Microbiofobia

Paulo Lacerda, meu chefe, era um cara magro demais até para os padrões modernos, usava barba e bigode, suas sobrancelhas eram expeças, feias, antes de dormir se desse com ele de luz apagada teria medo. Ele recebeu o meu atestado médico com desprezo.
       -Como o senhor pode trabalhar em uma repartição pública com essas exigências? – disse depois de ler o meu atestado.
       A carta do meu psiquiatra estava bem clara, eu teria que ter um banheiro só meu, usaria luvas e limparia, claro com o devido cuidado, eu mesmo limparia minha mesa, entraria às seis horas, uma hora mais sedo e sairia uma hora mais sedo, sem ter contatos com pessoas, se algum inseto aparecesse teria que ir para uma outra sala imediatamente.
       -Isso é praticamente viver numa bolha? – disse meu chefe, eu sabia que ele ia reclamar, mas a minha vida não era nada fácil, eu era portador de microfobia, meus remédios já não funcionavam e a terapia estava lenta, teria que voltar a trabalhar, segundo a última pericia médica.
       O Senhor Lacerda levantou e andou até a máquina de café, me ofereceu um.
       -Não, não como nem bebo nada fora de casa.
       -O que é microfobia mesmo? – ele perguntou colocando açúcar no café.
       -Um medo, de germes e bactérias, etc. – pensei em detalhar, mas o ar do senhor Lacerda era de brincadeira então preferi não me expor.
       A secretária entrou expirrando, um pânico percorreu o meu corpo, corri para o lado oposto, ela sorriu e disse.
       -É apenas alergia – o senhor Lacerda ria, no seu pensamento, acho que poderia ler o pensamento dele, estava:”que coisa de viado”.
       -O senhor pode me liberar hoje? – Perguntei.
       -Não, afinal o senhor voltou ao trabalho hoje – ele pegou uma pasta – hoje também começamos o turno da noite. – Olhou para a pasta e parecia procurar alguma coisa. – Olha aqui, temos uma vaga ótima para o senhor, são poucas pessoas no turno, o banheiro é praticamente seu, e o pessoal não quer trabalhar nesse velho casarão porque têm medo de fantasmas, mas o seu problema não é medo de fantasma é? O tal da microfobia é medo de micróbio, certo?
       -Não, não tenho medo de fantasmas, meu único medo é adoecer, nem tenho religião, me considero um agnóstico.
       -Aí, dona Marlene – disse o meu chefe olhando para a senhora parada na porta limpando o nariz.
      – Juntou a fome com a vontade de comer, o medo dele é de micróbio, acho que ele pode fazer o turno da noite com o Sandoval e o Lima, certo.

       -Posso. – Era melhor para mim, Sandoval vivia de atestado médico e o Lima dormia em um colchonete do segundo andar depois de se acabar com revista pornôs, ficaria praticamente sozinho, eu e o segurança.
       A lenda que existia sobre o casarão era muito comentada nos corredores, uma mulher de branco andava pela casa vestida de noiva, e todas as noites o noivo vinha para encontrar sua amada, porem ela aparecia enforcada no segundo andar depois de descobrir a traição dele. Sabendo da morte dela o noivo enfurecido volta para a amante, uma mulher mais velha que tinha falado com a jovem noiva sobre a traição. Ela começa a rir, enfurecido com a amante, ele então retira a faca de caçador da cintura e mata a amante, fugindo pela floresta e nunca mais foi visto. A lenda conta que a noite os três andam pela casa.
       Aquela noite o vigia era Seu Pires, um senhor de sessenta anos nascido no ceará, discreto e obediente, sempre abria as portas para mim, sabia do meu problema. Sandoval, estava atualizando umas fichas na sala sete, Lima com suas revista na nove, eu subi para sala dez, tinha mais de cem fichas para atualizar, quando liguei o computador, vi uma barata no canto a minha frente, fiquei paralisado por alguns instante, mas continuei a trabalhar. Olhei para o relógio, faltava três para as onze, tinha trabalhado durante quatro horas seguidas, e a barata não saia do canto, resolvi levantar queria sair e pedir ajuda para retirar a barata, quando ouvi uma voz  e um arrepio passou pelas minhas costas.
       -Não se preocupe – disse. Congelado de medo, me virei devagar, era a mulher de noiva, seu pescoço estava quebrado e sua face enegrecida, do lado dela um homem de terno e uma mulher, havia vermes caindo da face dele, e uma luz negra prendia os três.
       Tentei pedir socorro, quando avancei para a porta e olhei para o chão para ver onde pisava havia centenas de larvas no chão, milhares delas, germes decompositores de cadáveres, jamais conseguiria passar por ali, gritei por Sandoval, não obtive resposta, gritei por Lima, eles não respondiam, chamei o Sr Pires, ele também não respondeu.
       -Tem medo de mais alguma coisa? – perguntou a segunda mulher com cara de bruxa. A voz dela parecia metálica rouca, mas me parecia familiar, do lado dela o homem continuava de cabeça baixa, e como uma cachoeira caiam vermes de ferimentos na sua cabeça e na barriga.
       -Não vou falar com vocês, são alucinações minhas, estou internado, ou tomei uma medicação forte demais. Do teto uma montanha de verme caiu sobre as minhas costas, gritei alto palavras que não me recordo, o pavor tomou conta de mim quando senti o cheiro podre dos vermes, minha mão fechada, com gestos desajustados tentava retirar aqueles vermes e caiam mais, até que perdi a consciência.
       -Martins, acorda – disse um homem que parecia um médico – a polícia está ai, quer falar com você.
       -O que aconteceu?
       -Eles acharam o corpo da sua mulher enterrado no jardim, você que deu a pista para eles, de sua sogra e de um homem, que parece ser o amante de sua mulher  – disse ele e acrescentou – você falou tudo hoje no seu serviço na madrugada, para  dois de seus colegas, Sandoval e o Lima, depois passou muito mal, eles trouxerem você para cá, agora é com você e a justiça. - Apenas um dia de trabalho, havia revelado tudo por causa de um inseto, pensei sozinho na enfermaria.
      Matei minha mulher, o amante dela e minha sogra, pois ela descobriu tudo, ha muitos anos, depois disso venho enfrentando esse medo. Será que eram eles no casarão, ou foi apenas um sonho depois que desmaiei de medo da barata? Nunca vou saber o que aconteceu lá. Devo ter falado demais.
      De qualquer forma estou bem, talvez não tenha mais medo, não tenha mais microfobia.


JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 14/10/2012
Reeditado em 15/10/2012
Código do texto: T3932948
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