O Demônio Familiar II

A detetive Jessica Holtz saltou para trás quando ouviu o grito da mulher. Já vira coisas terríveis nas últimas semanas, mas seu coração ainda não aprendera a não se abalar com as vicissitudes do mundo. Um policial apareceu atrás dela e gritou pelos para-médicos antes que pudesse dizer algo. Holtz segurou o menino e verificou se ele estava ferido, enquanto a mulher gritava e esperneava. O policial tentou contê-la. Era inútil. Tudo o que fazia era gritar.

Holtz se afastou com o menino, e a mãe, cega, com as agulhas nos olhos coagulados, com as manchas de sangue enegrecido no rosto, estendia as mãos em busca da criança. A detetive viu os médicos chegarem e pegarem a mulher. Deu-lhes a criança e acompanhou até a ambulância. Quando a porta se fechou, notou como as pessoas da rua olhavam. Estava em uma vizinhança de classe média alta no subúrbio. Viu os rostos assustados pedindo respostas e uma ação imediata para identificar o assassino. Apenas um deles não tinha o medo ou a ânsia sádica do ser humano de enxergar uma desgraça. Era um homem vestido com um sobretudo cinza e com um chapéu preto, parado no fim da rua. Tinha uma cicatriz na bochecha e olhava para a casa e para a ambulância com bastante atenção.

Aquele rosto foi imediatamente anotado na mente da oficial. Disse para um outro agente do FBI prestar atenção no indivíduo estranho e voltou para a casa. Encontrou um piso de madeira coberto por sangue, provavelmente dos olhos da mulher. Holtz quase podia ouvir os gritos ainda espalhados pela casa. Imaginou a cena com cada pedaço de sua imaginação. Por mais que tentasse se desviar dos detalhes, não conseguiu conter as imagens.

O quarto estava horrível. Milhares de moscas estavam se alimentando do corpo do homem falecido. Pousavam nos intestinos espalhados. Brincavam no sangue coagulado, saltando entre os órgãos, fezes e depois passeando pelo corpo.

A detetive colheu todas as impressões digitais. Procurou durante um dia inteiro, após liberar o corpo. Mandou para o legista e tentou imaginar o que teria provocado aquela tragédia. Era a quinta vez que via uma cena tão maldita e primeira que não a fazia vomitar. Cada uma tinha seu grau de sadismo e agora ela sentia que não tinha mais como se impressionar. Isso começava a destruí-la. Não queria perder a noção do que era terrível e insuportável para a humanidade.

Seu parceiro, o agente Michael Ford, parou com um bloco de notas ao lado dela. Era um homem de estatura média, com entradas grandes nos cabelos negros. Tinha olhos azuis claros e pele branca. Usava um brinco na orelha esquerda e sempre mascava chicletes.

- Mais uma dessas mortes e eu pergunto por que meu salário não aumenta.

- Se ocorrer mais uma morte assim, eles nem nos pagarão mais.

Ford se abaixou. Já era o fim do dia e eles haviam acendido a luz. Foi quando Holtz notou que, se ninguém havia mexido na cena, a luz estaria apagada durante o assassinato. Ou então o assassino tomara o cuidado de apagá-la. Lembrou-se de que todas as outras mortes ocorreram à noite também.

- Ele deixou a mulher viva dessa vez – comentou Holtz.

- E a criança... – falou Ford.

- Ele nunca mata as crianças. O medo delas é que o diverte. Elas sempre acabam vendo a cena de um jeito ou de outro.

- Fico com pena dessas crianças. Fico pensando no meu filho quando vejo uma desgraça dessas acontecendo. Isso me deixa pensativo – disse Ford, com um meio sorriso no rosto. Parecia triste, o que fez Holtz pousar a mão em seu ombro e consolá-lo.

- Não se preocupe com essas crianças, nem com seu filho. Pare de levar seu trabalho para casa. Você se estressa demais e leva o stress para casa.

- Verdade... Mas como não vou ficar preocupado com isso – disse ele, mostrando o quarto cheio de sangue. Ainda havia pedaços do intestino no chão.

Saíram já fartos de analisar a cena. Nunca encontravam nada. Não havia traços de digital. Não havia sinal algum. O criminoso era bom demais no que fazia. Aquilo irritava Holtz e ainda mais Ford, um sujeito idealista demais, que nunca parava de pensar nos problemas. A detetive era diferente dele. Ela acreditava que deveria cumprir a lei, porém não se imaginava chegando em casa e comentando com o marido sobre as cenas de crime ou sobre as cosias terríveis que via. Não, o trabalho acabava assim que o expediente era encerrado.

Foram para o necrotério conversar com o legista. O homem ainda mexia no corpo do defunto, observando intrigado mais uma pessoa rasgada, com a marca do sofrimento estampada no rosto.

- Ele é forte, muito forte – comentou o médico. – Mesmo que tenha usado algo muito afiado, precisaria de muita força para abrir de uma vez o abdome desse jeito.

Mostrava os traços das lâminas e os restos de pele. Os músculos abdominais estavam fatiados e boa parte dos órgãos havia caído ou ficara pendurada por pouco.

- E as moscas? – perguntou Ford.

- Encontrei muitas dentro do corpo. Parece até que brotaram de lá.

- Impossível. Ele ficou apenas uma noite lá. Acho que o assassino as colocou. Aconteceu com outros corpos.

- Mas nos outros houve maior demora para encontrarmos.

A memória da cena de outro crime saltou na mente de Holtz. Encontraram uma criança em choque, trancada no quarto com os pais em volta, presos em arames farpados. Haviam morrido devido ao sangramento dos inúmeros cortes e também por vomitarem uma poça de sangue e ácido estomacal em cima da pobre menina.

- Acho melhor prenderem esse sádico logo. A imprenssa está ficando doida! – disse o legista.

- Estamos tentando! – falou Ford, ríspido. Saiu pisando duro e Holtz precisou se desculpar.

- Ele está estressado com o trabalho.

Ela voltou para casa depois disso, cansada e preocupada. Assim que girou a chave da porta pela primeira vez, esqueceu-se que trabalhava no FBI. Chamou pelo marido, mas não havia ninguém. Foi direto para a cozinha abrir uma garrafa de vinho. Tomou um daqueles banhos quentes que saturavam o banheiro com vapor. Era uma nuvem de preocupação que deixara o corpo dela e relaxara todos os músculos.

Saiu com um roupão rosa com flores bordadas. Bebia um pouco do vinho e estava com uma revista na mão quando quase saltou de surpresa. Havia um homem sentado no sofá da sala. Demorou segundos para reconhecer que era o estranho com a cicatriz. Jogou o copo sobre ele e correu para pegar a arma. Quando voltou, ele ainda estava lá, só que agora de pé, esperando pacientemente.