O Casarão da Srta. Raflésia

Laura e Afonso são amigos desde pequenos. Aos dois anos de ambos, tornaram-se vizinhos e, desde então, a amizade prevalece até hoje. Os dois fazem tudo juntos: desde uma brincadeira até irem à escola. Com certeza — não havia um que não dizia —, eles seriam o casal perfeito no futuro. Daqueles que nasceram um para o outro.

Mas, se havia alguma coisa que interessava aos dois na flor de seus onze anos, não era casamento. Era o casarão que havia na vizinhança com cheiro de mortos apodrecendo. Nenhum adulto em sã consciência acreditava realmente que existiam fantasmas ou coisa do gênero lá dentro. Mas era inegável o terrível cheiro de defunto se decompondo.

E embora tivessem chamado as pessoas responsáveis da prefeitura para cuidarem de lugares abandonados, nada, absolutamente nada, era encontrado. Nenhum tipo de criatura morta, nenhum animal. A única coisa estranha que acontecia por ali, eram só algumas pessoas que desapareciam misteriosamente na rua e nunca eram encontradas, mais nada.

Os adultos mais velhos, achando que sequestro fazia parte da rotina de cidade grande, aproveitavam para assustar as crianças e educá-las, dizendo que se saíssem nas ruas da vizinhança em horas impróprias ou desacompanhadas de alguém responsável, seriam capturadas pelo imenso casarão e ficariam apodrecendo sozinhos, lentamente. Assim, as crianças não saíam à noite para brincar na rua, nem sequer passavam em frente do imenso casarão durante o dia.

O que mais chamava atenção no que dava para se ver do casarão da rua, eram os imensos vasos de plantas que havia na frente, com as plantas mais belas e mais verdinhas de todo o bairro. No início, os moradores acharam estranho, mas depois se acostumaram e acabaram concluindo que era alguém da vizinhança que gostava de manter as plantas vivas para não deixá-las morrer como o cruel, antigo e desconhecido dono deixara.

Em determinada manhã, Laura e Afonso decidiram invadir a enorme casa. Em vez de irem à escola, foram para o tal casarão. Não era difícil entrar, já que o portão de ferro estava todo enferrujado e caído em determinados lugares.

Agachando-se em um pedaço de portão torto, os dois conseguiram entrar. Do outro lado da rua, uma misteriosa pessoa observava tudo, sem que ninguém a percebesse, nem mesmo os garotos.

Passando por entre as plantas de enormes folhas que, apesar de belas e coloridas, eram estranhas e nunca antes observada por ninguém. Por toda a casa, uma trepadeira imensa cobria as paredes e o chão, parecendo ligar todas as plantas a algum lugar dentro da construção.

Temerosos, eles cochicharam e chegaram a conclusão de que lá dentro deveria ficar uma espécie de coração da casa, que alimentava todas as outras plantas e deixava a construção sempre em pé e rejuvenescida.

À medida que andavam mais e chegavam ao quintal, o cheiro de cadáver se intensificou. Mas, depois, abrandou. Fosse estarem se acostumando a permanecer no lugar, fosse por terem deixado o local com maior concentração de cheiro, o odor horrível começara a diminuir.

No quintal, havia plantas e mais plantas e parreiras e mais parreiras de trepadeiras dominavam tudo, inclusive a luz do sol que pouco conseguia transpô-las, embora ainda assim não ficasse escuro por completo ali.

No meio da parede oposta ao muro do fundo, existia uma entrada sem porta. Esta se encontrava atirada no meio do quintal. Decidiram, por fim, entrar. Quando, afinal, ultrapassaram o portal, os garotos se viram em uma pequena cozinha ligada a uma sala de jantar bem extensa. Plantas trepadeiras e outros tipos esdrúxulos estavam por todos os lugares, inclusive paredes, chão e móveis.

Além da sala de jantar, havia um pequeno corredor de onde saía uma escada para o segundo andar e uma sala de estar gigantesca era ligada. Sobre uma mesinha no corredor, era possível vislumbrar, à meia-luz, porta-retratos de madeira velhos e um tanto apodrecidos.

Neles, fotos de um casal de velhinhos criando uma imensa flor vermelha de pintas brancas como um filho. Tentando entender melhor os detalhes, Laura tentou pegar o objeto. Um braço da trepadeira atingiu-lhe a mão, impedindo que prosseguisse.

— Eu não faria isso, se fosse você — uma voz feminina vinha da sala de estar. — As plantas são muito ciumentas com as coisas que possuem — ela completou, quando as crianças olharam.

A sala, como todos os outros cômodos, estava cheia de plantas nas paredes, no chão, nos móveis, inclusive nos sofás. Mas havia algo diferente ali: uma garota sentava-se no chão em frente a um sofá e atrás de uma mesa vermelha de pintas brancas. O cheiro de defunto ali era mil vezes mais poderoso. Poderia causar até desmaios.

Laura pareceu fraquejar, mas Afonso a aparou. A garota sorriu e seus cabelos vermelhos balançaram. Ela indicou o sofá à frente da mesa estranha e de gosto peculiar com a mão. Os dois dirigiram-se para lá e sentaram.

— Minha casa é mesmo linda, não? — ela indagou, esperançosa.

— Um tanto incomum, eu diria — Afonso respondeu. Laura estava muito fraca para conseguir sequer falar.

— Querem beber alguma coisa? — Antes que respondessem, um bule caiu no chão e veio arrastado pelas trepadeiras da cozinha até a sala. Junto com ele, vieram três xícaras. — Bem, bem, bem! Aqui tem um chá maravilhoso, cheio das ervas mais saborosas. Tomem, tomem, tomem!

E serviu as três xícaras. A moça tomou rapidamente, enquanto os dois garotos decidiam-se em tomar, fingir ou jogar e sair correndo dali. Mas optaram por tomar, ainda que fosse timidamente, com pequeníssimos goles que não molhavam nem a ponta da língua direito.

— Qual seu nome, bela moça? — indagou Afonso, curioso.

— Raflésia! Bonito, não? — Ele acenou, concordando. — Mas devem me chamar apenas de Srta. Raflésia, pois sou ainda muito jovem e nunca dei frutos.

— Hmmm... Srta. Raflésia, aquelas fotos no corredor, de quem eram? — Laura conseguiu perguntar, apesar de sua súbita tontura e fraqueza.

— Dos meus pais! Eles eram meus pais. Nunca conseguiram ter um filho e eu acabei por ser a única coisa que conseguiriam criar... — E apontou para a mesa esquisita, onde o bule e as xícaras antes depositados sumiram.

No instante seguinte, Laura desmaiou e sumiu no meio do sofá, consumida pelas trepadeiras. Afonso levantou-se correndo, ainda tentando salvar a amiga... Mas ela sumira!

Tentou correr para fora, mas as trepadeiras prenderam seu pé e o içaram no ar. A moça saiu de trás da planta, mas, para o choque do garoto, ela era meio humana, meio mesa... Ou melhor, meio flor, porque, o que antes parecia mesa, era agora uma enorme flor que abria a sua imensa bocarra carregada de dentes para engolir o garoto, levantado cada vez mais alto pelas plantas.

Ele tentou gritar, mas sua boca estava entupida de plantas e, se não morresse nos dentes da podre e fétida boca da flor demoníaca, morreria, certamente, asfixiado.

Quando podia agarrar o teto com as mãos, Afonso foi solto do alto e caiu diretamente na garganta da planta. Não teve tempo nem de gritar. Foi estraçalhado nos seus dentes miúdos, mas afiadíssimos.

Nem Laura, nem Afonso foram mais vistos depois disso. Os pais, desesperados, nunca desistiram de procurar até que acabaram morrendo. Ninguém nunca soube o que aconteceu de fato com Laura, nem a pessoa que observara tudo acontecer de camarote do outro lado da rua e se encarregara de espalhar a história da planta assassina do casarão, dando uma nova versão ainda mais terrível dos sequestros das crianças, impedindo que elas saíssem muito de suas casas que não fosse para a escola e algum lazer.

A casa continua, até hoje, a feder a imaginação dos moradores e das crianças.

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 19/01/2012
Reeditado em 19/01/2012
Código do texto: T3450400
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