que a escuridão abafava... O peso saiu... A bicicleta voltou a ficar leve... passados alguns minutos... Tum! Mais uma vez o peso... Logo em seguida a leveza... Os primeiros pontos de luz surgiam à saída o túnel de árvores... Já não sentia mais o quanto pedalava... Nem sentia o vento, nem os sons... Entrou pela primeira das ruas tomado por um pavor indescritível. Virou à direita, dobrou à esquerda até chegar ao bar onde àquela hora encontraria pessoas conversando. Parou molhado de suor. Trêmulo e pálido. Um dos conhecidos perguntou-lhe o que acontecera. Ele respirou e, ao começar a contar o que lhe ocorreu o morador falou – Você fez muito bem em não olhar para trás. Foi o Curupira! Todos ficaram em silêncio. - Ele tem os pés para trás. Se você olhasse, sei não... – Você traz fumo aí com você? – Tenho e também cigarros... – Foi isso que o atraiu... Concluiu o nativo.