O INFERNO DAS ÁGUAS

O avermelhado do céu na imensa hidrelétrica dava um tom nostálgico àquele fim de mundo, ao redor a mais impenetrável floresta equatorial do mundo, hoje apenas alguns trabalhadores para a manutenção, mas ela guarda em seu concreto armado, esqueletos humanos, de gente que morreu durante a construção e ali foi esquecida, para sempre, fazendo parte hoje das paredes da monumental obra de engenharia.

Muitos sobreviveram a sua construção e hoje trabalham nas fazendas ao redor.

Julio era um deles, veio de muito longe, 10 dias de ônibus, pobre e sem família, ali ficou e arrumou um emprego de jardineiro numa das grandes fazendas daquele lugar que Deus esqueceu.

Haviam como ele muitos, uns trabalhavam com o gado, outros com os porcos, outros na agricultura, mas em comum entre eles, era o trabalho escravo, e supremo ódio de seus carrascos.

20 homens de confiança do patrão, gerenciavam o trabalho daquelas pobres almas.

Ao todo eram 50 trabalhadores.

Muitas vezes na calada da noite, quando o silencio fúnebre imperava naquelas paragens, ouviam-se gritos que vinham do lado oposto aos alojamentos, justamente no alojamento dos capangas do fazendeiro.

Esgueirando-se numa noite, Julio foi observar o motivo dos gritos noturnos.

Ao aproximar-se de um galpão pelas frestas, Julio pasmo viu, pelo menos 5 homens em diferentes lugares sendo admoestados de diversas maneiras pelos capangas.

Afastou-se, a visão o enojava, o sangue era abundante, a desumanidade diabólica.

Batia-se na sola dos pés dos homens, dava-se choque, um verdadeiro massacre.

De uma moita a uns 100 metros do local, ficou observando e viu que em altas horas, os homens carregaram 4 corpos na caminhonete e sumiram...

Aquilo lhe gelou a espinha, sabia que amanhã poderia ser ele, rezou ali mesmo.

Com a cabeça encostada no travesseiro Julio chorou por alguns instantes e depois dormiu.

O sol e alguns cantos de galo o acordaram, e logo na porta do alojamento, do alto de seus 1,90 metros, o capataz da fazenda lhe perguntou...

___ O que estava fazendo lá pros lados do alojamento de noite cabra?

___ Nada não senhor, só dando umas voltas.

___ De noite conversamos rapaz...

O dia foi terrível, o pensamento vagava entre sumir na mata e ficar na esperança que o patrão que morava na cidade, viesse e lhe desse guarida, mas ao mesmo tempo pensava: E se o patrão sabe dessas coisas?

Depois do jantar, um garoto de recados veio lhe avisar que queriam falar com ele...

Ele titubeante foi...

Mais uma manhã nascia, Julio que na madrugada fora jogado as portas do alojamento muito machucado, revirou-se, sentiu a resistência dos músculos, passou a mão no rosto e levantou...

Hoje o patrão chegaria...

Contar a ele? E se ele soubesse? Iriam matá-lo...

Logo cedo o opala negro do patrão encostou ao lado da casa.

Ele desceu e veio cumprimentar Julio.

___Como vai camarada?

___Tudo certo senhor.

A vontade era de jogar tudo que tinha preso na garganta, mas calou-se, ao lado do patrão estava seu algoz da noite passada.

O efusivo cumprimento do patrão lhe deu uma pequena esperança, que se esvaiu ao ver o patrão abraçar o capataz e dirigirem-se para a entrada da casa da fazenda.

Um enorme desânimo tomou-lhe conta, até que o mesmo garoto do recado da noite anterior, lhe acordasse da viagem insólita pelas suas interrogações.

___Patrão mandou arrumar os 4 barcos, pra pescar depois do almoço.

___É pra você ir junto com eles Julio.

Um estranho brilho nos olhos de Julio devolveu momentaneamente a parca alegria...

Julio crescera naquele alagado, naquela usina hidrelétrica, afinal foram 9 anos alí, chegara com 14 anos, e com documentos falsos pode ser contratado como se tivesse 18, pouco davam de importância para estes detalhes de idade, o que queriam era gente para trabalhar.

Conhecia cada palmo de tudo ali, horários de funcionamento, enchente, vazante, turbinas, tudo.

Mas porque 4 barcos se sempre iam em 3?

A resposta só foi saber, depois do almoço...

Naquele dia seu patrão fazia aniversário, e os 20 funcionários de confiança iriam pescar com ele.

Calculou Julio que seriam 5 homens em cada barco e num destes barcos ele iria, mas tal a sua surpresa, o patrão escolheu um barco, e disse a Julio...

___Neste barco iremos nós dois...

Num misto de surpresa e desconfiança, Julio colocou o barco na água, acionou o motor, o que foi seguido pelos outros barcos, que devido a preferência do patrão, iam lotados, 2 com 6 e um com 7 pessoas.

Ao dar partida, Julio olhou a névoa da tarde, sobre o alagado e lá ao longe a barragem...

Olhou o relógio, e calculou, daqui lá 1 hora, e seguiu...

Eram 13 horas e dez minutos...

Seguiram entre risos e alguns foguetes, pouca tralha de pesca e muita bebida.

13 horas e 30 minutos, crescia a imagem da barragem em suas frentes, o céu era claro, a primavera, um convite para um passeio daqueles.

Já tinham definido o lugar da pescaria seria nas cercanias do captador da barragem.

Os barcos seguiam atrás do barco do patrão de maneira que aonde ele ia, iam os outros...

Na condução do barco do patrão... Julio.

Exatamente as 14:00 horas aproximaram-se de frente para o captador de água, numa manobra, Julio fez ir a esquerda o barco, sabendo que a pescaria seria a direita...

14 horas e 5 minutos...

Exatamente num ponto no meio do captador, Julio largou a direção do barco e mergulhou...

Pela parte mais pesada, cada barco obedecia a vazante do captador e não o motor do barco...

Daquele grupo somente Julio sabia deste horário 14 horas: Horário de abertura do captador que levava água às turbinas.

Lentamente cada barco foi arrastado pela correnteza para as turbinas...

Embriagados, os homens não notavam o deslocamento e pouco a pouco foram sugados lateralmente para a morte horrenda.

Já perto do mergulho fatal, muitos pularam na água, mas já era tarde.

Gritos desesperados de socorro foram ouvidos na tarde e abafados pela voracidade das águas.

Tudo foi sugado para aquele inferno feito de água e de vingança.

Lá do outro lado onde as águas tornavam-se calmas, o vermelho misturava-se a serragem dos barcos e a carne moída de todos, pois as turbinas funcionaram como um liquidificador gigantesco, a coisa mais semelhante ao inferno que alguém poderia estar.

Na tarde quente a beira do lago, Julio com um sorriso nos lábios, sentiu o definitivo alívio para aquela noite de tortura.

Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 10/04/2012
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T3604576
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