Amálgama Fantasma - Cap 11

XI

Eu não sabia como reagir a tudo aquilo, não era a primeira vez que me tornava um alto-falantes de entidades mas isso não impedia a sensação de violação me preencher até a borda. Adla fizera contato, deixando bem claro que Luciano ainda era um inimigo que precisava ser vencido e, quando entidades acreditam que existem inimigos para serem vencidos, a coisa nunca é fácil de resolver.

Minha cabeça deu uma pontada e eu sentia que precisava tomar uma atitude inteligente, então inteligentemente fui tomar um banho.

Havia uma grande banheira em pedra que eu enchi até transbordar antes de me atirar em seu interior e permitir as ondas de calor penetrarem meu corpo relaxando-me. Estava naquela casa a menos de vinte e quatro horas e presenciara mais de uma vez manifestações de outro mundo. Não evitei sentir uma certa nostalgia ao relembrar acontecimentos da minha infância, por quantas vezes não aconteceram coisas que não deveriam acontecer ao meu redor? E por quantas vezes eu não chorei por culpa delas?

Mas por mais nostálgica que estivesse nada me isentava da responsabilidade sobre a noite anterior. Se havia uma entidade ali também era meu dever encontrar uma forma de fazê-la desaparecer. Enzo era o parapsicoinvestigador mas eu era sua fiel assistente e precisava fazer algo um pouco mais inteligente do que deixar minha pele enrugar naquela banheira.

Sentindo a responsabilidade me chamar deixei as dúvidas irem pelo ralo enquanto me enxugava e colocava um jeans e uma camiseta tão sem graças quanto os que usara dia anterior. Dei uma conferida no espelho apenas para ajeitar meu rabo de cavalo e sai do quarto.

Mesmo com o dia já tendo raiado o corredor estava estranhamente escuro, culpa das janelas que miravam o outro lado do céu. O quarto de Enzo não era muito longe e com algumas passadas no mais absoluto silêncio eu bati três vezes na grande porta de madeira, liberando três ondas sônicas pelo corredor vazio.

- Enzo? – chamei, minha voz ecoando pelas paredes.

Então, por alguma razão, os pêlos da minha nuca se eriçaram. Eu estava sozinha num corredor longo e idilicamente escuro, envolta por um cobertor de mudez tão espesso que quase podia sentir sua textura, numa casa onde a poucas horas atrás eu sofrera uma incorporação contra a minha vontade. Não era o melhor clima do mundo por isso eu não fiquei muito inclinada a aguardar a boa vontade do Enzo em abrir a porta, eu conhecia a figura bem o bastante para saber que se ele estivesse dormindo, não acordaria a menos que eu fizesse um escândalo que pudesse ser ouvido de outro planeta.

Por isso fui pró-ativa e escancarei a porta com bem mais energia do que o necessário.

- Seu folgado, você não ouviu que eu estava...

Minha frustração se tornou ainda maior quando vi que, por algum milagre, Enzo já havia acordado.

Suspirei deixando meus ombros caírem, o que quer que tivesse feito Enzo sair da cama antes do meio dia não era coisa boa.

A cama estava um relaxo e um pingar contínuo acusavam que Enzo havia deixado a torneira da pia semi-aberta de forma que algumas dezenas de litros já deveriam ter sido desperdiçadas. Eu tentei não ligar para aquilo e aproveitei para me aproximar da central que tinha todas as câmeras ligadas e os sensores em pleno funcionamento. Imagens iam e vinham pelos monitores e todas elas mostravam uma casa vazia. Sobre a escrivaninha um grande livro-ata onde Enzo rabiscara seu garrancho para uma dezena de eventos em uma dezena de momentos diferentes. A última anotação era justamente sobre a incorporação da noite passada, o evento estava grifado com caneta vermelha e tinha um asterisco gritante na frente. Tentei procurar pela folha a explicação daquela marcação mas não achei nada, já estava para procurar nas folhas seguintes quando um barulho próximo fez com que meus ouvidos se apurassem.

Era um arrastar baixo que parecia vir de todos os lugares. Engolindo seco estiquei a mão sobre a mesa pegando o objeto mais próximo que tinha para me defender...

Não que eu achasse que uma caneta de quatro cores seria a melhor arma contra uma entidade mas eu não tinha muitas opções.

Pé ante pé avancei, certa de que o barulho de arrastar vinha de algum lugar do corredor. É claro que haviam muitas pessoas naquela casa que poderiam estar arrastando os pés pelo corredor mas eu já estava acostumada a nunca esperar coisa boa de um fenômeno como aquele, por isso continuei com a respiração saindo na forma de um chiado conforme avançava lentamente até chegar a soleira da porta. Só então arrisquei esquecer um pouco o barulho externo e me concentrar para expandir meu mundo de forma a melhor lutar contra o ser que se aproximava.

Aquele foi meu erro.

Eu mal havia acabado de fechar os olhos quando senti um deslocamento de ar a minha frente. O susto foi grande o suficiente para interromper minha concentração e me fazer soltar um grito agudo. Indefesa, cai para trás tendo tempo apenas de esticar a caneta numa estocada mortal.

- Ai!

Fiz uma interjeição parecida quando meu traseiro tocou o chão duro e só então estranhei o fato de uma entidade resmungar daquele jeito.

Abri os olhos e torci a boca.

- Você manchou o meu pijama – Giovana resmungou com uma cara de poucos amigos e apontou seu pijama de flanelas que ganhara um risco azul entre as muitas imagens de luas e estrelas.

Eu deveria ter ficado com muita raiva, mas por algum motivo a expressão de Giovana suprimiu qualquer sentimento que pudesse ter nascido daquela trombada.

Ficamos a encarar uma a outra por um tempo impossível de ser computado, quase como se fôssemos boxeadoras esperando por uma brecha na guarda adversária.

- Então, você vai ficar aí até quando? – Giovana atacou com um jab.

- Eu já estava levantando – esquivei e preparei um cruzado – e o que você estava fazendo no corredor.

- Pelo que me lembro posso andar livremente por qualquer lugar – meu cruzado se perdeu numa esquiva e um gancho saiu furtivo – então porque você não levanta e continuamos a conversa de pé?

O golpe acertou em cheio e eu fui a nocaute, com isso levantei do chão. Giovana ficou me observando todo o tempo como se eu fosse um bebê e ela uma mãe austera.

- Você está melhor? De ontem?

Aquelas palavras deram mais força a minha impressão.

Não esperava uma pergunta a respeito da minha integridade vindo daquela mulher por isso mergulhamos num constrangedor silêncio enquanto eu pensava numa resposta.

- É.

Foi uma resposta meio idiota mas foi o melhor que consegui.

- Só não pense que você incorporou aquele espírito porque quis entendeu? – Giovana disse depois de uma bufada que tenho certeza fez as cortinas do quarto balançarem – Fui eu que não me importei que você a incorporasse. Foi até melhor assim, de outro jeito não teríamos tido as respostas que tivemos. Com a incompetência de vocês garanto que ainda estaríamos tentando descobrir o nome daquela mulher.

Eu baixei a cabeça suspirando longamente. É claro que eu não incorporei a entidade por que quis. Nem de longe eu queria ter feito aquilo.

- Mas foi uma noite produtiva sem dúvidas. – Giovana continuou. – Sabemos que Adla continua na casa e deseja a queda do espírito de Luciano. Eu desejaria o mesmo se fosse aquela mulher. Só resta a dúvida a respeito do bebê, tenho certeza que ele ainda permanece aqui e deve estar sofrendo mais do que todos. Pobre criança... Foi uma pena não termos tido tempo para fazer a pergunta diretamente a Adla. Se eu tivesse feito a incorporação com certeza o espírito se manteria entre nós por mais tempo mas... bem... se isso tivesse acontecido não teríamos tido nenhuma outra resposta então acho que, no fundo, tomei a decisão certa.

Parte de mim era grande e estava irritada, com vontade de enfiar uma meia na boca daquela mulher para que ela se calasse, já a outra metade era pequena e estava assustada... Eu odiava incorporações mais do que qualquer coisa. Não era apenas ficar em contato com a entidade durante um certo tempo, mas sim vivenciar as experiências dela, as dores da vida de alguém que quase sempre sofreu mais do que deveria ter sofrido. Mesmo que as lembranças fossem apagadas da minha consciência as marcas feitas na minha alma eram compreensíveis em um nível profundo o bastante para que eu sentisse dor.

E era justamente o que eu sentia enquanto Giovana voltava a balbuciar alguma coisa que eu tinha certeza não ter a menor importância...

Era o sofrimento de uma vida de sede e fome em terrenos africanos, a angústia e o medo de uma captura por gente desconhecida, dor e desespero num transporte desumano, horror ao ser entregue nas mãos de um psicopata, um misto de amor e ódio por uma pequena vida que estava sendo gerada e, por fim, o louco acorde final da melodia da morte.

Tudo viera ao mesmo tempo. Ter em segundos o espírito marcado por cicatrizes obtidas durante a vida inteira de outra pessoa, era suficiente para te enlouquecer.

- Você por acaso está me ouvindo?

Voltei a mim com uma série nada modesta de piscar de olhos enquanto encarava Giovana que parecia estar se segurando para não pular em meu pescoço.

- Como...

A mulher bufou e mais uma vez poderia apostar que as cortinas do quarto se mexeram.

- Ora mas só podia ser assistente daquele... inapto! – Giovana ralhou com uma voz áspera como um carpete – Você deve estar se achando muito importante não é garotinha? Pois saiba que você não é! E eu vou mostrar isso para todo mundo porque hoje a noite farei outro ritual de incorporação e vou resolver esse problema de uma vez por todas!

Eu havia recuado o suficiente para minhas costas formarem uma parábola. Giovana pareceu reparar aquilo e com um limpar de garganta recobrou a compostura para que eu pudesse fazer o mesmo.

- Como eu disse antes e você não me ouviu, seu querido chefe está na estufa e me pediu para avisá-la caso você já estivesse acordada quando eu voltasse. Agora se me dá licença.

Giovana virou rápido o bastante para evitar um tiro e após alguns passos rebolantes ela atingiu a porta de seu quarto.

- Só pare de ficar se arrastando por aí – ela ralhou comigo e eu senti sua voz ligeiramente assustada – Se eu te confundir com outra coisa de novo você vai se ver comigo.

E sem mais entrou batendo a porta e me deixando atônita no corredor.

- Mas fui eu que sai para ver o arrastar... – e antes que meus pensamentos em voz alta continuassem cobri minha boca com as mãos para uma última frase. – Eeeeenzooooo...

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Obrigado a todos que acompanham, são o incentivo perfeito! Continuo quarta, dia 22/08

Gantz
Enviado por Gantz em 20/08/2012
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