A pele em que habito

Tudo começou com uma coceirinha, a pele avermelhada formigando a me atormentar. Parecia que a casca que me cobria, desejava me abandonar. Comecei a retirar as lascas, muito finas, que se desprendiam úmidas de minha carne, os filetes de sangue escorriam por entre as feridas.

As camadas de pele desatavam cada vez mais, livrando-me daquele insosso invólucro. Retirei as luvas de pele que recobriam minhas mãos, deixando tendões, músculos e ossos lustrosos a mostra. As calças saíram com um pouco de dificuldade e retirei as massas gordurosas glúteas com as mãos. Depois braços, pés e enfim a camisa de pele que recobria minhas costelas, onde estavam as glândulas mamárias mirradas, que sempre me causaram desgosto.

Mas ainda não era o bastante, algo a mais me incomodava, mesmo ao me despir de minha pele, em meu âmago alguma coisa jazia aprisionada.

Retirei os músculos, fibras lustrosas tão cansadas e enrijecidas, desprendidas de tendões e ossos, estirados, rompidos, um a um. Camadas ralas de mim, deixadas no chão do banheiro em frente ao espelho. Sentia o peso a em abandonar, leve e macio. Mas o que restou foram os órgãos em meu interior, os pulmões abaixo das costelas inspiravam e aspiravam o ar, retirei-o calmamente, assim como o baço, o fígado, o intestino e todos os seus menores aparatos. Logo depois os rins ( tão bonitinhos ), os ovários e o útero, no meu caso, completamente inúteis pois jamais foram usados em sua completude. Depois de esvaziar-me, observei de relance o pequeno coração, que ainda batia.

Com os ossos brancos desnudados, vislumbrei o que restara de matéria e ainda sobrava-me o rosto intacto que distorcia um sorriso. Aquele rosto, a maldita face, estampada em fotos, retratos e quadros. Os mesmos olhos desiguais afundados na pele macilenta, o nariz grande demais para um rosto triangular. Com uma tesoura recortei os lábios, deixando-os com um sorriso permanente de dentes amarelos. Logo o nariz, diminuindo-o até transforma-lo em dois buracos finos. E por fim os olhos, que se moviam lentos em suas órbitas. Retirei as pálpebras oleosas, ampliando o círculo em minha face e com uma colher os extirpei, duas bolotas pálidas com pequeninas ramificações avermelhadas, as pupilas dilataram e a íris perdeu a sua cor.

A cegueira da carne não podia me tocar, pois ainda enxergava com os olhos da alma. E em toda aquela carcaça desembalada, exposta e murcha, pude ver a aura azulada a pulsar, abaixo das costelas, como uma pequena estrela cujo brilho tão belo bruxuleava em meu interior.

Despida de mim, eu vi, pela primeira vez, aquilo de tão belo e verdadeiro que habitava em mim, minha alma...

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 21/08/2012
Código do texto: T3842501
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