E Aponto a Arma para a Minha Cabeça

Não digo meu nome. Ele não é importante. Sou apenas mais um ser humano. Digo que quando eu estava com meus 13 anos de idade, não havia outro adolescente tão puro e inocente quanto eu. A bondade e a nobreza de meu coração impressionavam a todos, e as pessoas mais próximas a mim frequentemente diziam que tinham a impressão de ver nos meus olhos brilhar uma luz profunda em cada momento em que eu realizava, sem nenhum interesse, sem esperar nenhuma recompensa, uma boa ação.

Eu estava sempre disposto a amar e a auxiliar qualquer pessoa que necessitasse de minha ajuda para o que quer fosse. Amava a humanidade e a natureza da mesma forma, e todos os meus atos, da mais plena boa vontade, visavam o bem para todos os seres do planeta. Meus pensamentos eram os mais elevados. Meus sentimentos, os mais sublimes. E da mesma forma que o amor vivia em mim, eu cria que ele também pudesse existir nos demais homens, ainda que eu soubesse das perversidades de que a humanidade era capaz.

Prossegui desenvolvendo esse amor em minha alma até por volta dos 17 anos. Foi então que minha doença teve seu início. Os médicos e psiquiatras jamais souberam explicar o que acontecia comigo. Era alguma espécie de psicopatologia. Obviamente, jamais fui curado, pelo contrário, a moléstia progrediu mais e mais, de forma implacável.

Consistia tal enfermidade na capacidade demoníaca que adquiri de poder ver, como se fosse algo físico, material, a maldade que havia nas pessoas. É ostensível que tal capacidade anômala e perturbadora atormentava-me sem trégua em todos os instantes em que eu me encontrasse na presença de qualquer ser humano. Eu via uma sombra, uma névoa intensamente escura, quase negra, que se desenvolvia nos ares e assumia formas monstruosas, diabólicas, diante de meus olhos apavorados.

Enquanto eu, de maneira insana, e considerado um insano por todos ao meu redor, observava aterrado o desenrolar nebuloso daquelas sombras pelo ar, no interior dessas mesmas sombras assomavam-se pares de olhos vermelhos que se fixavam nos meus. Então, rápidas como um raio, as sombras, a partir de seus olhos sanguinolentos, penetravam, através de meu olhar, no interior de minha psique.

E a partir desse instante, tais condensações de maldade, como eu achei adequado denominar, infligiam em meus sentimentos e pensamentos coisas horríveis que mal consigo nomear. O que posso dizer é que as sombras oriundas dos olhos de todas as pessoas com quem eu entrava em contato, não importando quem fosse tal pessoa, nem o momento, nem o lugar onde eu estivesse, invariavelmente penetravam em meu interior, trazendo consigo toda a maldade que havia nos outros indivíduos e transmitindo-a a mim. Tais eram os sintomas básicos de minha enfermidade, de minha loucura. Porém, minha desgraça ia mais longe.

Imediatamente após aquelas sombras entrarem em meu ser, surgia em minha mente o conhecimento de todo o horror oculto que existia em determinado indivíduo. Eu passava a conhecer os seus mais íntimos segredos, as suas perversidades mais inconfessáveis, seus crimes cometidos sem o conhecimento de ninguém, sua hipocrisia, seus desejos monstruosos, seus ódios, cobiças e invejas, seu desespero e infelicidade jamais expressados ou admitidos. Enfim, tudo aquilo que se fosse alardeado ao mundo, causaria o mais grotesco espanto.

E com o conhecimento da integridade do horror que habitava o âmago da alma de meus semelhantes, passei a sentir um desprezo, uma repulsa, um ódio a todos os seres humanos. Aquele meu antigo pensamento de que os humanos eram, no fundo, bons e confiáveis, morreu completamente. E as sombras negras que invadiam meu interior pareciam ditar a minha psique que eu deveria me tornar como eles, fazer morrer todo o amor que havia em mim e deixar nascer e procriar-se o mal em todas as suas formas, com todas as suas consequências.

A princípio, tentei resistir. Eu procurava afastar-me das pessoas ao máximo para não ser invadido por suas sombras. Porém, era-me impossível viver assim, nesse isolamento completo. E como era inevitável contatar-me com outros humanos, também era inevitável, devido a minha doença, que as sombras me invadissem. E quando elas penetravam em minha psique, sempre me ordenavam para que eu fosse mau. E a minha resistência lentamente sucumbiu. E aos poucos, tornei-me um homem realmente mau, perverso, cruel e calculista. E eu desejei ir além da maldade comum a todo e qualquer ser humano. Eu queria ser o pior de todos, eu queria resumir em mim tudo o que havia de pior na humanidade.

E se antes eu sentia repugnância de me aproximar das pessoas para não ser invadido por suas sombras asquerosas, agora eu buscava isso. Procurava me aproximar de todos os seres humanos, dos mais perversos deles, para absorver toda sua maldade e tornar-me pior do que eles. Meu anseio era ser o símbolo maior da degradação e da iniquidade da civilização atual. E considerei-me capaz de atingir meu objetivo.

Carregando em meu interior a maldade de milhares de pessoas, pensei em qual seria o comportamento inicial de alguém com um caráter perfeitamente diabólico. E, friamente, determinei que eu deveria transmitir a todos uma aparência e uma sensação primordial de que eu era o melhor dos humanos, como até então todas as pessoas próximas a mim, com razão, consideravam-me. Não foi difícil, portanto, ser o mais hipócrita dos hipócritas.

Eu pregava a todos o amor, a paz, o altruísmo, a honestidade, enquanto o horror e o ódio fervilhavam em minha psique. Utilizando-me de minha inteligência calculista e de minha total falta de escrúpulos, fui galgando degraus na vida social, passando impiedosamente por cima de meus adversários, humilhando-os e prejudicando-os de todas as formas ao meu alcance. No entanto, sem jamais que alguém soubesse que eu era o responsável pelos atos abomináveis.

Assim, entrei para a vida pública, mentindo descaradamente, não perdendo oportunidades de ser desonesto, acumulando bens materiais pelos meios mais escusos. Tornei-me um perfeito corrupto: um ladrão irrepreensível. Roubava o máximo que podia sem despertar a mínima suspeita.

Quando reuni um montante de dinheiro que julgava suficiente, abandonei minha carreira para dedicar-me plenamente à maldade e à depravação. Então pude finalmente retirar minha máscara hedionda de hipocrisia e ser descaradamente mau. Esmaguei todos os sonhos e ideais de nobreza e dignidade que um dia nutri em meu ser, desisti definitivamente de encontrar o verdadeiro amor em uma mulher e lancei-me a mais extrema e absurda promiscuidade. Participei das piores orgias, chafurdei em todas as lamas, pisei sem pena nos corações de todas as mulheres que diziam me amar. Explorei-as sexualmente, para logo depois as desprezar como um monstro, ridicularizando-as e debochando de seus sentimentos. Eu nunca acreditei que alguma delas realmente me amasse, e o que nutria por todas era um profundo e amargo ódio.

Viciei-me em todos os vícios, experimentei todas as drogas e influenciei para que o maior número de pessoas fizesse o mesmo que eu. Desestimulei todos os ideais, todos os pensamentos nobres, todos os sentimentos elevados. Desprezei todas as manifestações verdadeiras da arte para cultuar o que havia de mais imundo.

Tornei-me um consumista irrefreável, consumia tudo o que me era possível, desperdiçando o máximo que podia os recursos naturais. Com um prazer infinito, eu jogava lixo nos rios, queimava produtos de fumaça tóxica com o intuito único de poluir o ar. Eu agredia árvores e plantas e torturava animais sem a mínima clemência. Caçava sempre que podia apenas para ter o prazer de ver o animal morrendo. Enfim, eu queria simbolizar o mal da humanidade em todos os sentidos, em todas suas possibilidades, desejava levar a cabo a plenitude da malignidade que existia no ser humano.

Eu sentia-me na obrigação de ser perverso. Eu invejava, cobiçava, odiava, não porque isso aflorasse em mim naturalmente, mas porque eu assim desejava. Porque esse era o desejo das sombras dentro de mim, e o desejo delas era o meu. Eu buscava realizar-me a fundo dentro da vastidão do mal. Era como uma missão que eu devesse cumprir. E estou certo que eu a estava cumprindo. Com méritos. E isso me enchia da mais ominosa vaidade, do mais perverso orgulho.

E que deleite eu sentia em humilhar todos os que se aproximassem de mim. Eu os ridicularizava pela feiúra de seu aspecto físico, ou pela sua falta de inteligência, ou por ser gordo, por ser negro, por ser pobre, por ser deficiente físico, enfim, eu sempre encontrava um motivo para humilhar os outros, para utilizar-me de meu devastador deboche.

Eu tinha uma especial predileção por ridicularizar todas aquelas pessoas que ainda possuíam, ou pensavam possuir, algo de profundo, de ideal, de nobre em seus corações. Jogava-lhes na cara o quão eram imbecis em crer em algo elevado, o quanto tudo isso era inútil e anacrônico, e que estavam desperdiçando suas vidas em quererem ser “grande homens”. Meus olhos brilhavam ao ver aqueles jovens enfurecidos ou desolados por eu ter pisado nefastamente em todos os seus sonhos, seja de grandeza, de dignidade ou de amor.

Quando percebia que meus recursos financeiros estavam se reduzindo, para não ter que trabalhar ou ganhar dinheiro de alguma maneira honesta, eu formulava uma maneira de enganar os incautos e roubar-lhes o máximo que pudesse. Alguns dos procedimentos de que fiz uso foi emprestar certas quantias a juros exorbitantes e associar-me ao tráfico de drogas. Porém, o mais eficaz para obter imensas somas de dinheiro foi utilizar-me de minha antiga convivência na vida pública com os mais distintos políticos. Eu os chantageava. Sim, porque eu sabia de muitas coisas e poderia denunciá-los, caso não fosse devidamente recompensado. Isso se tornou para mim uma fonte inesgotável.

Uma satisfação indescritível eu sentia correr pelas minhas veias quando eu via nos noticiários todas as abominações, todos os horrores, todos os absurdos que assolavam a humanidade nos quatro cantos do planeta. Assassinatos, genocídios, corrupção, violência e exploração de todas as espécies, vícios, devastações impiedosas, poluições nunca vistas, massacres de animais, os crimes mais monstruosos, as degradações mais repulsivas, a injustiça, a fome, as doenças, a miséria, as catástrofes ambientais, a desigualdade, o reinado do egoísmo, o império da aparência, todas as atrocidades que diariamente bombardeiam nossos olhos eram para mim um colírio que me enchia de alegria. Eu me regozijava em saber que em um mundo cada vez pior, eu era o pior dos humanos.

Enfim, eu havia vivido e praticado todas, ou quase todas, as maldades possíveis, sempre me alimentando das sombras negras que eu absorvia dos olhos de todas as pessoas com as quais eu entrava em contato. A humanidade é uma fonte infinita de tudo o que é maligno. Porém, eu ainda não me tornara um assassino. Sim, era isso o que faltava para a integridade de meu mal.

Tomei então a resolução de cometer o mais cruel dos assassinatos. Não desejava apenas matar alguém, mas matar da forma mais fria e torturante possível. E, claro, de maneira que meu crime jamais fosse descoberto. Tornando-me um cruel homicida, eu teria então resumido em mim, finalmente, todo o horror humano, como se eu fosse um microcosmo da humanidade.

De modo que passei a imaginar qual seria o mais cruel dos crimes. Pensei que deveria escolher uma moça indefesa e inocente, ou a mais inocente possível, já que uma pessoa totalmente inocente não existe. Antes de matá-la, eu iria torturá-la física e psicologicamente. Eu imaginava as perversidades que poderia cometer. Poderia queimar partes de seu corpo, aos poucos, sentir o cheiro da pele queimada. Poderia perfurar seus olhos e beber o líquido intraocular, arrancar fios de cabelo e fazê-la os engolir. Poderia abrir seu abdômen e retirar seus intestinos, obrigando-a a olhar para eles, enquanto eu os cortava e os queimava. Poderia arrancar seus dedos, beber seu sangue, enfiar insetos em seus ouvidos, estuprá-la, arrancar seus mamilos, enfim, as possibilidades de tortura eram infinitas. Eu estava, portanto, decidido.

No início da noite, saí às ruas portando uma pistola, e não foi difícil encontrar minha vítima. Era uma linda moça de cerca de 20 anos, com belos olhos castanhos. Calcei-a com a arma e ordenei para que me acompanhasse em silêncio, que assim nada aconteceria com ela.

Caminhamos, da forma mais natural possível, até minha casa. Entramos, e ordenei à moça que sentasse em uma cadeira. Ela protestou e, muito nervosa, perguntou o que eu queria com ela. Então disse friamente que se ela abrisse a boca para falar qualquer palavra sem a minha permissão, eu meteria uma bala na sua cabeça e teria prazer em comer seus miolos. Ela se calou, apavorada. Em seguida, atei seus pés e suas mãos firmemente e sentei-me diante dela para contemplar sua beleza aterrorizada.

Perguntei seu nome. Chamava-se Luísa. Decidi, então, antes de iniciar a sessão de tortura, olhar nos seus olhos para absorver o mal que havia nela e fortalecer-me ainda mais. Porém, nesse instante, algo totalmente inesperado aconteceu. Nenhuma sombra negra saía de seus olhos. Pelo contrário, o que vi em seus olhos foi o brilho de uma luz profunda, creio que a mesma que as pessoas diziam perceber nos meus olhos durante minha infância e no princípio de minha adolescência.

Por instantes, permaneci absorto, extático, extasiado contemplando aquela luz sublime que emanava dos olhos de Luísa. E a moça, percebendo meu estado de alucinação, com receio, mas revelando coragem, declarou com firmeza: “Se vai me matar, por favor, faça logo”. Eu não disse nada. Levantei da cadeira, libertei Luísa das amarras e a conduzi até a porta. Ao abri-la, murmurei, profundamente abalado: “Sublime Luísa, eu te agradeço infinitamente e do fundo da minha alma miserável, te peço um inútil perdão”.

Ela me olhava fixamente, não entendendo absolutamente nada, porém percebi que já não estava com medo. Então, com seus lindos olhos fixos nos meus, falou com voz suave: “Que estranho, tem uma luz brilhando nos teus olhos...” Ao que respondi: “Sim, e essa luz é tua, não minha. Agora vá”. E ela partiu rapidamente.

Fechei a porta e sentei-me na cadeira. Desesperado, não consegui chorar. Somente um pensamento perturbava minha mente: era o de que a luz dos olhos de Luísa, tendo-se fixado uma só vez em mim, havia anulado toda a sombra de treva que acumulei no meu interior durante todos esses anos. Eu havia voltado a ser o que um dia fui. Depois de ter sido o pior dos monstros e vivido uma vida de maldade, horror e crime, eu poderia voltar a ser o que era em minha infância?

Não, não poderia. Se quando comecei a absorver o mal dos humanos, eu tivesse encontrado uma pessoa, uma só que fosse, como Luísa, que possuísse essa luz nos olhos que ela me transmitiu, eu não teria me tornado o demônio que até bem pouco tempo fui. Eu não teria. Mas eu não encontrei ninguém assim. Eu só vi sombra e trevas nos olhos das pessoas.

Agora é tarde demais. Decidi então escrever este relato, para testemunhar a minha desgraça. Que pelo menos ele sirva para algo de bom, já que eu não servi. O meu objetivo foi resumir em mim todo o mal da humanidade. Só faltou eu ter sido um assassino. Não fui. Porém, ainda falta mais uma coisa: a humanidade se autodestrói. Eu ainda não me autodestruí. Farei agora. Largo a caneta. E aponto a arma para a minha cabeça...

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 28/03/2012
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