Por Mera Sobrevivência I (Vampiros)

Esse conto foi originalmente publicado na revista Dragão Brasil como introdução para a aventura de RPG Escolhas Fatais. Usei aqui os esteriótipos dos clãs do jogo Vampiro: A Máscara para escrever um conto que ajudasse a exemplificar a ajudar o mestre a lidar com a aventura.

Por Mera Sobrevivência (Parte I)

Eduardo esfregou os olhos e olhou para a escuridão a seu redor. Espreguiçou de um modo que não precisava fazer há quase cinco anos. Estalou os dedos e finalmente saiu da cama. Trocou de roupa languidamente para depois lavar o rosto. A água escorreu pela pele pálida e morta sem ser absorvida. O vampiro esfregou as bochechas com força e nem com isso elas tomaram cor, continuaram com a mesma palidez mórbida que adquiriram desde que fora Abraçado. Gargarejou um pouco de um produto para melhorar o hálito e, depois dos últimos cuidados com a vaidade, finalmente saiu de casa. Mateus já o esperava do lado de fora.

Os passos de Eduardo foram lentos não apenas porque acabara de acordar. Ele tinha dúvidas sobre o que estavam para fazer. Sempre estava cheio de dúvidas, o que gerava um temor dentro de seu coração estagnado. Passou a mão pelos cabelos loiros para verificar o gel e deu uma olhada nas unhas. Ao menos a aparência deveria estar boa. Tinha uma reputação a manter entre os Toreador, afinal não fora transformado à toa. Ele era um ícone na cidade, famoso, rico, bonito, uma progênie perfeita para qualquer vampiro. Certo, os Brujah diziam que ele era o ícone da futilidade e não passava de fezes perfumadas boiando no rio poluído que era a Camarilla. E quem disse que Eduardo dava atenção para isso? Poderia ser fezes, mas ao menos estava boiando. Não afundaria como estava acontecendo com aqueles anarquistas malditos.

Seus olhos claros fitaram o carro de Mateus com inveja. O Ventrue sempre estava bem vestido e bem equipado. Com cabelos raspados e um corpo bem constituído, Mateus parecia-se com um galã de um filme americano, daqueles que de repente se transformavam em máquinas de matar e destruíam tudo que os ofendiam. Naquele dia, estava para fazer isso. Eduardo entrou no Audi de vidros escuros, à prova de bala, por sinal e cumprimentou o Ventrue. Mateus respondeu com educação, porém friamente. O desprezo que sentia por Eduardo estava claro na aura dele. O Toreador enxergava isso todos os dias que saíam para suas missões. Fora assim nos últimos cinco anos, quando Mateus, já com treze anos vividos na Camarilla, fora incumbido de ensinar o neófito a sobreviver.

- E aí, franguinho? Como você está? – perguntou alguém no banco de trás.

- Muito bem, Fred – Eduardo respondeu, sem se virar para o Brujah. O som tocava um estilo de música que não agradava o Toreador. White Stripes... O visor indicava que o nome da música era Seven Nation Army. Eduardo sempre imaginava que todo Ventrue só gostava de ouvir três coisas: música clássica, o som de dinheiro sendo contado e o da própria voz. Mateus era diferente. Quase não falava, ouvia coisas como aquele tal de White Stripes e agia mais como um mercador da morte do que como um usual burguês Ventrue.

Os três formavam um grupo bastante inusitado. Um Toreador preocupado com sua imagem, um Ventrue misterioso, fiel servo da Camarilla, e um típico Brujah brutamontes. Só estavam unidos por ordens de seus Senhores. Não fosse por isso, talvez já tivessem bebido o sangue um dos outros. Expressão negativa e rude, pensou Eduardo. Ele não era daqueles vampiros que ficava imaginando batalhas, tiros ou sangrias desatadas. Mesmo tendo trabalhado tanto para os anciões, sempre agia como um perfeito cavalheiro. Para ele a vida era assim, a batalha era uma pretensa troca de palavras rudes, com apenas alguns tiros trocados de vez em quando. A vida vampírica deveria ser um romance capa e espada.

- O que temos que fazer hoje? – perguntou Eduardo. O riff de Seven Nation Army o incomodava. Ele odiava aquilo. Não disse nada quanto a trocar de música. Mateus já havia comentado uma vez que sempre repetia aquela música na cabeça no meio de uma luta, enquanto arrebentava corpos dos inimigos.

- Seqüestro. Você entra primeiro, Fred fica no apoio. Eu seguirei em seguida. Você apenas quebrará o gelo.

Eduardo engoliu em seco. Seqüestro... Que tipo de coisa era aquela? Queria perguntar o motivo da missão, mas teve medo de parecer estar questionando as ordens. Felizmente, Fred estava lá para isso.

- Seqüestro? Mas por quê?

- Violação da Máscara. Há um Caitiff mantendo uma família inteira como carniçais. Recebemos a denúncia na noite passada.

Eduardo quase vomitou. A ânsia de vômito era um reflexo que seu corpo morto-vivo ainda não havia perdido. Uma família inteira alimentando-se de sangue vampírico? Que espécie de criatura faria aquilo? Não conseguia entender o que era pior, seqüestrar aquelas pessoas ou deixar que vivessem naquele estado, como escravos de sangue de um vampiro, ainda mais um boçal como um Caitiff.

O Audi percorreu a cidade por algum tempo até finalmente pararem em um bairro mais afastado da cidade. Mateus desceu do carro e caminhou pela rua. Parou ao lado de um carro e ali esperou durante quase meia hora Não havia expressão de aborrecimento em seu rosto, apenas uma seriedade que quase desaparecia na penumbra. Os postes da rua quase não iluminavam o lugar. Quando finalmente o dono do carro apareceu, Mateus o fitou nos olhos. Eduardo sorriu amargurado. Lá vinham aqueles poderes de controle mental.

- E nosso Ventruezinho faz seu joguinho mais uma vez. Será o que ele vai mandar o cara fazer? Vai mandar o cara se matar?

- Deixe disso, Fred. Vamos. Ele já mandou o homem embora – disse Eduardo, saindo do carro. Mateus já estava fazendo sinal para ire até o automóvel que usariam no seqüestro.

O Toreador e o Brujah entraram no carro popular e seguiram para o endereço. Mateus não disse uma palavra durante metade do trajeto. Às vezes cantarolava baixinho uma música do White Stripes ou do Led Zepellin. Eduardo estava cada vez mais nervoso. A curiosidade sobre o que aconteceria com o dono do carro o corroia, somando-se a ansiedade do seqüestro.

- O que será da família? – perguntou Eduardo.

Mateus continuou calado. Fred soltou uma risada sarcástica antes de fazer seu comentário.

- Desde quando os chefes ligam para o que acontece com humanos?

Eduardo passou a mão sobre a boca, esfregando a pele e tentando não demonstrar mais nervosismo que aquilo. Sabia que Mateus já percebera muito bem o que ele estava sentindo. Se passasse da conta, o Ventrue poderia começar a desconfiar que o jovem Toreador não estava mais tão ligado aos planos dos anciões como deveria.

O carro parou em uma rua suja e mal iluminada. O asfalto estava quebrado em algumas partes. As calçadas tinham árvores pequenas e mal cuidadas cujas raízes já haviam quebrado o cimento. A casa em questão tinha um muro baixo pintado de azul. Um portão de grade permita ver um jardim florido com a grama verdade. A luz da varanda estava acesa e era possível ver pela janela aberta que alguém assistia televisão lá dentro.

- Quebre o gelo – disse Mateus. O Ventrue já estava preparando as armas. Colocou um silenciador em ambas e as ajeitou no coldre debaixo da jaqueta.

- Vamos precisar disso mesmo? – perguntou Eduardo.

- Eu também quero uma - disse Fred. - Já estou cheio de andar com 38. Quero uma automática.

Mateus entregou uma das armas para ele, como se o fizesse apenas para calar uma criança que pedia demais.

- E eu?

- Você não precisa, florzinha. Duvido que um Toreador saiba usar isso – disse Fred.

- Você não precisa sujar suas mãos, Eduardo – comentou Mateus.

Eduardo saiu do carro seguido pelo Ventrue. Tocou o interfone e, quando foi atendido, falou qualquer coisa sobre conversar com o chefe da família. Disseram que abririam a porta com a chave, porque o mecanismo de abrir o portão de dentro da casa estava estragado.

- Eles vão me reconhecer – disse Eduardo.

- Você não aparece em nenhuma coluna social há cinco anos e ninguém além da elite da cidade dava atenção para suas músicas e poesias eruditas. Ninguém da periferia o conhece, Eduardo – disse Mateus, secamente. – Sem ofensas.

- Não se preocupe – mentiu Eduardo, quase sem esconder o quanto estava ofendido.

Uma garota morena de olhos azuis os atendeu. Era simplesmente linda. Deveria ter por volta dos dezoitos anos e uma face de anjo que brilhava. Estava vestida com um tope e uma calça jeans que a deixavam confortável em casa, mas que eram uma ofensa para os olhos de Eduardo. Para ele, uma beldade como aquela deveria estar com um vestido das marcas mais caras ou então nua em sua cama. Notou de relance que Mateus também a observava. Havia um tom de fome na aura do Ventrue. Eduardo sabia muito bem o fraco que ele tinha por morenas. Só se alimentava delas.

- Oi, posso falar com seu pai? – perguntou Eduardo, com um sorriso irresistível.

Ela respondeu que sim, sem dúvida. Não fez perguntas. Não disse nada. O sorriso dele era resposta para tudo. Começaram a andar pelo jardim. Eduardo tentava conter o tremor e manter o sorriso. O olhar apaixonado da garota o deixava constrangido e culpado.

- Confirme as informações nas mentes deles – disse Mateus.

A garota olhou para o Ventrue.

- O que o senhor disse?

- Eu não disse nada. Esqueça o que eu disse – falou Mateus e o olhar dela ficou vazio por uma fração de segundos, para depois refletir de novo a imagem de Eduardo.

Entraram em uma casa simples com dois sofás azuis na sala. Havia vasos da mesma cor sobre uma mesa logo atrás do sofá, onde um jovem de vinte anos comia um sanduíche. No sofá, um homem e uma mulher assistiam à novela. Depois deles, sobre o tapete, um menino brincava com bonecos comprados em lojas de R$1,99. O homem barrigudo, com barba mal feita, se afastou da esposa e levantou-se para cumprimentar a dupla. Todos os outros olharam maravilhados para Eduardo. O Toreador temeu, e também esperou, que tivesse sido reconhecido, mas eram apenas seus poderes vampíricos chamando a atenção de todos.

- Posso conversar com o senhor a sós? – disse o Toreador.

O homem não perguntou motivo. Apenas concordou maravilhado com uma visita tão esplendorosa como aquela. Os dois saíram um pouco da casa e Eduardo começou a puxar assunto como somente alguém com tanto traquejo social sabia. Circulou o verdadeiro motivo da conversa enquanto lia os pensamentos do homem. Quando chegou o momento derradeiro, finalmente viu a verdade. Viu a imagem do sangue descendo pela garganta do homem. Ate pela garganta de Ana, a garota bonita. Não... Mas não foi isso que mais o surpreendeu. O menino bebia do mesmo sangue. Eram todos escravos do mesmo vampiro. O horror o fez sentir ânsia de vômito mais uma vez. Lágrimas vermelhas quase desceram por seus olhos. Uma família inteira mantida naquele estado. Era inumano.

Fez sinal para que entrassem de novo na casa. Encontraram a família toda de pé, com os olhos vidrados em Mateus. Nenhum deles estava se movimentando. O Ventrue estava com o rosto quase colado no da garota.

- O que está acontecendo? – disse o homem, finalmente reconhecendo o perigo de que haviam sido avisados.

Mateus virou-se imediatamente e o mandou se calar. Não se ouviu mais nenhuma palavra. O Ventrue passou a língua pelo pescoço de Ana.

- Você nem ao menos me esperou confirmar – disse Eduardo.

- Se você não confirmasse, eu já precisa mantê-los preparados para apagar suas memórias – respondeu o Ventrue. O cheiro de Ana o inebriava. Era uma tentação que o perturbava. – Vamos embora, antes que alguém apareça.

Saíram da casa depressa.

- Não vão caber todos no carro – alerto Eduardo.

Mateus olhou para o pai, a mãe e o menino e ordenou que dormissem. Assim eles desfaleceram em seus braços.

- Levem esses três para a mansão Le Mur. Vá lá e chame o Fred. Vocês irão no carro da família.

Eduardo não conseguiu dirigir e passou o volante para Fred assim que entraram no carro. Haviam acabado de seqüestrar uma família inteira! Uma família de carniçais! O que era pior? O seqüestro ou manter aquela família como escravos eternos? Mordeu um dedo nervosamente. Era um hábito que tinha desde a infância. Dessa vez, as presas quase arrancaram sangue. Teve medo de a Besta o tomar. Estava começando a ficar descontrolado.