Lendas Malditas


 
"Dedico esse texto a minha querida amiga Lee Rodrigues"
 

   Iara estava cansada. Dormir sozinha naquela enorme casa, naquele bairro distante do centro era complicado para ela. Erick, seu filho de seis anos, dava um trabalho daqueles, mas ela sabia muito bem como colocá-lo para dormir. Bastava uma musiquinha, uma estorinha e pronto. Logo ela teria sossego. Ele dormiria assustado, mas dormiria, e afinal, o que importava àquela hora da noite era que ela tivesse uma ótima noite.
 
Boi, boi, boi,
Boi da cara Preta
Pega essa criança
Que tem medo de careta
 
  Erick tinha apenas seis anos e ouvia essa canção na voz doce de Iara, sua mãe. Seus olhos caiam na modorra enquanto sua imaginação trabalhava e sua mente entrava em um estado de desconforto. Seus olhos minguados piscaram até se perderem no abismo de seus medos e ele então apagou.
 
 O garoto já não estava no seio materno, tampouco no colo de sua linda e jovem mãe. Erick se via a três quarteirões de sua casa. Varias pessoas o cercavam, aquilo parecia ser uma procissão e ele ouvia suas vozes assombradas, melancólicas e assustadoras, como se fantasmas sussurrassem dentro de seu ouvido. Algumas eram conhecidas, outras não, mas todas entoavam o mesmo cântico e sinistramente suas faces de repente estavam sombrias. Entre caretas horrendas ele reconheceu uma das pessoas, um homem assustador, mas que pelas características era óbvio que aquele era o homem que sua avó Rita e sua mãe sempre falavam.
 
  O Homem velho, gordo, de pés sujos e unhas mal cuidadas sorria para ele com os dentes podres e os olhos vermelhos como se nunca tivesse dormido na vida. Aquilo confirmava o que sua avó contara. Aquele senhor vivia a perambular por aí com seu maldito saco de linhagem sobre as costas.
 
 O pequeno garoto olhou o homem encurvado, maltrapilho e fétido andando na direção dele, como se carregasse todo peso do mundo em suas costas. Suas mãos grossas, enormes e calejadas estavam estendidas na direção de Erick. O menino então ouviu gritos de socorro, e viu o saco se mexer como se alguém estivesse preso lá dentro.
 
  - Venha cá menino! – Disse o estranho homem abrindo sua mão esquerda e revelando sobre a palma dela três balas macias de morango, as prediletas de Erick. A tentação, a vontade de aceitar logo aquelas balas, desembrulha-las e sentir o gosto doce se esparramar pela boca o invadia, mas ele lembrou-se de seu pai dizer para que ele nunca aceitasse nada de estranhos, e aquele era um estranho e tanto.
 
  O garoto olhou nos olhos do homem repugnante e ao mesmo tempo sedutor e saiu correndo. Seus passos curtos nunca o livrariam daquela multidão horrenda, e entre lágrimas e seu choro infantil ele fechou os olhos e atravessou as almas que ali estavam, sentindo o vento gélido, que o trouxe calafrios de horror.
 
 Sem perceber que já não havia mais ninguém naquela rua senão ele, o garoto continuou a correr até tropeçar em algo e cair. Abriu seus olhos, levou os pequenos punhos aos até eles e enxugou as lágrimas de criança perdida e chorosa. Temeroso assuou o nariz e então vislumbrou o enorme animal a sua frente.
 
  O animal de enormes chifres acesos com um fogo infernal, tal quais duas tochas, soltava fumaça pelas ventas e bufava como um touro querendo pegar aquele garotinho que tinha medo de careta. Os olhos amaldiçoados da fera eram sombrios e raivosos.
 
 Erick não sabia o que fazer, era somente uma criança amedrontada. E o que fazer nessas horas senão recorrer a sua mãe? O garoto então em meio ao choro gritou desesperado por sua querida mãe e então ouviu o riso dela. E a viu acima do passeio, no canto da rua o vigiando bem em frente a sua casa. Ela apontava o dedo na direção dele e incitava o animal a caçá-lo.
 
 - Pega ele boi, ele fez arte! Menino malcriado, e medroso. – Erick viu o homem do saco surgindo ao longe, arrastando uma das pernas, vinha devagar enquanto o saco se movia. Ele vinha sedento pelo garoto. Ele temeu, sentiu-se confuso, triste e decepcionado com sua mãe. Estava sozinho e não havia nada que ele pudesse fazer senão correr, mas correr para onde?
 
 O enorme boi olhou insanamente, uma das patas traseiras se arrastou pelo chão trazendo a poeira da estrada e o animal abriu sua boca, berrou alto e partiu com os chifres prontos para acertar Erick.  Entretanto ao ouvir o berro do animal, o garoto despertou do terrível pesadelo.
 
  Erick se viu soando, e acordou aos prantos. Levantou de sua cama e olhou ao redor assustado, mas viu apenas a decoração multicolorida de seu quarto, os carrinhos sobre a cômoda, a azul cintilante que o cercava. Ainda assustado levantou-se e desceu escorregando pela borda do colchão, pisou com seus pequenos pés sobre o chinelo de pelúcia que seu pai o havia dado. Os aquecendo estavam as orelhas do Pernalonga.
 
Ainda de pijama saiu caminhando devagar, seu pequenino coração ainda acelerado, enquanto as imagens assustadoras perturbavam sua mente. Cercado pelo medo o garoto queria sua mãe, queria seu pai. Ele queria colo.
 
  Eram cerca de onze horas da noite, andando ainda com os olhos semicerrados e embaçados Erick enfrentou seus medos ascendendo as luzes uma a uma e dirigindo-se até o quarto da mãe. Ouviu então um sussurro e teve a certeza que havia alguém mais em sua casa. Escutou sua mãe, ela parecia chorar, chorava com a voz quase calada. Erick olhou na direção da cozinha que ficava ao lado de seu quarto e rumou para a pia onde encontrou a faca de cabo marrom, um instrumento de cerca de trinta centímetros.
 
  Segurou a arma e prosseguiu a passos curtos na direção do quarto de sua mãe, subiu as escadas que levavam a suíte e assim que pisou sobre o ultimo degrau se deparou com o pequeno corredor e avistou a porta do quarto dela aberta. Olhando para o chão ele viu as botas, a calça, viu os pés gordos do sujeito que estava atacando sua mãe. Aquilo era a única coisa que ele podia ver, pois o sujeito estava por cima dela enquanto ela gemia de dor.
 
 Erick não podia vê-los, pois havia um edredom os cobrindo. Ela xingava o homem, o chamava de safado, canalha, e de outros nomes que Erick tinha certeza que aqueles eram xingamentos que seu pai, como pastor da igreja que eles frequentavam, repudiaria em sua casa. Imaginou que todo aquele movimento por debaixo do edredom, era sua mãe tentando escapar das garras daquele maldito monstro.
 
 O pequeno correu na direção da cama, pulou sobre o lençol e antes que o sujeito pudesse o jogar para o lado, Erick ergueu as duas mãos que abraçavam o cabo da faca e num movimento ágil para a idade da criança, afundou a faca com toda sua força contra o corpo que se omitia por debaixo do lençol.
 
Um grito, num misto de êxtase e dor profanou-se pelo quarto, e Erick de repente se viu sendo jogado para o lado caindo com seu pequeno corpo no chão.
 
  Iara descrente olhou para a figura de seu filho, ela estava suada, ofegante, mas acima de tudo, estava assustada e nua. Erick estava sentado no chão, sorrindo triunfante para a mãe enquanto o homem o olhava de olhos arregalados. Ele também estava nu, mas parecia estar engasgado com a surpresa e dor que o invadiam. O homem engoliu em seco, fechou os lábios, e caiu de joelhos enquanto suas mãos tentavam arrancar a faca que estava cravada em suas costas. Até que ficou imóvel com as mãos fechadas segurando a faca ele caiu até que sua enorme barriga tocasse a ardósia fria.
 
  Erick lembrou-se de seu pai, do que ele sempre falava com ele.
 
“Vença seus medos filho, quando o papai não estiver, cuide de sua mamãe e de nossa casa. Pois você é o meu homem da casa.”
 
 - Meu filho, o que você fez?? – Iara perguntou enquanto voltava a si.
 
 - Peguei o homem do saco mamãe! Eu cuido da senhora! Eu cuido até o papai chegar do trabalho!
 
Iara não sabia o que fazer, olhou para Erick e teve a certeza que estava na maior enrascada de sua vida. Seu amante estava morto no chão enquanto o sangue dele se esparramava pelo piso e logo seu marido iria chegar. Iara olhou para seu filho e então para o corpo do homem que a visitava todas as quartas e sextas – feiras. Uma lágrima abruptamente escorregou pelo seu rosto, melancólica e decidida.
 
 Enquanto a lágrima seguia seu percurso, Iara pensava em cada crise e ao mesmo tempo em cada momento feliz com seu dedicado esposo. O precoce nascimento do filho quando ela ainda tinha dezenove anos e eles menos que um ano de casado, tudo havia acontecido muito depressa.
 
 Naquele momento ela se deu conta de como ela estava sendo fraca. Olhou para a foto na cabeceira da cama, era ela, Celso seu esposo e o pequeno Erick. Estavam juntos, sorrindo como uma família feliz.  E ali ela não teve duvidas,  não poderia mais encarar seu filho. Olhou-o nos olhos e pediu desculpas.
 
  O garoto de olhos inocentes não entendia do que ela falava, até que ela o abraçou, um abraço de despedida, e correu na direção da janela de seu quarto batendo contra o vidro e a fraca madeira, seus cotovelos à frente desbravando a morte, enquanto os cortes chegavam profundos.
 
 Iara não viu mais nada, apenas sentiu que a gravidade trabalhava contra ela. Por impulso fechou os olhos e ao invés de chocar-se com o chão, viu-se ofegante, e encharcada de suor ao abrir os olhos e perceber que aquilo tudo não passara de um terrível pesadelo. Olhou para Erick, ele estava dormindo em seu colo, ela o pôs na cama dela, beijou-lhe a testa antes de fazer um breve agradecimento a Deus.
 
Ouviu então o som oco de alguém bater a porta, desceu as escadas e chegou até o primeiro andar, onde ficavam a sala de visitas, a cozinha e o quarto de seu filho. Além de um banheiro, e uma pequena área de tanque nos fundos da casa. Abriu a porta da frente e o viu. Era Jorge, seu amante. Ela olhou-o, segura de si sorriu com um contentamento que ele desconhecia e o disse as últimas palavras que ele ouviria de sua boca.
 
 - Jorge, nunca mais! Desapareça daqui! – E então fechou a porta, encostou suas costas na madeira de sucupira e deslizou sem mesmo sentir o atrito de sua roupa com a madeira, até sentar no chão abraçando seus joelhos e chorando incontidamente.
 
  Foi quando ela ouviu aqueles passos, curtos, leves e tão conhecidos. Enxergou os pés calçados, envoltos em dois perna longas de pelúcia e ouviu seu filho, o homem da casa dizer-lhe com toda ternura e confiança.
 
 - Não chore mamãe, eu estou aqui para proteger você. Eu cuido da senhora! Eu cuido até o papai chegar do trabalho!
 
Fim.

A todos que me lêem um forte abraço e que Deus lhes abençoe e ilumine sempre!

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 10/03/2012
Código do texto: T3546517
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