O Demônio Familiar III

Ford estava impaciente. Olhava para os homens e mulheres passando de um lado para o outro com seus jalecos brancos, atendendo toda sorte de pessoas. Uma enfermeira apareceu algumas vezes para perguntar o que ele queria e precisou mostrar o distintivo para deixar claro a razão de estar ali. O que o deixava mais nervoso nessa espera toda era Holtz que ainda não chegara. Ela sabia que ele odiava atrasos. O relógio era o parceiro mais fiel de Ford e um dos poucos que não era atormentado pelas regras da vida do agente, a não ser que atrasasse. Ford odiava relógios atrasados e os trocava assim que sentia que não funcionavam bem.

A detetive chegou com meia hora de atraso. Tinha um olhar estranho quando apareceu, observando os médicos e enfermeiros como se avaliasse suspeitos de um crime. Pareceu não notá-lo até que a chamasse.

- Holtz! – falou com severidade, demonstrando seu franco desagrado com o atraso e sem se importar com o atraso dela. Ford era do tipo que levava os problemas do trabalho para casa, mas não admitia problemas de casa no trabalho.

- Ford. Está aqui há muito tempo? – ela perguntou, virando-se para ele com o mesmo olhar avaliativo que utilizava com os pacientes e médicos.

- Desde o horário que marcamos há meia hora.

- Desculpe.

- Vamos fazer nosso trabalho.

Andaram pelo corredor do hospital. Ford o percorreu sem erro. Já fora ali algumas vezes. A ala psiquiátrica era bem conhecida dele, pois o filho passara seis meses internado para se recuperar do trauma. Quando fechava os olhos, o detetive fingia que as imagens que traumatizaram o garoto não existiam. Se lembrava-se delas, era como registro de trabalho. Elas insistiam em surgir e sua mente severa as combatia, limpando as paredes sujas de sua casa como uma faxineira caprichosa, para não parecer que aquele vermelho todo era o sangue de seu filho mais velho.

Caso 34, vítima 12, Richard Ford, 12 anos, hora provável da morte 6:16 PM de 22 de março de 2004. Era assim que se lembrava. Seu terapeuta dissera que era um meio de evitar a dor. Para ele era o modo de seguir a vida trabalhando com competência ao invés de envolver os sentimentos com o serviço pelo qual era pago. Então, quando sua memória trazia de volta a cena, ele procurava as pistas novamente. Paredes manchadas de sangue, com o vermelho escorrendo como tinta fresca jogada na parede a partir do balde. Pegadas marcadas no sangue circulando a sala. Pedaços de dedos de criança pregados na parede, todos dobrados e indicando o corredor. Cada dedo em um ponto, mostrando que o caminho era até o quarto. No fim estava o quarto do casal, com uma mulher, a faxineira, amarrada à cama com as pernas abertas. Ao lado dela, restos mortais de uma criança estripada, cortada em fatias pequenas. A mulher ainda estava viva e gritando, com as pernas abertas em posição de parto, mostrando a terrível cena de órgãos e pedaços da criança colocados dentro de sua vagina. A barriga estava aberta do mesmo modo, com um braço infantil enfiado na direção do útero. O sangue todo ainda estava fresco. O crime acabara de ocorrer.

Ainda lembrava-se de si mesmo segurando o filho mais novo que gritava em um canto. Olhava o quarto procurando por pistas, antes de ligar para a polícia. Temia que eles estragassem a cena do crime. Demorou a chamar os para-médicos e a mulher quase não foi salva.

Informações sobre o caso 34 antes da entrega para os agentes Gutemberg e Marsh: o assassino confundira a faxineira com o filho do casal. Sua tentativa era levar o filho de volta para o útero para atender ao desejo expresso pelo pai da vítima de não ter filhos. Linha grampeada. Possíveis informações de novos ataques nas gravações.

Voltou ao trabalho um mês depois, quando a esposa ainda chorava dia e noite e o filho sobrevivente passava os dias na ala psiquiátrica. “Não vou enlouquecer como eles”, dizia quando Holtz aconselhava a tirar licença.

Mudança de caso. Caso 43! Esse era o caso 43, não o 34. Um médico os esperava em frente a porta de Helen Fox, a mulher com as agulhas de tricô nos olhos. Ele entregou a ficha dela aos detetives e olhou pela pequena janela de vidro da porta enquanto falava:

- As agulhas quase penetraram no cérebro. Foram colocadas com uma força precisa para se fixarem nos ossos. Destruíram completamente a visão dela.

- Está bem para responder perguntas? – perguntou Ford.

O médico olhou um pouco espantado.

- Ela acabou de ver o marido morrer e ter os olhos furados por agulhas. Se acordar gritando todas as noites e precisar de psicotrópicos via intravenosa para se acalmar é estar bem...

- Ela pode responder nossas perguntas ou está sedada demais? – insistiu Ford, fingindo não ouvir a ironia do médico.

- Ford... – disse Holtz, até agora calada e pensativa. Assumiu uma nova posição. – Eu entro para falar com ela.

- Entraremos juntos.

- É melhor uma mulher para conversar com ela nessa situação. Acho que você será frio demais, Ford. Não é momento para frieza.

Olhou para o médico pedindo ajuda.

- Concordo com a agente Holtz – disse o médico.

Ford desistiu e abriu a porta para ela. Confiava no trabalho de Holtz apesar de a achar desleixada demais. Os dois ficaram olhando pela janela enquanto ela entrava.

- Caso trágico. Vocês têm alguma pista? – perguntou o médico, olhando pela janelinha. Ford tirou uma caderneta de anotações.

- Estamos trabalhando.

- A imprensa diz que o número de vítimas só está aumentando e o FBI não conseguiu nada ainda.

- Estamos trabalhando.

O médico continuou ali por mais uns dez minutos. Quando o assunto não rendeu, foi embora com a desculpa de ver um paciente. Holtz surgiu pouco depois na porta.

- Pode me buscar um café? Minha cabeça está meio zonza e eu acho que isso aqui vai demorar. Ela está meio agitada.

O agente saiu para atender ao pedido da colega. Passou pela parte infantil da psiquiatria. O filho de Helen Fox estava lá. Olhou pela parede de vidro, vendo algumas crianças desenhando, os médicos conversando e um palhaço fazendo brincadeiras e mágicas. A maioria delas parecia se divertir, saindo do estado de letargia que ele via quando participara do caso 34. Não gostou do palhaço. Ele o olhou com um sorriso que deixou o agente irritado. Deixou anotado em uma agenda mental que odiava palhaços.

Reconheceu o filho dos Fox, Harry Fox, brincando com as outras crianças perto do palhaço. Decidiu aproveitar para pegar a avaliação psicológica da criança. Não era normal que uma criança brincasse com um palhaço pouco tempo depois do assassinato do pai. Deveria demorar alguns meses para isso.

Ao voltar para o quarto de Helen Fox, notou os enfermeiros e médicos correndo para lá. Viu Holtz já do lado de fora, observando a comoção. Ela pegou o café e explicou:

- Ficou agitada. Os olhos dela começaram a sangrar. Resolvi chamar os médicos.

- O que conseguiu?

- Nada – ela respondeu, bebendo o café e olhando para dentro do quarto.