O Demônio Familiar I

O sono era uma coisa preciosa para aquele homem deitado confortavelmente em lençóis de seda, ao lado de uma esposa linda, em um quarto luxuoso. Trabalhava o dia todo e tudo o que queria quando voltar para casa era dormir. Tudo o que precisava era disso e era o que não teria... mais uma vez. O barulho que o acordou era uma repetição irritante que não conseguiu definir por causa do cansaço. Mesmo não sabendo a que se devia o som ou o que era, já acordou com a certeza de que o próximo que ouviria seria o choro do filho por acabar com seu descanso... mais uma vez.

O primeiro som que ouviu, no entanto, não foi esse choro, mas foi seu próprio grito assustado quando viu aqueles olhos vermelhos o observando. Saltou da cama, batendo no criado mudo e derrubando o abajur. A esposa acordou e também gritou ao perceber aquela sombra de olhos vermelhos sobre o encosto da cama. Observava-os com um rosto enegrecido pela escuridão, mas com um sorriso demoníaco que surgiu branco como os ossos dos mortos.

A mulher tentou se levantar, porém não conseguiu. A sombra tapou sua boca e naquele mesmo instante ela conheceu o silêncio da morte, sem, no entanto, receber a visita derradeira da mesma. Seu corpo se gelou diante daquele sorriso. A cabeça da criatura se aproximou dela e ele deu uma risada fina e aguda.

- Você só assiste... – disse com a voz de demônio.

Saltou da cama, rumo ao homem. Ele estava retirando uma arma da cômoda. Apontou-a, mas agora o demônio estava muito perto e mal sobraram forças para que o mortal atirasse. Cada tiro foi uma gargalhada zombeteira. Então o demônio caiu. O homem respirou aliviado e olhou para a porta, pensando em ir embora. Com um salto, de repente, a sombra se pôs de pé e sorriu. Olhou de um lado para o outro como se estivesse confusa. Quando seus olhos vermelhos encontraram o homem, ele sorriu mais uma vez. Juntou os braços e de repente havia uma faca em sua mão. Olhou para ela como uma novidade e a colocou junto à cabeça para que lhe contasse quem seria seu alvo.

A lâmina apontou primeiro para a mulher... Fez que não. Apontou depois para o homem... Fez que sim. Então o demônio pulou sobre ele. Segurou-o pelo pescoço e aplicou-lhe um golpe básico, um que lhe abriu a traquéia cirurgicamente.

- Vai parar de gritar agora...

O mortal caiu de joelho, segurando o pescoço e sentindo o ar lhe faltar. Voltou a entrar frio e então ele gritou, mas agora nada lhe saía da boca. Não havia ar que saísse de seus pulmões e chegasse à boca. O que deveria ser sua voz na verdade era um ralhar de vento contra carne. Sons indecisos e sem direção.

- Agora vou lhe dar motivo para gritar...

O demônio então segurou o homem pelos cabelos e o puxou até a cama. Jogou o tronco sobre o colchão e deixou o restante do corpo de fora. Ele estendeu a mão ensangüentada para a esposa, pedindo ajuda, mas tudo o que ela pôde fazer foi olhar aterrorizada. Voltou-se para o demônio. Lá estava ele colocando algo em sua cintura. Era uma espécie de cinto, só que coberto com espinhos de metal. Cada um deles se enfiou na pele do homem, furando devagar e o fazendo soltar um arremedo de grito. O ferro passou a pele, atravessou o músculo e alcançou os órgãos. O palhaço riu, enquanto esperou que o homem sentisse o frio do metal desaparecer, preenchido pelo calor de suas entranhas.

Esperou pacientemente, de mãos juntas, batendo o pé no chão no ritmo dos gemidos da vítima. Quando se deu por satisfeito, sorriu para a mulher, pegou a ponta do cinto e puxou com sua força sobrenatural. O homem foi puxado da cama e seu sangue se espalhou pelo quarto. O baço voou para cima da mulher, uma parte do intestino caiu na cama, um pedaço do estômago escorreu por dentro dele, ocupando o lugar da bexiga, que agora pendia para fora.

O desespero e a dor confundiram o cérebro da vítima. Iludido, tentou manter as entranhas no abdome destruído. Segurou-a enquanto suas pernas tiveram forças. O demônio ria a seu lado, zombando da morte horrível que apenas os mortais podem ter. Dançava com a faca na mão e esperou que a vítima caísse de joelho. A mulher olhava tudo assustada e quase conseguiu gritar quando o assassino surgiu do nada diante dela.

- Não olha mais...

Enfiou agulhas de tricô nos olhos dela. Uma vermelha no esquerdo, uma azul no direito. Então ela conseguiu gritar. Gritou e se levantou desesperada. Correu às escuras, com os olhos sangrando e bateu em algo quando passava pela porta.

- Mãe? – perguntou uma voz que passava do sono para o susto.

Ela o segurou e correu pela casa. Correu chocando-se em tudo o que encontrava. Ainda tinha as agulhas nos olhos, mas o que sentia era o filho nos braços. As lágrimas saíam dos cantos ainda intactos. Não podia ver, mas podia chorar, de um modo que cada gota que caía do seu rosto estava contaminada por seu sangue.

Sentou-se no jardim, ao lado da casa do cachorro. Segurava o filho e cantava para ele. O menino, chocado, apenas a olhava mudo, sem dizer uma palavra ou mover um dedo que fosse. Sua respiração era quase inaudível. Seus olhos estavam fixados nas agulhas de tricô.

A mãe chorou por um tempo que não conseguiu definir. Então ouviu passos. Ouviu vozes. Quando uma mão a tocou. Ela gritou com tanto sofrimento e desespero que parecia o som dos mortos voltando à Terra.