Medo

O medo é uma coisa engraçada. Ele pode existir de várias formas e receber muitos nomes. Pode ser aquele friozinho na barriga às vésperas de uma apresentação importante, e eu chamo esse medo de tensão. Pode ser aquela língua inchada quando você está prestes a encarar seus pais depois de ter feito uma traquinagem, e eu chamo esse medo de respeito. Pode ser aquela coisa intensa que te acomete quando você está prestes a fazer algo perigoso, e eu chamo esse medo de diversão. Pode ser aquela tremedeira incontrolável quando um marginal põe a arma na sua cabeça, e eu chamo esse medo de pânico. Pode ser, até mesmo, aquela letargia que domina as pessoas na hora da morte, quando elas percebem que não há mais escapatória, e, por algum motivo, eu chamo esse medo de paz.

Eu sou um viciado em sentir medo, por que o medo é a única coisa que solta adrenalina no sangue, e eu sou um maldito viciado em adrenalina.

É a melhor droga que existe. É grátis, não tem efeitos colaterais e deixa um formigar engraçado na língua quando passa. Eu nunca pensei que acabaria viciado em nada, no máximo em cigarros ou talvez café, mas no fim foi a adrenalina que venceu. E eu já podia começar a sentí-la envolvendo meus tecidos, alterando meu funcionamento, enquanto saia de casa.

A madrugada me envolveu, gelada. Madrugada... Hora dos assassinos, hora dos traficantes, hora de vampiros e lobisomens.

A hora do mal.

A minha hora.

O frio obrigou-me a usar um sobretudo e botas grossas. Eu gostava daquelas coisas, o sobretudo tinha bolsos extras que eu podia encher com coisas interessantes sem levantar suspeitas, e minhas botas haviam sido compradas com um local especial para que eu pudesse guardar uma faca. Também usava luvas, mas essas eram para qualquer ocasião, eu não queria deixar impressões digitais.

Meus passos eram secos e ritmados, melhor que muitas melodias da atualidade, e minha respiração formava nuvens ao sair do nariz, como se meus pulmões fossem feitos de cigarros. Eu já sabia o que faria aquela noite, já sabia quem seria minha vítima e onde ela estava. Repassei os detalhes do plano como de costume conforme caminhava. Pensar, pensar e pensar. Pensar era a melhor forma de me deixar preparado, e com a adrenalina no sangue eu pensava rápido para caralho.

Normalmente agia longe de casa, mas foi impossível evitar aquele trabalho a três quarteirões. Era de certa forma estranho por que eu conhecia o sujeito... Doutor Barretos era um médico renomado, com um consultório no centro que atendia dezenas de pacientes por dia. Embora eu mesmo nunca tivesse ido até o lugar sabia que algumas pessoas importantes iam, seria uma pena que elas ficassem sem seu médico, mas um trabalho é um trabalho, e o doutor Barretos havia cruzado o caminho das pessoas erradas.

Era sexta feira e o doutor sempre ficava num pequeno barzinho próximo à sua residência. Não que aquele fosse um lugar normalmente frequentado por médicos renomados, mas desde que se tornara viúvo o pobre doutor não tinha muitas coisas para fazer, e já que crescera naquelas bandas o barzinho era uma ótima oportunidade de conversar com os amigos menos favorecidos.

Eu cheguei ao local perto de meia noite e meia, hora em que eu sabia que o cansaço começava a bater e o doutor Barretos iria para casa. Já havia estado em muitos trabalhos como aquele e em nenhum houve tanta sincronia... Normalmente eu entraria, encontraria o alvo, pediria uma bebida e ficaria observando-o até que ele saísse, mas naquele dia as coisas foram mais fáceis e eu consegui ver a cabeleira branca do doutor já na esquina, tomando o rumo de volta para casa. Não tinha muito tempo a perder, embora o barzinho estivesse cheio as ruas próximas estavam vazias, e com a proximidade de sua residência eu sabia só haver uma chance de pegá-lo.

Por isso acelerei não evitando sorrir. A adrenalina me preenchia. Eu sabia que poderia ser pego e minha vida estaria acabada, mas um trabalho é um trabalho, não que eu precisasse fazê-lo para viver, mas como eu disse, sou um maldito viciado em adrenalina.

- Barretos! – Chamei quando o doutor entrou na rua onde eu o mataria.

O médico virou bem a tempo de me ver, embora tenha demorado um pouco, talvez pelo álcool no sangue, para me reconhecer.

- Ora, que surpresa! Como vai garoto? O que faz aqui fora nessa noite tão fria?

Eu não respondi, apenas me aproximei observando o doutor com sua pele enrugada, seus tenros olhos azuis e sua cabeleira branca. Ele sorria para mim, um sorriso branco e perfeito comprado no dentista. Eu sorri de volta, a adrenalina chegando a seu pico máximo quando eu tive distância para agir.

Doutor Barretos esticou a mão para cumprimentar-me e eu fiz o mesmo, mas meu cumprimento foi dado no pé da orelha daquele homem sessentão, derrubando-o na rua. Ele havia batido a testa no muro e o sangue começou a escorrer. Foi incrível! Era tão abundante, tão vermelho, tão líquido. Espalhou-se por seu rosto, manchando também suas mãos, o chão e os cabelos brancos. O doutor repentinamente ficou ruivo e eu quase gargalhei com aquilo.

- O que você está fazendo?!

Mas o doutor não prosseguiu. Não depois que eu lhe apresentei uma pequena amiga. Minha Colt .38, numeração raspada, pente cheio. Aquilo sim era uma garota.

- Doutor – eu disse chegando tão perto que podia ver meus traços refletidos nas íris azuis do velho homem – você arrumou alguns problemas doutor. Você sabe disso não sabe?

- Por favor... Eu não sei do que você está falando... – O homem implorou e as lágrimas encharcaram seus olhos turvando meu reflexo. – Pense no que está fazendo... Se a polícia descobrir você vai perder seu emprego...

- Eu tomo minhas precauções doutor, então não se preocupe, meu emprego como delegado do terceiro batalhão vai continuar. Agora doutor, justamente por isso, nós dois sabemos o que o senhor fez e o que o senhor ainda faz... Então, me dê um bom motivo para não apertar esse gatilho.

- Por favor... Eu... Eu tenho família...

Enfiei a arma em sua boca sentindo os dentes artificias a envolverem.

- Motivo errado. – Sentenciei.

Quando apertei o gatilho lembrei do dossiê daquele homem. Lembrei sobre os depoimentos de alguns pacientes que corriam em segredo de justiça. Pobre esposa do doutor Barretos, morreu sem saber que era traída quase diariamente no consultório que garantia sua boa vida.

Um consultório de pediatria. Onde renomadas pessoas levavam suas crianças para fazerem exames. Onde meninas e meninos com não mais de dois dígitos de idade passavam horas fazendo bem mais que uma endoscopia...

Um cachorro passou a latir e eu sabia que precisava ser rápido e sair dali. Ninguém se preocuparia em encontrar o assassino do pobre doutor, naquela jurisdição eu mesmo conduziria a investigação.

Quando parti, lembrei ainda haverem muitos alvos em minha mira, mas a poeira precisava baixar antes que eu fosse atrás do próximo. Talvez semana que vem... Não... Um viciado não consegue ficar longe da sua droga muito tempo. Eu gostava daquilo, de vingar os mais fracos, mas claro, havia o medo de ser pego, o medo de que o filha da mãe reagisse e eu precisasse colocar minhas habilidades à prova, o medo de ser reconhecido por algum transeunte...

Eu chamava aquele medo de justiça.

Gantz
Enviado por Gantz em 08/10/2012
Reeditado em 08/10/2012
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