Visões Sinistras



¨O preço de se olhar para o mal, é  conviver eternamente com ele.¨
(Do Autor
)

 
            Anamélia insistiu para que fosse com ela naquela antiga casa de penhores na ponta da Rua do Cristal. Nunca gostei dali.  A construção sombria, repleta de colunas góticas contendo centenas de pequenas esculturas bizarras, indo desde elefantes com aparência monstruosa a anjos de aspecto deformado causava-me calafrios. No entanto, a par de meus receios, e da opinião de um sem número de moradores, a arquitetura fora admirada e consagrada por revistas especializadas ganhando notoriedade.
            Vendia peças de todo tipo, desde as mais sinistras a artigos de requinte. Os ricaços da região frequentavam-na com assiduidade. Minha amiga, que estava para casar, queria escolher ornamentos para sua casa nova e fomos até lá, sendo que quase me arrastava.
            Não pude deixar de sentir um medonho calafrio assim que adentrei o ambiente ricamente ornado por tapeçarias, cristais, louças e prataria de muitas eras. Os atendentes eram simpáticos, prestativos e acolhedores. Dentro de mim ainda vigora um antigo mandamento: quando tudo é bom demais para ser verdade, provavelmente há algo oculto.
            Enquanto Anamélia conversava com uma jovem balconista, comecei a afastar-me e a bisbilhotar em cada peça. Chamou-me a atenção uma abelha feita de um metal cintilante, provavelmente bronze, muito bonita e tendo um estranho e medonho ferrão de uma pedra translúcida, talvez vidro, ou cristal. Olhei para os lados e, certificando que não era percebida, aproximei o dedo da pequena peça. Em um movimento rápido, recebi a picada do vigoroso ferrão. Levei imediatamente o dedo à boca. Doía tremendamente. Ao observar o dedo, o mesmo começou a inchar de modo acelerado. Em pânico, corri na direção da minha amiga gritando seu nome. O mundo começou a girar e...
            ... Quando acordei, estava em um leito de hospital. Anamélia e minha mãe faziam gosto de me acompanhar. Fiquei feliz e sentia-me envergonhada.
            - Que desastre, amiga! – Disse-lhe como se fosse um pedido de desculpas.
            - Tudo bem, sua travessa. Como se sente?
            - Terrível. Terrível... Quanto tempo estive dormindo?
            - Uma semana.
            - Uma semana? Meu Deus! O que foi que aconteceu?
            - Você entrou em choque. Os médicos tentaram de tudo e, felizmente, você ficou estável.
            - Nossa!
            - Agora fique calma que tudo dará certo... – Dizia mamãe dando-me dois tapinhas nas mãos, como sempre fazia ao mimar-me. Àquela altura meu dedo já estava normal e não havia o menor sinal da ferroada.
            Nisso, uma enfermeira entrou deixando-me boquiaberta.   
            - Meu Deus! – Exclamei – O que é isso?
            Mamãe e Anamélia admiraram-se perguntado-me o que se passava?
            - O que é isso?
            - Sou Clara, enfermeira desse andar. – Dizia aquela estranha, uma mistura de mulher e anjo, com uma forma colorida esvoaçante saindo dos seus cabelos e uma luz azul, muito brilhante espargindo coloridas formas para todo lado, como brumas encantadas. Fiquei maravilhada e percebi que somente eu via como ela estava.
            À medida que me recuperava, e que novos funcionários entravam, notava aquelas formas estranhas que as circundavam, como se fossem reflexos a traduzir a sua alma. Não entendia por que em pessoas que já conhecia, como Mamãe e Anamélia não funcionava, mas aquela picada mudara algo na minha percepção.
            Ao sair do hospital, sendo conduzida pelo braço por Mamãe, cruzando pelas pessoas, vi as mais medonhas e, ao mesmo tempo, encantadoras emanações. Algumas emanavam energias doentias, deformadas, como nuvens espessas de um negrume assustador, ganhando formas de criaturas infernais, enquanto outras, como a enfermeira Clara, apresentavam emanações maravilhosas.
            Desenvolvendo aquele olhar, logo deduzi que poderia ser tremendamente útil, pois ninguém mais poderia mentir para mim. Comecei a me esforçar e logo comecei a ver as emanações de Anamélia de Mamãe, que não me decepcionaram provando ser da mais bela formação as vibrações que produziam.
            Em momentos de fúria, no entanto, quando como brigavam no trânsito, as formas modificavam-se adquirindo porções sinistras, que assim que a calma retornava, voltavam ao normal. Descobri também, ao ver bandidos e criminosos pela Tv, que uma forma doentia, monstruosa, envolvia os que se dedicavam ao crime como se fosse uma armadura do mal. Recuperada, ainda em tempo de participar da cerimônia de casamento da minha amiga, fiquei completamente desconcertada ao ver, envolvendo o seu noivo, uma criação demoníaca poderosa, similar às dos mais terríveis criminosos, apesar dele sempre ter se mostrado um sujeito de boa conduta.
            Para mim não valia mais o argumento: quem vê cara, não vê coração. Porém, um inconveniente ocorria: como alertar Anamélia, visivelmente apaixonada, do terrível quadro que a esperava? Era como se o noivo fosse, a todo tempo, abraçado pela capa escura de um demônio.
            Certamente não poderia permitir aquilo. A infelicidade da minha amiga iria assombrar-me para o resto da minha vida. Enquanto chorava, no salão de festas contíguo ao local da cerimônia, pequei de uma faca e, sem pensar duas vezes, corri na direção do noivo cravando-lhe no pescoço a lâmina. Foi um choque para todos. Estava disposta a tudo para defender a minha amiga, mesmo que corresse o risco de perder para sempre sua amizade, não conseguiria conviver com a sua infeliz desdita.
           Sabe-se, obviamente, que fui presa e considerada louca. Tudo isso pude suportar, somente não consigo olhar-me no espelho e ver, em torno de mim, envolvendo-me como uma carapaça, aquela forma medonha que também cercava o noivo...