A Última Morada : O Cemitério jardim da Saudade

Parece loucura, mas eu gosto de fazer dessas, estava no tédio naquele sábado, um dia úmido, de ceu nebuloso. Peguei o ônibus e fui para o cemitério Jardim da Saudade. Logo ao entrar me deparei com várias pessoas - normal, ali é assim -, tem enterro todos os dias. Adentrei, como fazia de costume para o hall, onde os caixões eram velados. Muita organização, com avisos de horários, nome do falecido, sua foto e algumas frases de efeito, tipo : " saudades eternas."

No geral, esperamos que os mortos sejam pessoas idosas, que adoeceram e pereceram - nada, ali até crianças bonitas eram veladas, e, eu ali, de forma estranha, de caixão em caixão. Olhava os rostos do mortos, alguns bem tranquilos, outros pálidos, acaveirados, de olheiras profundas - alguns de rostos cobertos - talvez, para não revelar o estado cruel em que se apresentavam para o enterro - preservar os amigos, parentes de um espetáculo macabro,no seu semblante de morto, de morte violenta.Assassinado ou em acidentes dos mais diversos.

Ali, pouco tempo atrás, eu fui para o velório de um amigo, ele era piloto, participava de corrida de automóvies - ironia do destino, antes da corrida, na descida do seu carro da cegonha, desceu em alta velocidade, bateu na mureta da ponte, despencou de uma altura de mais de sete metros. Morreu, com vários ossos partidos, costelas se quebraram e perfuraram diversos órgãos. Ele estava pálido no caixão, um semblante de mortício agudo, cara de morte - havia perdido muito sangue.Coisa mais horrível,aquela palidez de papel.

As pessoas não pareciam me notar, é assim mesmo, quem iria pensar, que eu não tinha nenhum parente ou amigo, ali sendo velado - era um passeio, uma visita exótica, estranha, que fugias à realidade - talvez um psiquiatra, pudesse tecer um parecer clínico que me classificasse nesse ou naquele distúrbio paranóico, voltado para o mórbido, com os laços curtos com a morte. Poderia estar hoje no cinema, ver a namorada.

E, sempre fui assim, mesmo, tive vários períodos, onde a morte me amedrontava, entrava em pânico com a idéia de deixar de viver, morrer.

Muitas vezes no silêncio do meu quarto, na penumbra da noite, olhava para o teto e pensava, como seria morrer?

Imaginava o meu corpo sendo levado num local solitário. O caixão num féretro, talvez, de poucas pessoas - e sem uma única pessoa derramar lágrimas por mim. Imaginava, depois, a descida do caixão para a cova rasa, tendo terra por cima - isso, seria eu, enterrado numa cova pobre, na parte chifrim do cemitério. Pelo menos, que fosse num dia de domingo, nublado.

Triste imaginar a escuridão dentro da cova, as pessoas indo embora, e eu ficando sozinho no cemitério. Dentro de um caixão escuro. Ficaria ali durante dias, noite solitárias. Loucura isso, meu deus, é cruel demais morrer.

O pavor maior seria quando chegasse a hora, a temida hora que os vermes surgiriam da minha própria carcaça, sedentos, famintos de percorrer cada órgão, cada pedaço de pele, nervos e músculos, devorando-me aos poucos, derramando-me numa lama fétida. Ali, o que era precioso se tornaria execrável, um corpo imundo e fétido - e os vermes da terra cumprindo a sua miserável missão em devorar o que não tem mais serventia. Até os ossos - so restariam os cabelos.

E, depois, teria de certo tempo à ceder a minha cova, que me fora apresentada como última morada para mais um que se apresentava para o banquete dos vermes. Quem seria o próximo?

Fui de caixão em caixão, algumas pessoas olhavam com estranheza, fitava os rostos dos mortos - via a morte cara a cara. Estavam em número de 12 naquele hall. Fui aos demais recintos. Alhures à minha performance, algumas pessoas conversavam até sobre futebol. Outros se alimentavam comendo as porcarias gordurosas, de sempre e tomando refrigerantes. Cheguei ao hall dos pobres, ali, onde negros e pobres da favela choram os seus mortos. Flores baratas, de cheiro forte. Negras mães chorando, pais desconsolados - nada a fazer, foi a polícia - a imprensa disse que ele estava armado, foi troca de tiros.

Vi os seus rostos, joviais. Um ou outro idoso De caixão e caixão. De rosto em rosto, sem espanto, com naturalidade, olhando a morte cara a cara.

Até que no último caixão, um engasgo se apoderou de minha garganta, faltou-me o ar nos pulmões e o coração bateu mais forte - era alguém conhecido, ali naquele caixão de madeira barata, com flores chifrins, mal cheirosas, para o meu pânico, era eu quem estava deitado no caixão.

Não, não, não, por favor, não me enterrem, não me levem para a cova, não quero ser devorado pelos vermes.

Não adiantava gritar, pedir, em desespero, eles não me obedeciam, não me davam ouvidos.

So melhorei quando dois homens de branco, verdadeiros anjos me pegaram pelos braços. Fiquei tranquilo, adormeci. Quando despertei estava num local limpo, onde reinava um silêncio absoluto.

- Graças a Deus, não me enterraram. Os vermes não vão me devorar.

Um dos homens de branco, que havia me amparado estava ali, e respondeu:

- Claro que não, você está vivo e foi medicado.

Mania essa de fugir daqui e ir para velórios no cemitério Jardim da Saudade, não tem loucura melhor para fazer, não?

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 26/09/2012
Reeditado em 02/02/2014
Código do texto: T3902893
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