O Fantasma do quarto 805

O hospital nem sempre é um lugar triste, mas quando se trabalha há noite durante trinta anos, você muitas histórias para contar, mesmo de onde estou agora, no inferno.
O Hospital São Paulo, sempre foi a minha casa, vim para cá trabalhei nos serviços da cozinha, depois na recepção, com muita dificuldade consegui o diploma de enfermagem e passei a trabalhar como o chefe do Platão noturno no oitavo andar. Minha vida foi aquele setor, não tive filhos não me casei. O dono do hospital, o saudoso Dr. Luiz Ferreira, era muito humano, espiritualista, supersticioso, mantinha o oitavo andar como o andar das boas ações, os pacientes que não tinham para onde ir, os doentes crônicos, ficavam no oitavo andar. Um deles Nero Padilha, andarilho que foi atropelado por uma estudante de engenharia bêbada de apenas dezoito anos. Depois desse trágico acidente, ficou paralítico, sem ter para onde ir foi ficando no hospital, tinha um quadro crônico de osteomielite do quadril, cansei de fazer seus curativos, nunca vi alguém sofrer durante um período tão longo como Nero Padilha, éramos muito próximos.
O hospital São Paulo, diante do novo cenário nacional em relação aos planos de saúde e com o aumento da concorrência, saiu das mãos da família Ferreira. Foi comprado há dois anos atrás por uma operadora de planos de saúde e uma faculdade de medicina. O oitavo andar foi dividido em duas partes, a primeira ala norte, ficam os aposentos dos residentes, os quartos, 801 a 805, do outro lado, onde devo trabalhar por seis meses, a pediatria onde me sinto em casa por gostar de crianças.
A história que ouvimos depois da morte do andarilho é que ele era um assassino de crianças na Bolívia e tinha fugido para o Brasil, desaparecendo como morador de rua. Não se sabe se é folclore, isso atenuou um pouco a pena alternativa da engenheira. Pouco antes de morrer, Nero teria confirmado essa história, perseguido por fantasmas horríveis e crianças queimadas, queria um padre para confessar os seus pecados.
Quando escutei aquela história de crianças queimadas, nunca mais entrei no quarto 805, muita gente que passou por esse hospital dizia que Nero Padilha ainda estava no quarto 805 perseguido por crianças queimadas, torturadas, de corpos mutilados, centenas delas.
Sou cristão, apesar de tudo, vou fazer sessenta anos em setembro, já fui a um centro espírita, fico mais impressionado é que as pessoas não acreditam nessas coisas. Depois de saber quem iria se hospedar no hospital, juntei todas as minhas forças para falar com a administradora nova, Dr. Rebeca.
A senhorita a minha frente era muito jovem. Eles são assim agora, médicos, advogados, juízes, engenheiros, são todos muito jovens, como posso chamar alguém de doutor tão jovem. Sua face era de desprezo por mim, relutava em me receber, era uma mulher ocupada, de cabeça baixa, havia muitos papéis em sua mesa. Mexia no cabelo com uma das mãos, a outra escrevia em um daqueles papéis, tinha cabelos castanhos, face de princesa, branca, pálida, óculos da moda, todo conjunto lembrava uma adolescentes em uma peça de teatro fingindo ser uma adulta.
- Sr Romeu, estou muito ocupada. – Disse, sem me chamar de enfermeiro. Ela não me considerava, já era carta fora do baralho, tudo havia se modernizado, a maioria das enfermeiras dos hospitais eram mulheres jovens como ela, talvez eu fosse um dinossauro, bronco, que mais atrapalhava que ajudava, deveria ser excluído. Como faltavam apenas seis meses para me aposentar, depois de um pedido formal do próprio Antônio Ferreira, filho do Dr. Luiz, ela me manteria na pediatria até sair à minha aposentadoria, exatamente no oitavo andar.
-Quero falar do 805.
-O quarto 805 não existe mais, já falei para o senhor para não divulgar essa história supersticiosa sobre Nero Padilha, isso está atrapalhando o hospital, no jornal saiu uma nota. – Ela pegou o jornal e mostrou para mim.
–Quem vazou com essa informação deveria ser demitido. –A notícia dizia de que a engenheira que atropelou Nero Padilha aos sessenta anos, faria uma cirurgia no mesmo hospital. Depois vinha o blá-blá sobre a impunidade, você sabe que isso é eleitoreiro? Essas coisas, no Brasil da impunidade, a tal engenheira nunca pagou pelo que fez com o andarilho.
-Não fui eu. – Disse sem olhar para ela, tinha sido eu, mas não sabia que aquela mulher era repórter.
-O senhor sabe de quem essa engenheira é mãe?
-Sei sim senhora.
-De quem sr Romeu? Diga com a suas palavras.
-Do governador.
A verdade é que sempre fui meio depressivo, porém nos últimos meses com a minha aposentadoria chegando, queria ficar sozinho no canto. Vinha tomando muitos remédios, principalmente os para dormir a ansiedade estava me matando, não tinha para onde ir, sempre vivi ali, minha casa foi o hospital, minha profissão era tudo. A aposentadoria seria um problema para mim, não saberia nem o que fazer nem para onde ir, minha vida foi toda dedicada a esse lugar, aos pacientes, ao entra e sai, do grande número de pessoas que entrava doente e saia curada, os mortos, os incapacitados, eram todos a minha família. Algumas ao sair do hospital vinham e me abraçavam agradecidas, outras nem tanto, mas eu amava aquilo, era o sentido da minha vida, agora tinha que me mudar, mas para onde?
Por piedade, me deixaram no oitavo andar porque era o único lugar que eu não atrapalhava.
Para receber a mãe do governador, retiraram os residentes dos quartos e prepararam toda aquela ala do oitavo andar para a comitiva do governador e sua mãe. Ela ficou no quarto 801, havia toda uma infraestrutura montada, os seguranças ficaram nos quartos 802 e 803, ela própria pediu que os demais quartos não fossem utilizados, dispensou o resto dos seguranças, ficando apenas com dois. A equipe de enfermagem foi deslocada para o quarto 805. Aline e Neuza foram às enfermeiras escolhidas, consideradas as melhores, segundo a diretora Rebeca.
A primeira noite, eu estava lendo o jornal quando Aline chegou.
– Hoje é o dia que a megera voltou da cirurgia, a meu Deus Romeu, que mulher podre. Trata mal todo mundo, além dos seguranças que são uns sem educação, que merda! Outra coisa, já ia me esquecendo, Rebeca quer você me ajudando, já que normalmente você não faz nada, a mãe de Neuza morreu e ela não poderá vir.
-Eu disse para ela que não entro no quarto 805. Os meus motivos todo mundo já sabe.
-Ordens da Rebeca são ordens de Deus meu querido. Somos apenas capachos, eles mandam e nós obedecemos. – Aline com uma cara maliciosa e vingativa que só algumas mulheres têm, completou o seu discurso juntando as mãos em forma de súplica.
–Desobedeça Rebeca e está na rua, não esqueça. Ela está no seu pé, doida para te demitir, mesmo que tenha que gastar dinheiro para isso.
Refletiu alguns segundos sobre o assunto. Sim talvez estivesse sendo supersticioso demais! Em pleno século vinte, depois que completei trinta anos de enfermagem já tinha visto de tudo, ver um fantasma a mais que mal faria?
A mãe do governador estava sentada no seu leito lendo, quando entrei para verificar a sua pressão.
Ela me olhou e depois disse:
–Você é o enfermeiro que falou as bobagens com a repórter? – Ela tirou o aparelho de pressão com força.
– O que você está fazendo aqui? Saia do meu quarto, você está na rua, demitido. Eu mesmo quando estiver boa falo com o diretor do hospital. Você é um vagabundo, não sabe que meu filho é um político de respeito, me usando para desonrar o governador com a história do Nero Padilha.
Aline estava na porta do quarto rindo.
Quando sentei na cadeira, fora do quarto no corredor, eram quinze para duas da manhã, uma pessoa sentou do meu lado e disse:
-Também sinto isso por ela.
-Isso o quê? – Falei sem levantar a cabeça.
-Ódio.
Virei e vi, era Nero Padilha. Os vermes estavam por todo o seu corpo, duas crianças acompanhavam ele, uma de pescoço quebrado e outra com a pele carbonizada. Só conseguia ver o olho vermelho através da pele preta queimada da criança, sua fisionomia lembrava uma dor atroz.
Corri para a ala nova, dois seguranças estavam na porta.
– Depois de meia noite, ninguém entra ninguém sai, só com a ordem do governador. -Disse um dos seguranças.
-Mas eu só quero sair e ir embora de vez.
-Ninguém entra e ninguém sai. -Falou o outro.
A minha testa estava muito suada, meu coração disparado, tudo acontecia muito rápido, nunca senti tanto medo. A luz do quarto da mãe do governador estava acesa, na porta do 805 ouvi Aline me chamar, estava parada de braços cruzados, atrás dela Nero Padilha com seu corpo em decomposição, uma canção infernal parecia sair da boca das duas crianças agarradas as pernas carcomidas e apodrecidas de Nero Padilha.
-Hoje é seu dia Romeu. O mal vai te reverenciar hoje Romeu, o nome desse mal é Nero Padilha.
Corri para a porta do quarto 805, os demais quartos estavam fechados e vazios, o coro continuava. O quarto 805, não tinha porta, era um posto de enfermagem improvisado, vi Nero Padilha e as duas crianças perto de Aline, tão perto que podia sentir o cheiro de queimado e de podre, as crianças cantavam em volta de Aline, pareciam celebrar alguma coisa, algum ritual do inferno. Nero Padilha sorria, as crianças continuavam com o coro.
- Hoje é seu dia Romeu. O mal vai te reverenciar hoje Romeu, o nome desse mal é Nero Padilha.
-O que foi Romeu, parece que você viu um monstro? Não vai me dizer que é a história do fantasma, como é mesmo o nome dele? – Disse Aline, olhando nos meus olhos, alguma coisa havia tomado o corpo de Aline, alguma coisa muito ruim, comecei a tremer, escutei uma ordem na minha cabeça.
-Faça agora. – Era a voz de Nero Padilha.
Peguei a tesoura de procedimento e cravei no pescoço de Aline, foi preciso muita força, o sangue saiu e inundou a minha mão até o antebraço, depois torci a tesoura dentro do pescoço dela, mesmo com a tesoura cravada no pescoço, Aline tentava falar, levantar os braços. Porém aquele golpe tinha sido certeiro, torcia mais ainda a tesoura e penetrava no seu pescoço até atravessar e a ponta aparecer do outro lado, ouvia Nero dar gargalhadas e as crianças acompanharem com seus risinhos curtos e sombrios, retirei e enfiei a tesoura no segundo espaço intercostal direito, habilidade e precisão de um cirurgião, atingi o coração, Aline parou de se debater e caiu.
O coro continuava.
- Hoje é seu dia Romeu. O mal vai te reverenciar hoje Romeu, o nome desse mal é Nero Padilha.
Nero estava em pé diante de Aline. – Perfeito, uma obra de arte. Eu não faria melhor.
Comecei a chorar, uma das crianças queimadas pegou no meu ombro e disse:
– Não adianta chorar, estamos chorando há cinquenta anos, chorar não adianta.
Olhei para Nero Padilha e disse:
-O que você quer de mim?
-Mate a desgraçada que me atropelou, eu cuido dela desse lado.
-Não vou matar mais ninguém.
O coro horrível das crianças começou mais forte.
- Hoje é seu dia Romeu. O mal vai te reverenciar hoje Romeu, o nome desse mal é Nero Padilha.
Um dos seguranças vinha andando para o 805, agora a noite, havia somente dois. Fiquei atrás da porta, na minha mão o extintor de incêndios, quando ele entrou bati na cabeça dele com força, ele não caiu totalmente ficou de joelhos, bati novamente, nem sabia que tinha tanta força assim, a cabeça dele arrebentou como se fosse isopor, derramando pedaços de ossos e massa encefálica para todo lado, bati novamente com força, até esmagar o crânio como uma papa de ossos, sangue e cérebro, dessa vez o barulho atraiu o outro segurança. Retirei a arma do segurança que estava no chão e fiquei atrás da porta. A maioria desses seguranças não tem formação militar, são grandões contratados para vigiar senhoras da alta sociedade. O segundo segurança veio andando pelo corredor e entrou no 805 da mesma forma que o anterior, displicente.
Apontei a arma para a cabeça dele e disse:
– De joelhos, olha para o lado e veja o seu colega morto, se não quiser morrer é só ficar quietinho, amarrei pelas costas, e amordacei aquele homem que estava prestes a morrer.
-É isso! – Disse Nero Padilha, que horror, dava para ver os músculos, nervos e o osso abaixo do olho direito de Nero, uma das mãos era apenas ossos móveis, já quebradiços e faltando pedaços. E continuou falando:
– Agora pegue um travesseiro para abafar o barulho do tiro e termine o serviço, sabe que não pode deixar ninguém vivo.
Preferi sufocar a atirar.
Andei até o quarto da mãe do governador.
-Quero que ela me veja.
A mulher de olho arregalado deve ter visto o demônio, depois peguei o travesseiro e comecei a sufoca-la, até que escutei o último suspiro.
Olhei para trás, a ala da pediatria ficava ao lado, pensei ter ouvido passos, meu Deus será que é a policia? Virei para a porta e havia uma criança me observando.
-É isso. Você sabe o que tem que fazer. –Disse Nero Padilha.


JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 06/10/2012
Reeditado em 08/11/2012
Código do texto: T3919578
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