EXPRESSO DA MADRUGADA

Quando senti o contato da água fria, foi que percebi a meia claridade vinda da rua pela clarabóia do banheiro, e sem os digitalizados números do celular à minha visão, veio-me a dúvida de que horas eram...? Passei a mão no rosto já seco, e andando em diagonal voltei para o quarto, e vi sobre a cama a hora, a hora em que eu deveria ter acordado estampado na tela do celular, mas como sempre acontecia, a expectativa me fez acordar antes...

O ar de outono faz as madrugadas frias, e entre a neblina, os arcos da velha estação ferroviária pareciam arabescos de um mausoléu antigo e silencioso, e no paralelo dos trilhos que sumiam nos mistérios densos da neblina viria a locomotiva, quebrando o silencio angustiante, ela viria...

Dos contornos negros da velha estação, desci o olhar para o canto da ultima pilastra e arestas de algo bojudo eram salientes, causaram iminente curiosidade ao meu olhar, e crescia a medida que me aproximava, passei uma, duas, três portas, deslizando pela plataforma de embarque, e não fosse a luz amarelada dentro daqueles ambientes, que o translúcido dos vidros me mostrava, a parca luminosidade de fora, teria me ocultado aquela mala...

Desci meu corpo sobre um banco de madeira distante uns 15 metros da silhueta negra e brilhante da mala, e acomodei minha curiosidade negando-me a presença incomoda.

Desviei meu olhar para o infinito quase opaco, adormeci, e breve, desfilou diante de mim uma navalha que cirurgicamente fazia peças de um corpo branco como a neblina, acordei, o suor encharcou minha face, e o coração disparou quando eu a vi, a mala, entre duas figuras com longos sobre tudo num canto escuro da estação, como sombras, sombras do além...

Pronto, eis a revelação do mistério, ela, a mala, tinha dono, nada mais poderia, naquela noite perturbar a minha paciente espera pelo expresso da madrugada.

E foram desaparecendo as duas silhuetas e a mala, como um camelo com duas corcovas, e novamente adormeci... Um vento gelado fustigou meu rosto, e diante de duas lâminas visualizei o vermelho de meu sangue formar uma tela tenebrosa e fatídica no ar... Senti o liquido a escorrer pelo meu peito, o ar esvair-se, e acima de mim mesmo, me vi em partes, cirurgicamente separadas... Acordei... Um sufoco envolveu-me, faltou-me o soluço do alívio, enxuguei novamente o rosto, diante da luz da enorme locomotiva que estacionava em minha frente...

Uma porta lateral abriu e um senhor palidamente sereno, me fez um sinal para que adentrasse ao vagão logo atrás da máquina.

Sentei-me no penúltimo banco, e lá no segundo banco a silhueta das duas sombras que havia visto na estação...

O lento deslocar sobre os trilhos exigiu-me o soslaio urgente do olhar, e lá no mesmo lugar que havia lhe conhecido, a mala, com o mesmo brilho, com a mesma sinistra presença...

Uma luz intensa preencheu todo o vagão, já não distinguia paredes, desfez-se a neblina, me senti acima da longa composição de vagões que serpenteava sob a neblina, um silencio sepulcral, distendeu o meu olhar para onde ela estava à mala...

A mala, que no crepúsculo da madrugada uma mão curiosa abria, espalhando-me miseravelmente pelo chão gélido da plataforma... Cirurgicamente, misteriosamente, inexplicavelmente, era eu, fatiado e esquecido num canto daquela sinistra estação...

Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 30/05/2012
Código do texto: T3696796
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