O palhaço

Às vezes os passos antes da porta me assustam, quem vem? Pergunto, nunca sei, abro a porta e não tem ninguém lá. Ai penso, é o meu medo de palhaço, quando vou ao circo, sempre saio para comprar pipocas na hora do palhaço, antes quero explicar: só fui ao circo duas vezes, uma com doze anos, para mostrar para os meus colegas que era homem macho e que esse medo de palhaço era coisa de maricas, quando apareceu o palhaço fiquei gelado porém me mantive firme, foi a maior prova de masculinidade que já dei na minha vida, outra vez foi quando Leonora disse para mim que era um circo sem palhaço, eu, burro, acreditei, fui e fiz um escândalo, chorei e tudo, fizeram um vídeo e colocaram no youtube.
Dizem que eles fazem graça, não encontrei um único palhaço que tivesse a face alegre, todos são tristes. Quando Leonora me chamou para o passeio de trem fiquei logo com vontade de ir, afinal era uma locomotiva que estava desativada há anos, achei que pudesse gostar do passeio de locomotiva, mesmo que na minha vida toda não tivesse visto nem um trenzinho de brinquedo de perto.
 Leonora é uma professora de história aposentada, tem uma paixão por cães e gatos, ela vive com trinta cachorros, seis gatos e um papagaio num sítio fora da cidade, é minha amiga do peito e já me emprestou até dinheiro.
Uma vez disse para ela:
-Leonora a sua casa fede a cachorro e merda de cachorro, como pode viver num lugar assim?
 Ela se ilude dizendo que o amor de cachorro é incondicional, para mim não, não gosto de cachorro, acho que o tal do cachorro é o bicho mais fingido, da terra fica procurando proteção e comida, vi no canal a cabo, o tal do planeta animal, que os cães agem assim pois são controlados por  feromônios, como todo animal  ele só esta querendo sobreviver. Teoricamente, segundo os cientistas, o cachorro nem sabe que esta vivo, a consciência do viver é única do ser humano, é o que a ciência diz, eu acredito na ciência.
Leciono matemática na escola técnica, os alunos são melhores que os da rede pública, mesmo assim me deixam de cabelos brancos, e a estabilidade trousse a calmaria para vida.
 Casei e tive um casal de filhos, minha mulher, depois de muito brigar com a minha mãe, desistiu de ficar casada, disse que deveria casar com a minha mãe, arrumou as malas, pegou nossos filhos e voltou para seu estado, ela era nordestina, levando os meus dois filhos. Agora vivo sozinho num apartamento de setenta e quatro metros quadrados de frente para a praia, tenho uma namorada chamada Rose, trabalha em uma lotérica, gosta mais do meu dinheiro que de mim, mas tudo não é uma troca? Na semana passada ela saiu correndo dizendo que o pivô dela caiu ,eu disse: tudo bem, dei quinhentos reais para consertar, achei o pivô meio caro, mas homem enganado é homem feliz. Concertou o pivô, depois saímos para tomar sorvete.
O passeio de trem não incluía a Rose, ela enjoava, e tinha cistite, doença que leva a uma certa urgência urinária, queria toda hora ir ao banheiro, quando a Rose tinha cistite, não havia banheiro na face da terra que atendia a Rose, ainda havia o seu pecadinho, era fumante, se não deixasse Rose fumar era capaz de incendiar o trem fumando no banheiro, fumava com a cabeça para fora da janela, fumava entre um vagão e outro.
Primeiro me certifiquei com Leonora.
-Leonora não tem palhaço, têm? Já falei que essas suas brincadeiras não prestam.
-Nem de brinquedo, sério mesmo, palavra de honra da sociedade protetora dos animais, juro pelo meus cachorros. -Leonora sempre tentando me sacanear, ela sabia do meu pavor a palhaços, assim sempre que podia ela arrumava um jeito de me colocar nas situações mais inusitadas do planeta. Na minha festa de aniversário ela trousse um palhaço dentro do bolo, era um anão, sem saber o que fazer nem percebi quando o meu pé deu um bicudo no anão e sai correndo, fraturei três costelas do anão e dois dentes, por fim, quebrei o meu dedão, quase fui preso, o anão me chamou de todos os palavrões conhecidos do Aurélio e alguns que nunca seriam conhecidos. Fui obrigado a pedir perdão para o anão, pagar o seu tratamento dentário e uma viagem para Disney.
Por que o meu medo de palhaço? De onde vinha aquilo?
A explicação mais plausível foi dada pela minha mãe - Era hereditária, meu pai tinha medo de palhaço.
Leonora tinha a seguinte explicação. - Você é gay e ainda não sabe, precisa de ajuda, vou te arrumar um psiquiatra.
Comprei um curso por correspondência com a seguinte temática. "Livre-se dos seus medos", a capa era um palhaço, nunca consegui sair da segunda página.
Procurei um analista, ele tinha problemas de próstata e levantava para urinar a cada dez minutos, aquilo me desconcentrava, procurei outro, ele me disse que era gay também e que os pais dele, não aceitavam, assim como eu não me aceitava. Mandei a merda, o que o medo de palhaço tinha com a opção sexual? Desisti de terapeutas.
A viagem começou de baixo de chuva, na subida da serra a locomotiva estava muito devagar, eu estava para morrer de tédio, só se via mato para todo lado, Leonora estava me enjoando com sua dissertação sobre história local, tipo de construção local, quem descobriu isso, quem colonizou aquilo. Primeiro eu já estava puto, doido para esganar Leonora. Disse para ela se calar, ela perguntou se eu queria ficar ouvindo a merda do Roberto Carlos que estava tocando no trem, ou ela, eu disse que queria ouvir o meu ipod, rock para ser mais exato, Leonora nem ai, de fone ouvindo música  clássica começou outra dissertação sobre vegetação local e como o serrado brasileiro tinha sido transformado em móveis de rico, e lenha.
A locomotiva parou.
-O que está acontecendo? - disse Leonora.
-Eu vou saber? Você que me arrasta para esse programa de índio. Hoje é sábado Leonora? Lembra, sá-ba-do, folga, sabe o que se faz no sábado? A gente estaria tomando uma cervejinha lá no bar do Carioca, tira gosto de pururuca, carne de porco, só coisa que dá dor de barriga e faz a gente feliz - fiz um gesto com as mãos em forma de súplica.– Estamos lá, no bar do carioca, como qualquer pessoa normal? Nesse momento? Não estamos, olha bem onde estamos: aqui num passeio politicamente correto no meio do nada, tomando água mineral e comendo queijo quente, escutando música de fundo, Roberto Carlos, o que mais precisa fazer para uma pessoa querer pular desse trem em movimento.
-Palhaços – gritos vinha de dentro do outro vagão, de horror, eu tinha que ter feito aquela pergunta? Eu  tinha?
-Se acalma, vou lá à frente para ver o que aconteceu.
-Se você for eu vou também.
Andamos do primeiro para o segundo vagão - não tinha ninguém.
-Ué, onde foi todo mundo? - perguntei.
Leonora soltou um grito, duas pessoas mutiladas, sem cabeça e uma cortada no meio por uma espada. Quis correr, mas alguém gritou do lado de fora.
Pensei sozinho com meu medo:
-O que é pior que um palhaço?
-Saiam do trem, tem um palhaço com uma espada matando todo mundo.
Ouvi as palavras “palhaço matando todo mundo" e a urina saiu. Leonora pegou no meu braço e me puxou para fora do segundo vagão, não adiantava ela me puxar eu estava paralisado, a palavra palhaço seguida de assassino com espadas era demais.
A minha infância toda falei para os meus amigos que quase todos os palhaços ou eram monstros ou assassinos.
-Vamos George, temos que sair daqui, tem um louco com uma espada.
-Já escutei essa parte, só quero saber se isso é obra sua, se for eu vou te matar.
-Dessa vez não é, olha para mim, não tenho criatividade para isso, além do mais tem gente sem cabeça por ai, se liga, deixa de ser egoísta? Sai desse mundinho.
Olhei para trás e vi o desgraçado do palhaço, feio é pouco, que nem nos meus piores sonhos imaginei, em pé, tinha a cara pintada de branco e os olhos de vermelho, vestia roupa de palhaço, usava o nariz de palhaço vermelho sangue pisado, seus olhos pretos e brutais, dentes  amarelos, com crostas nodosas que saiam com a baba, um monstro, mostravam um sorriso maligno, o restante da maquiagem parecia ser feita de sangue. O mais estranho é que na mão uma espada de samurai.
 O pavor fez Leonora recuperar a fé e começar a rezar, se embolava entre Ave Marias, Padre Nossos e Creudeuspai, corremos para os vagões de trás, havia muita gente morta, crianças, velhos a maioria sem a cabeça, Jesus, como não ouvimos os gritos dessas pessoas mutiladas? Lembrei que escutava rock a toda altura no meu ipod,  Leonora música clássica, evitando, assim tentávamos evitar o terror do  Roberto Carlos. Os poucos que fugiram para o lado de fora corriam sem parar, um policial segurava uma arma, mas estava sem cabeça tombada na poltrona sem vida.
Leonora tropeçou em um braço com uma pulseira cafona, o palhaço aproveitou e com um golpe de espada cortou a perna de Leonora, nunca vi tanto sangue, eu agarrei a arma do policial, havia feito treinamento de tiro quando era militar, vencendo o medo, bufando e tremendo, apontei a arma e atirei no palhaço, ele quase não sentiu o tiro que pegou no abdômen, Leonora gritava como uma louca, gorda, caída, segurando a própria  perna ao lado do coração gritava “minha perninha”, estava banhada no próprio sangue, pelo coto de sua perna jorrava sangue, olhei aquilo com pena e nojo, apontei para o palhaço dessa vez na cabeça e atirei, errei feio de novo, desta vez acertei no tórax, ele nem retrocedeu, com um golpe hábil de espada atingiu Leonora novamente e arrancou a cabeça, sempre pensei que Leonora iria perder a cabeça, mas aquele foi um jeito trágico.
Pensei nos filmes de zumbi. Aqueles filmes deveriam servir para alguma coisa? Lembrei, na cabeça, tinha que atirar na cabeça.
Atirei na testa, um tiro certeiro, ele caiu para trás, e ficou alguns segundos sem se mexer, vai ver que o palhaço era um zumbi? Sai correndo, no último vagão três pessoas vivas. Uma mulher de cabelo preto, uma criança e um homem velho.
-Você o acertou, nós vimos - disse a mulher.
O homem segurava a barra de ferro, a criança estava encolhida na perna da mãe.
-Temos que sair desse trem -disse o homem - é alguma coisa no trem que atraiu aquela coisa.
Ainda não conseguia falar, apenas balançava a cabeça.
Descemos do trem, ele estava parado em um declive, que espetáculo deprimente, ao longo dos vagões nas janelas o desespero de muitas pessoas mortas, suas fisionomias ao morrer, muitas nem tinham cabeça com seus troncos pendidos pela janela de forma bizarra, pareciam procurar pela cabeça, cadáveres caídos uns sobre os outros.
 O palhaço pulou para fora do trem, vinha em nossa direção. O buraco feito pela bala que eu disparei aparecia bem na região frontal, ele agora andava com dificuldade.
-Não era o trem, ele quer matar todos nós - disse a mulher.
Ainda estava paralisado, minha arma ainda tinha duas balas, a menina chorava, a situação era tão difícil que eu repentinamente perdi o meu medo de palhaço, ou já estava com tanta raiva que o medo ficou esquecido.
-Corram para o curral, vou atirar na cabeça dele, assim podemos retardá-lo. Foi isso que aconteceu quando atirei na cabeça dele da última vez.
-Tem certeza que não quer ajuda? - perguntou o senhor de cabelos brancos.
-Sim, vão para o curral.
O palhaço estava a uma distância de três metros, atirei e errei os dois tiros, nunca fui bom atirador mesmo, ele se aproximava, quando alguém do curral, uma mulher que eu nunca havia visto e que não estava no trem, atirou com uma espingarda, o tiro destruiu quase toda a cabeça do palhaço, que caiu. Olhei para trás novamente a mulher loura segurava uma espingarda com satisfação.
-Quem é ele? - perguntei – Quem é esse palhaço?
-Um velho palhaço da região que veio para cá com a filha - disse a mulher. - A lenda conta que ele anda por essas bandas depois da morte da filha nos trilhos, foi atropelada, hoje é o aniversário dela, a ferrovia foi reinaugurada hoje, logo hoje.
-Como ele pode andar morto? - Perguntou a mulher morena.
Acho que era um monstro, que sofria pela eternidade pela morte da filha, essas criaturas podem existir, acredito muitas delas são palhaços, rancor e recentemento.
O palhaço havia sumido, quando olhamos. O pavor tomou conta de todos, ele apareceu de pé, sem parte da cabeça, com a espada na mão, o senhor velho mostrando um ato de coragem tentou enfrentar com um pedaço de madeira. O palhaço, mesmo mais lento cortou a perna direita, quando velho caiu ele decapitou com um golpe só sua cabeça caiu e rolou até a criança que estava com a mãe, isso fez o palhaço mudar de atitude. Olhou para mim e as duas mulheres, e depois para a menina, apenas um olho restava àquela criatura infernal, ficou parado olhando para a menina, depois soltou a espada e correu para o mato. Ninguém acreditou na nossa estória, o trem nunca mais andou.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 16/10/2012
Reeditado em 16/10/2012
Código do texto: T3935887
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