Amálgama Fantasma - Capítulos Finais

XXV

Me atirei pelo espaço como uma acrobata num número de circo, não estava preocupada com o tamanho da queda mas sim em me livrar daqueles flashes infernais que comprometiam minha percepção e estavam começando a gerar uma dor incômoda atrás dos olhos. Foi então que percebi um detalhe incrivelmente assustador...

Estava em um corredor comprido com tijolos vermelhos cobrindo as paredes, o chão e o teto. O cheiro ali era de bolor e muitas partículas passeavam pela atmosfera confirmando que embora aquele lugar não fosse muito frequentado ultimamente eu não havia sido a primeira visitante da noite.

Mas o bizarro era que eu conseguia ver tudo com riqueza de detalhes... As ranhuras nos tijolos, sua cor desbotada, as partículas que dançavam como em um balé macabro. E só conseguia ver por que as paredes não se mostraram um obstáculo para a abençoada luz que padre Sávio emitia e eu aprendera a odiar. Sua claridade atravessava a matéria como se ela não existisse e mesmo de olhos fechados ela entrava em meu cérebro, martelando meus neurônios como uma música irritante.

A vontade de encontrar Enzo se tornou mais forte. Se o encontrasse com certeza encontraria o corpo da entidade que combatia padre Sávio e finalmente poderia dar um fim nela, o que significava o fim daquela sequência de luzes que começavam a me deixar como uma drogada.

Caminhei por um caminho esquisito de subidas, descidas, curvas e escadas e por diversas vezes me peguei olhando para trás para ter certeza de que não havia um caminho alternativo que por ventura eu não tivesse visto. No começo imaginei que seria algo normal, mas a coisa começou a ficar realmente estranha quando notei o inusitado fato de que eu mais subia do que descia!

Ou o construtor responsável por aquele espaço havia brigado com as leis da física ou eu estava em um grande problema.

Ciente de que a realidade distorcida deveria ser um artifício usado para afetar principalmente pessoas como eu, analisei inúmeras possibilidades e acabei tomando a atitude mais sensata.

- Eeeeenzooooo... Você está por aí... Eu não consigo sair...

Me encolhi num canto e só não posso dizer que era um canto escuro porque aquela maldita luz continuava chegando até mim, e por mais que ela perfurasse minha retina e me enlouquecesse ao menos me permitia ver os arredores para me dar a confirmação visual de que eu estava sozinha naquele espaço.

Mas não por muito tempo.

Os passos que chegavam aos meus ouvidos eram pesados, como se a pessoa tivesse tido uma briga com o planeta e decidido achatá-lo a cada passada. Eu sabia que atitudes como aquela não eram típicas do Enzo, o parapsicoinvestigador preferia o sigilo e o silêncio e jamais se permitiria a uma chegada tão escandalosa em um ambiente como aquele, nem que fosse para atender um pedido de socorro meu.

Assumi uma posição agachada e apurei os ouvidos. O perigo pulsava em mim como um segundo coração fazendo um suadouro brotar e o ar já rançoso se tornar um pouco mais difícil de ser respirado. O eco causado pelo lugar confundia meus sentidos a ponto de eu não saber se o perigo viria da esquerda ou da direita. Desorientada, eu já me conformava em ter de trazer a outra Talita de volta. Não podia ser possuída naquele espaço. Até darem por minha falta seria tarde demais.

Então uma sombra se revelou a minha esquerda, me alertando por fim sobre a direção que o perigo viria. Estendi uma das mãos à frente e comecei a expandir, o que quer que tivesse vindo me pegar encontraria uma Talita muito bem preparada.

Pelo menos era o que eu achava, até uma mão encostar em meu ombro me fazendo dar um grito que teria acordado metade dos mortos da Terra.

- Pelo amor de Deus garota? O que deu em você?!

Me virei como um peão e por um bom tempo tentei entender como Giovana viera parar atrás de mim.

- O que foi? O gato comeu sua língua?

Mesmo ela fazendo graça eu não me importei, numa rápida olhada para trás percebi que a sombra em questão estava parada, talvez seu dono também tivesse se assustado com meu grito e parado. Flexionei o tronco voltando a estender a mão, apenas tomando o cuidado de chamar Giovana e apontar o intruso não muito longe dali.

A médium passou por mim afiando o olhar na direção que eu apontava. Por um tempo relativamente longo ela ficou encarando a sombra como se não entendesse o que estava acontecendo; então, numa rápida olhada para trás, seus olhos voltaram ao normal e ela levou a mão em direção a testa, bufando.

- Não me diga que você caiu num truque barato desses...

Só então eu notei o pequeno báculo em sua mão. Um objeto com cerca de um metro e meio e com a cabeça de uma águia enfeitando uma de suas pontas. A médium olhou para mim com aquele olhar de indignação e antes que eu pudesse xingá-la por não estar dando a devida atenção a um inimigo tão próximo ela fez...

Foi um movimento curto e rápido com o báculo, mas um movimento que pareceu levar uma dimensão inteira com ele. Isso foi o que eu achei a princípio, mas depois percebi que o movimento levara, de fato, uma dimensão com ele, pois meus arredores começaram a mudar...

A sombra do lado esquerdo desapareceu bem como ambas as curvas que via através da alternância entre luz e trevas. Naquele estranho espaço percebi estar agora em um corredor reto, levemente inclinado para baixo, não muito distante da onde entrara. Não demorei a notar que de algum modo Giovana havia feito o labirinto dimensional desaparecer e me colocado no rastro de Enzo novamente.

- Vamos logo atrás do seu chefe antes que esse padre me deixe maluca.

Assenti com meia atenção já que estava muito ocupada ficando brava comigo mesma por ter me permitido ser salva por aquela mulher.

O cheiro de mofo continuava, bem como as partículas flutuando pela atmosfera, porém o novo trajeto consistia de uma descida suave com uma leve curva no fim do caminho. Mesmo de ouvidos apurados nada se podia ouvir, além dos passos curtos e do respirar apressado que vinha de meus pulmões. Giovana se mostrava mais tranquila e caminhava com o estranho báculo a frente do corpo. O objeto era esquisito, mas mais esquisito era a estranha sensação de calma que ele passava.

Depois de ter vencido uma possessão, dormido a metade do tempo necessário e combatido no mesmo plano de uma entidade, meu corpo não estava nas melhores condições e comecei a atrasar o avanço de Giovana. Tinha certeza que a médium gostaria de ralhar comigo mas ela teria de engolir a própria cólera, afinal foi o meu esforço que permitiu a ela estar ali. Para minha surpresa obriguei a mulher a engolir também o orgulho porque ela me ofereceu uma mão para que eu me apoiasse.

Mesmo o gesto sendo de grande ajuda eu não estava pronta para engolir o meu orgulho, portanto recusei.

- Faça como quiser! – A mulher disse torcendo o nariz e acelerando o passo apenas para dificultar minha movimentação.

Demorou mais do que devia, mas finalmente chegamos ao fim do corredor, Giovana se posicionou próxima a parede e levou um dedo à boca pedindo silêncio. Havia alguma coisa ali dentro e nós duas sabíamos disso. Eu fiquei a seu lado quando o dedo em riste que pedia por silêncio, começou uma contagem indo para o dois e depois para o três.

Então nós entramos.

XXVI

No momento em que os três dedos da médium se ergueram ela virou de supetão em direção a nova passagem, o báculo firme em suas mãos. Eu não deixaria ela levar todos os créditos no caso de um resgate ter de ser feito e mesmo em péssimas condições me forcei a avançar parando a seu lado.

O que vi me deixou estupefata.

- Vocês chegaram na hora certa, podem me ajudar?

Entre os muitos clarões que ainda piscavam eu vi Enzo em pé no meio de uma sala circular com teto alto. Em sua mão um pequeno isqueiro que lançava uma luz pálida pelo espaço, deixando-o praticamente nas sombras até que algum flash vindo do combate de padre Sávio o iluminasse. As paredes eram em pedra bruta e num dos cantos musgo havia crescido por uma rachadura. Bancos haviam sido adicionados dos dois lados como extensões das paredes escuras. O teto era abobado mas isso não impedia grossas correntes de estarem penduradas com ganchos em suas pontas, como em um frigorífico medieval. Aos fundos, sobre um elevado, havia um sarcófago de vidro em exposição embaixo do que com um arrepio vi ser um pentagrama invertido.

Era para lá que Enzo caminhava com ar preocupado.

- Eu já tentei bater, mas o vidro é estranhamente resistente. Acredito que uma de vocês possa dar um jeito.

Nos aproximamos com certo cuidado. Uma das correntes era desproporcionalmente longa permitindo-me ter uma ótima visão de seus elos conforme passava. Vi algo escuro e incrustrado por entre o ferrugem e minha imaginação criou o tipo de cenário que fez um arrepio varrer minha espinha.

Minha impressão já não havia sido das melhores mas após me aproximar do sarcófago percebi o último e mais assustador dos detalhes...

Ainda lembrava do quadro de Luciano na sala de estar. Um homem alto e esbelto. Os cabelos longos, sedosos e loiros na altura dos ombros largos. O corpo delineado por músculos proeminentes dando forma as suas roupas. Cada detalhe me saltava a mente e cada salto fazia os pêlos da minha nuca se eriçarem ainda mais... O corpo sobre o sarcófago era exatamente como a representação do quadro, como se Luciano tivesse entrado num sono de beleza pelo último século que o impedira de envelhecer.

- Como é possível? – Perguntei desconcertada.

- Há vários feitiços que permitem a conservação do corpo para a posterioridade. Sem dúvidas estamos diante de um deles. – Giovana falou se aproximando e tocando o vidro com um dedo.

- Essa superfície também deve ter sofrido alguma ação. Observem.

Enzo pegou uma pedra pequena e posicionou-a na mão como um Neanderthal. Ele então golpeou o vidro diversas vezes, fazendo estalos altos e agudos saltarem a atmosfera. Numa situação normal o objeto teria se estraçalhado, contudo naquela situação isso não aconteceu e Enzo pôde passar a mão pela superfície do sarcófago que continuava reluzente.

- Sem dúvidas você não vai ser capaz de quebrá-lo. Se afaste. – A médium ordenou.

- Seja lá o que você for fazer, faça rápido. – Acabei dizendo e massageando as têmporas. – Esses flashes vão me deixar louca.

- Flashes? – Enzo perguntou olhando para mim como se eu fosse uma alienígena. – Do que está falando? Mal dá para ver nessa escuridão.

Claro, eu deveria imaginar que o efeito dos ataques do padre só poderiam ser vistos por alguém que tivesse um mínimo de capacidade, e Enzo estava bem longe disso.

Giovana olhou curiosa para o corpo que ali repousava.

- Esqueça ela e vamos ao que interessa. Pelo jeito força bruta não vai resolver o problema aqui.

A médium voltou a esfregar o vidro, dessa vez com mais força, e talvez tenha sido impressão minha mas podia jurar que vi o vidro ondular como se fosse feito de gelatina.

Arrisquei me aproximar afiando o olhar na direção da superfície apenas para confirmar que ela continuava tão rígida quanto deveria estar. Ergui um dedo tocando o material e embora meus olhos não tivessem captado nenhuma mudança algo dentro de mim foi abalado. Estávamos lidando com uma coisa muito poderosa.

- Você tem razão Enzo. – Giovana acabou dizendo mais séria do que eu jamais a vira. – Jamais conseguiria quebrar esse vidro sem ajuda.

- Vocês conseguem?

- Não vai ser fácil – Respondi tentando buscar na minha memória algum outro momento em que havia encontrado um objeto que me passasse uma impressão tão ruim. – A coisa aqui foi muito bem feita e vai demorar um tempinho para quebrar.

- Ora por favor...

Eu havia encarado Giovana tentando compreender aquela reação... A médium parecia estar se divertindo apesar de tudo e eu não conseguia entender o motivo.

- Se afastem. Os efeitos colaterais costumam ser bem explosivos.

Enzo e eu trocamos olhares mas acabamos obedecendo.

- Não, um pouco mais para trás.

Recuamos mais um pouco e depois ainda mais, só parando quando estávamos na entrada da câmara.

A médium segurou o báculo com ambas as mãos e seu olhar era tão duro quando o diamante. Seus lábios se mexeram mas foi impossível para nós ouvirmos o que ela dizia já que um silêncio tão esmagador havia nos envolvido que nem nossa própria respiração era identificada ali. Giovana ergueu o báculo na altura dos olhos fitando o objeto como se ele fosse a coisa mais interessante já criada no universo. Mais palavras saíram de sua boca e pela velocidade com que seus lábios se moviam eu tinha certeza de que precisaria de uma câmera lenta para entender o que era dito. Então de súbito ela silenciou, e quando o fez o mundo de silêncio se tornou denso como chumbo me impedindo de respirar. Quando achei que ia sufocar a médium baixou seu báculo em um golpe seco, que atingiu a superfície do sarcófago em cheio.

O pássaro que formava a ponta do báculo tinha um bico proeminente e foi justamente ele que atingiu a superfície. O bico penetrou por quase cinco centímetros no vidro que ondulou como gelatina, dissipando a força do golpe. Eu quase achei que não havia dado certo até a onda continuar se espalhando e envolver todo o objeto, tornando o corpo de Luciano tão indistinto a ponto de ser impossível identificá-lo. A onda continuou se propagando e fazendo o vidro chegar a um ponto de distorção ridículo, momento no qual ele finalmente se rendeu ao poder da médium e se desintegrou em minúsculas partículas.

Os cacos voaram pela atmosfera refletindo como um espelho os flashes vindos de padre Sávio, contudo as minúsculas partículas se tornaram micrométricas após um segundo e nanométricas pouco depois, momento no qual era impossível saber onde estavam. Então, como num passe de mágica, elas se dissolveram na atmosfera, deixando o corpo de Luciano desprotegido pela primeira vez em muito tempo.

Eu mal havia absorvido aquela destruição quando Enzo partiu como uma bala, vencendo a distância que o separava do corpo de Luciano como uma zebra fugindo de um leão. Mesmo Giovana tomou um susto ao ver Enzo tão perto dela e nós duas nos assustamos ao vermos Enzo erguer a Lâmina do Regresso e num golpe decisivo fincá-la no coração daquele ser.

Os resultados foram imediatos. Os flashes infernais pararam, causando-me um alívio que só não foi maior porque aquela presença começou a me envolver como um saco plástico...

A Lâmina do Regresso podia regredir o estado de qualquer coisa, quando em contato com um corpo morto podia trazer seu espírito de volta mesmo que esse espírito tivesse se tornado uma entidade. Ora, se você tem um corpo humano e um espírito você tem uma pessoa – ou pelo menos alguma coisa próxima – por isso, no caso de Luciano, nós formamos uma pessoa muito próxima a pessoa original que Luciano fora.

E assim entendemos todas as lendas que cercavam aquele homem. Sua presença era intimidadora, algo tão intenso que mesmo com Enzo segurando a Lâmina do Regresso para controlá-lo, eu me sentia insegura quanto ao fato daquele ser nos atacar.

- Como vai? Luciano, certo? Já faz algum tempo que esperava conhecê-lo.

A claridade agora se resumia a pequena chama vinda do isqueiro de Enzo, e pela alaranjada luz que dele saia vimos Luciano abrir olhos escuros e mortos, encarando Enzo como se ele fosse um minúsculo átomo pronto para ser fissionado.

- Eu sei que essa não é a melhor forma mas temo que seja a única segura para nós. – Enzo continuou e eu tinha que dar o braço a torcer por sua arrogância, se fosse eu que estivesse recebendo o olhar de Luciano já estaria jogada no chão aos prantos.

- Ele não parece tão perigoso agora, não é?

Giovana também havia se aproximado e apesar de encarar desdenhosa a figura deitada, eu conseguia sentir que parte de seu íntimo estava tão assustado quanto o meu.

- Você tem dado muita dor de cabeça para muita gente há um bom tempo. Está na hora de acabarmos com isso, certo Luciano?

O corpo recém desperto tremeu.

- Esqueça, é impossível para você se mover. – Enzo explicou.

Mas a figura continuou tremendo e a tensão de seus músculos era tão grande que não me surpreenderia se eles se rompessem a qualquer momento.

- Nada... É... Impossível...

O fato de Luciano ter falado fez Enzo enrugar ainda mais a testa e eu sabia que alguma coisa estava errada.

- Enzo, cuidado!

Por pouco não foi tarde demais.

As correntes no teto se moveram como serpentes, todas indo na direção de Enzo, a maioria delas eram curtas e não tinham poder de alcançá-lo mas outras eram suficientemente longas. Felizmente, meu aviso foi dado a tempo e Enzo saltou evitando um gancho que passou a centímetros de seu rosto.

Entretanto não houve alegria, Enzo havia escapado mas para isso precisara soltar a Lâmina do Regresso e, como a entidade que um dia foi Luciano não estava presa em um corpo decomposto, ela levantou pronta para o combate.

Luciano saltou e cairia golpeando Enzo com um pisão que causaria sérios problemas.

- Não tão rápido! – Giovana gritou apontando o báculo para Luciano e gritando – Angin!

Eu não sei como, mas da cabeça do pequeno pássaro uma runa antiga se materializou, feito de pura energia ela piscou iluminando a sala e criando uma corrente de ar tão poderosa que arremessandou Luciano para o outro extremo do cômodo.

- Isso acaba aqui pestinha. – A médium completou – Api!

Uma nova runa saiu e seu brilho se tornou alaranjado como o pôr do Sol. Uma labareda de fogo então irrompeu, saindo da superfície da runa e atingindo Luciano como um lança-chamas.

- Você não tem como fugir! – Giovana gritou já que o barulho do fogo era tão intenso que nada mais podia ser ouvido – Acabou!

Objetos como o dissipador e a Lâmina do Regresso, que podiam causar interação entre vários planos, eram raríssmos, por isso eu nunca podia imaginar que aquela médium tagarela tivesse algo do tipo, e tão incrível quanto os artefatos que usávamos. Tudo bem que o efeito das runas provavelmente só seria visível por olhos treinados, mas ei, o vento e o fogo eram reais!

Infelizmente mesmo todo esse poder pareceu insuficiente.

As correntes voltaram a se mexer, como serpentes instigadas elas se retorceram e dobraram sobre si mesmas, seus ganchos afiados passando a mirar a médium.

- Giovana!

Eu me movi mas era tarde, as correntes partiram arrancando um silvo do ar conforme avançavam. Giovana percebeu o perigo tarde demais e quando virou seus olhos estavam arregalados.

- Chega!

Um jato de luz ofuscante brilhou próximo cegando-me. O mundo ficou escuro por um tempo, mas nem isso era suficiente para apaziguar minha preocupação com a médium. Quando voltei a ver estava estupefata.

As correntes haviam parado no meio do caminho, suspensas no ar a centímetros da médium. Elas brilhavam com um tom cálido, o mesmo que havia ao meu lado, e quando virei não pude conter o alívio.

- Padre Sávio!

O homem tinha a expressão austera mas relaxou-a por um instante para dar uma piscadela em minha direção.

- Vou cuidar da sua retaguarda, que tal? – Ele disse para a médium.

- Você deveria cuidar da sua saúde. – Foi a resposta mal-humorada.

Embora o ataque de Giovana tivesse sido interrompido, o corpo de Luciano ainda queimava em chamas que haviam tornado sua pele escura. A princípio nenhum de nós deu atenção a ele por causa disso o que se mostrou um grande erro...

Num salto Luciano avançou, um corpo parcialmente carbonizado que ainda continha algumas chamas dançando por sua superfície. Giovana havia sido novamente pega desprevenida e dessa vez padre Sávio estava ocupado, contendo as correntes que voltariam a atacar se ele relaxasse.

Agora era comigo.

Expandi chamando a outra Talita, minha consciência era dupla e ambas sabíamos o que precisava ser feito. Estendendo a mão agarramos a realidade da entidade que formava Luciano, e com um movimento brusco fizemos seu corpo ser arremessado para o pentagrama. Ele atingiu a parede com força suficiente para desprender pequenas partículas do teto, escorregando de volta ao solo e caindo estatelado.

- Chega dessa palhaçada! – Giovana gritou num acesso de fúria e avançou, o báculo em sua mão apontando diretamente para o homem que por duas vezes quase a matara – Tanah!

O impossível aconteceu quando eu percebi que o chão estava se movendo e criando grilhões que prendiam Luciano ao mesmo.

- Daqui você não sai. – A médium falou através da runa que brilhava marrom sobre o báculo.

Porém Luciano apenas sorriu e começou a levantar. A terra que o segurava era compacta como rocha e mesmo assim ele a despedaçava com sua força descomunal. Giovana arregalou os olhos quando a surpresa se mostrou demais, mas logo ela mordeu os dentes em um sorriso raivoso e o brilho da runa sobre o báculo se intensificou.

Contudo, mesmo todo o poder da médium não parecia suficiente. Entretando Luciano precisava de todas as forças para se soltar e isso significava deixar de dominar as correntes que padre Sávio segurava. O Patrístico percebeu o desaparecimento do poder que continha, e com uma preocupação a menos apontou sua luva abençoada para a figura de Luciano, fazendo um brilho branco envolvê-lo conforme seu poder passava a agir sobre ele também.

Nós também fizemos nossa parte e com um movimento de pula-cela fizemos o peso de várias realidades caírem sobre o corpo de Luciano.

- Enzo! É sua chance!

Enzo já estava ali como se tivesse sido invocado, o fim de Luciano se daria por suas mãos.

Você precisa entender que todos nossos ataques – à excessão de Giovana – agiam em um plano no qual Enzo não conseguia chegar. Por isso, mesmo com o peso que eu e padre Sávio fazíamos sobre Luciano, Enzo conseguiu se aproximar o suficiente com o isqueiro para uma última olhada.

E quase tudo foi para os ares com aquele gesto.

Mesmo preso por nós quatro, Luciano conseguiu buscar um último lampejo de força para livrar um de seus braços. Com pedras voando pelos ares, ele se moveu para golpear Enzo com uma força que caso não o matasse, chegaria bem perto...

Só que para nossa surpresa ele foi impedido, e justamente por uma das tantas correntes que usara para nos atacar.

Nós sentimos o responsável por aquele movimento. Além de Adla e Luciano havia uma terceira entidade na casa que, para surpresa de todos, se mostrou uma aliada.

- Desgraçado... – Luciano gemeu quando sua força se mostrou inútil contra os poderes combinados que o dominavam.

- Acabou. – Enzo disse recuperado do susto e aproximando o isqueiro.

Uma fagulha atingiu o cabelo de Luciano, incendiando-o. Mas diferente de um fogo normal aquele se alastrou como mágica, cobrindo não apenas o corpo mas o espírito de Luciano que ali residia. Os gritos da criatura que trouxera tanta desgraça encheram o ar junto com um cheiro ardido. Mas o desespero de Luciano não era o bastante para nos comover, todos sabíamos o tipo de atrocidades que aquela criatura causara e como nosso plano seria um lugar bem melhor sem ele. O tamanho de seus pecados estava impresso nas chamas que o queimavam, um fogo avermelhado que eu e a outra Talita sabíamos estar reservado apenas para os piores tipos de entidade...

Tudo foi muito rápido e logo os gritos e as chamas se extinguiram, deixando no lugar um amontoado de cinzas que Giovana se encarregou de chutar.

E assim a segunda entidade estava exterminada.

XXVII

Enzo abriu a porta que rangeu ardida como uma unha raspando numa lousa, com um passo nos deu passagem.

De Luciano nada sobrara. A atmosfera da casa estava limpa como uma infecção retirada de um organismo. Havia apenas um último resquício, uma pequena farpa, fruto da terceira entidade daquele local.

Todos nós queríamos descansar antes de enfrentar esse último desafio, porém Enzo nos forçou a continuar um pouco mais, dizendo que aquela última etapa seria mais fácil. Por isso ele havia aberto a porta do quarto de senhor Basílio, nosso anfitrião, e pedido para que olhássemos com cuidado cada canto.

Eu precisei de um instante para perceber onde realmente estava porque a coisa era esquisita demais. Quer dizer, não era possível que o senhor Basílio estivesse dormindo ali!

O quarto era muito similar ao meu, com cama king size, uma pequena mesa com cadeiras e um banheiro de fazer inveja ao de muitos hotéis, porém a diferença era que aquele lugar não havia sido visitado por ninguém além de Cronos há um bom tempo. Os lençóis estavam carcomidos, a madeira podre, a pintura descascada e uma camada tão absurda de poeira recobria cada canto que causaria um infarto numa faxineira.

- Isso... É impossível! – A governanta Daniela dissera em voz alta, depois de toda a confusão Enzo pessoalmente a acordara e a fizera se juntar a nós. – O senhor Basílio sempre dormia aqui! Onde ele está então?

- Mas vocês não estão vendo o mais importante – Enzo disse e apontou um dedo para um canto vazio – Ali.

Todos afiamos o olhar tentando entender para o que Enzo apontava. A essa altura o Sol já havia nascido promovendo claridade suficiente para percerbemos que o parapsicoinvestigador estava com alguns parafusos faltando.

- Senhor Enzo... – padre Sávio disse colocando a mão em seu ombro – Lamento desapontá-lo mas... Não há nada ali...

Enzo virou para ele e depois para todos nós.

- Vocês ficaram cegos?

Enzo avançou decidido e quando chegou perto o bastante todos nos rendemos e permitimos a nossos queixos caírem.

Havia um berço ali. Um berço! Que por algum motivo não foi visível a nenhum de nós com excessão de Enzo. A madeira estava podre e os lençóis que o recobriam tão destruídos quanto os que cobriam a cama, mas nada disso era importante porque quando Enzo enfiou a mão em seu interior tirou algo que fez nossas espinhas arrepiarem.

Em suas mãos havia uma trouxa onde o crânio de um bebê descansava com o resto dos ossos. Ainda havia um ou outro resquício de pele ou tendão o envolvendo mas os ossos eram sem dúvida a parte mais visível. Enzo nos mostrou o pequeno ser e eu não consegui evitar a tristeza de me consumir ao ponto de fazer lágrimas encharcarem meus olhos.

- Eu vim avisar o senhor Basílio sobre a possessão de Talita e tudo que aconteceu. – Enzo começou enquanto nos aproximávamos. – Bati diversas vezes e como ninguém atendeu abri uma fresta. Foi isso que encontrei.

- Pobre criatura... – Padre Sávio disse fazendo o sinal da cruz. – Basílio deve ter sido a personificação de um espírito atormentado. Que padeceu de fome e medo nesse lugar esquecido. Espero que o que quer que esta alma estivesse buscando, tenha conseguido encontrar.

- Adla era uma xamã. Ela deve ter feito alguma coisa antes de morrer. Algum feitiço que evitasse que o berço fosse encontrado. – Giovana teorizou. – Estou realmente impressionada, tudo bem pessoas normais não o verem mas até nós sermos afetados... Não é à toa que você conseguiu encontrá-lo Enzo.

Então tudo se esclareceu, da mesma forma que Enzo não podia sentir os efeitos do combate ocorrido poucos minutos atrás ele também não podia ser afetado por feitiços como aquele. Pessoas normais, independente do grau, possuem algum tipo de instinto que as faz interagir com outros planos, por isso elas sentem arrepios inexplicáveis, cheiros, vêem vultos... E devido a essa percepção elas podem ser ludibriadas por certos tipos de magia. Enzo não tinha esse problema por isso um feitiço, ainda mais um elevado como aquele, não era nenhum mistério para seus olhos.

- Imagino que se eu não tivesse vindo esse pequenino ficaria aqui para sempre. – Enzo disse colocando os restos da criança mais uma vez no berço, seu local de repouso a tanto tempo.

- Devemos dar um sepultamento cristão a ele. – Padre Sávio anunciou e meus músculos já doeram com a perspectiva de cavar.

- Podemos fazer isso padre, mas acho que essa criança merece descansar o mais rápido possível.

Ante o olhar de dúvida de padre Sávio Enzo puxou novamente seu isqueiro e antes que qualquer um pudesse impedí-lo, ele colocou fogo no bebê.

Contudo o terror se desfez quando as chamas começaram a queimar. Labaredas azuis irromperam do berço e vinham com um cheiro de frutas silvestres que nos inebriou. Eu limpei as lágrimas de meus olhos, aquele pequenino havia ido para um lugar melhor.

E assim a terceira entidade estava exterminada.

XXVIII

Eu me entreguei ao sono mais longo e mais relaxante que já tive em muito tempo. Não sonhei. Não tive uma viagem astral. Não passei por nenhum estado de semi consciência. Apenas coloquei a cabeça no travesseiro pela manhã e quando abri os olhos já estávamos no meio da tarde.

Porém a magia acabara ali, por todo o andar eu ouvia o som de arrastar e só havia um motivo para aquilo...

Estávamos indo embora.

Tentei pelo menos um último banho mas Enzo entrou no meu quarto pouco depois que acordei. Arrisquei pensar que ele havia colocado uma câmera para me observar porque de outra forma seria acreditar que ele ouvira o arrastar das minhas pantufas contra o chão.

E antes que desejasse estava trocada e com um mal humor digno de um condenado me despedia dos demais.

- Você vai ficar bem. – Enzo disse a Daniela. – Mas aconselharia a nunca contar sobre os acontecimentos que viu. As pessoas não entenderiam. Vão te achar maluca.

- Eu nunca me preocupei com isso. – Daniela respondeu com um sorriso doentio – Mas vou fazer como pediu.

- Então é aqui que nos despedimos.

Daniela assentiu e deu espaço para Giovana.

- Eu vou dar um jeito nela, meu sexto sentido diz que ela tem algumas habilidades... – A médium disse misteriosa quando Daniela estava longe o bastante para não ouví-la.

- Foi um prazer trabalhar com você Giovana. – Enzo respondeu ignorando-a como de costume. – Espero que possamos nos encontrar em ocasiões mais oportunas.

Giovana grunhiu e também se afastou. Ela e Daniela entraram no carro e partiram. Eu tive um último lampejo de terror quando Daniela passou sorrindo e acenando diretamente para mim.

- Foram os dias mais agitados que já tive em muito tempo. – Padre Sávio nos disse e eu me surpreendi em vê-lo sobre uma moto, com um adereço colocado ao lado para permitir que um passageiro o acompanhasse sem incomodá-lo na garupa.

- Então foram dias que valeram a pena. – Enzo respondeu e ambos apertaram as mãos.

- Foi um prazer Enzo Velasquez. E você também jovem Talita. Talvez um dia possam visitar meu mosteiro e quem sabe eu consiga arrebatar suas almas para o senhor.

- Não é de meu interesse ser arrebatado padre, mas sem dúvidas gostaria de visitá-lo.

- Isso pode ser arranjado.

O homem lançou um último aceno e partiu liberando uma quantidade absurda de gasolina pelo escapamento.

E assim estávamos de volta ao ponto onde começamos. Enzo e eu entramos em nosso Gurgel cuja suspensão velha afundou consideravelmente sobre nosso peso. Enzo deu partida e eu olhei uma última vez para aquela fazenda esquecida, lugar que criara em mim memórias que eu lembraria por toda a vida.

Nós também seguimos nosso caminho.

- Que bom que tudo terminou bem. – Respondi espreguiçando-me e sentindo o vento morno bater no rosto. – Acho que podemos considerar o caso fechado e um completo sucesso.

Enzo murmurou alguma coisa com um desânimo que não condizia com a situação. Ele logo me explicou o motivo.

- Acabo de notar que nossa gasolina não vai ser suficiente para chegar a cidade.

- Tinha um posto não muito longe daqui, não é? – respondi dando de ombros. – Acho que podemos chegar até ele pelo menos.

Enzo enfiou a mão no bolso me revelando o problema que o atormentava, ao tirar a carteira e abrí-la notei que nada além de algumas moedas existiam ali.

Então lembrei do problema crucial pelo qual nossos casos sempre passavam.

Senhor Basílio nos contratara, mas senhor Basílio era uma das entidades que ajudamos a exterminar!

- Aquele bastardo... Se foi... Sem pagar! – Berrei num acesso de fúria esticando metado do corpo pela janela e brandindo um punho na direção da fazenda que ficara para trás – Imundo! Ateu! É uma sorte você não estar mais aqui ou ia te dar uma lição que você jamais esqueceria!

Quando minha fúria não encontrou alvo e uma curva brusca quase me jogou para fora do carro eu voltei a sentar, cruzando os braços e fazendo um bico que por pouco não encostava no parabrisa.

- Já que estamos sem dinheiro você podia aceitar aquele emprego de garçonete. Tenho certeza que voltarão atrás, eles gostaram muito de você.

Eu dei um beliscão na perna de Enzo com força o suficiente para fazê-lo gritar.

- É bom você saber lavar carros. – Respondi pouco depois. – Porque é assim que vai pagar a gasolina até em casa!

Enzo me olhou de esguelha, tirou um outro bombom do bolso e o comeu.

Lá estávamos nós de volta ao ponto de partida. Sem um centavo no bolso, sem gasolina, sem emprego e sem perspectiva. Mas eu já estava acostumada com isso, havíamos cumprido nosso dever com as entidades e eu estava em paz. Tudo bem que precisaríamos lidar com os problemas materiais, mas essa era a cruz que o último parapsicoinvestigador do mundo precisava carregar.

Pelo menos até alguém em algum lugar ter problemas com o sobrenatural e precisar dos nossos serviços. Daí seria questão de resolver um problema que ninguém mais no mundo seria capaz, rezando para que nosso contratante não fosse desaparecer assim que o caso estivesse terminado, o que nos faria, pela primeira vez, sair de um caso com esperanças de um futuro melhor.

Por que por enquanto continuávamos na mesma.

O caso 18 de Enzo Velasquez, intitulado Amálgama Fantasma, terminou como todos os demais.

FIM

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Pessoal, queria agradecer a todos que acompanharam essa história meio maluca do começo ao fim, não sabia o tipo de feedback que teria e para minha surpresa ele foi o melhor possível! Aos que leram, espero que tenham gostado, aos que leram e comentaram, saibam que me obrigaram a fazer o melhor possível para agradá-los.

* Zeni, sei que vai reclamar das cebolas e com razão, mas não esquente, nosso amigo parapsicoinvestigador vai dar as caras de novo e você vai ver como tudo fará sentido, eu prometo.

E no fim do mês tem lançamento de Terras Metálicas aqui no ABC hein pessoal! Briguei com a editora e vou conseguir uma promoção para o pessoal do recanto! A capa ficou lindona podem conferir!

http://imageshack.us/photo/my-images/696/terras1a.jpg/

Até a próxima!

Gantz
Enviado por Gantz em 07/09/2012
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