Os Vizinhos do Andar de Baixo

- Lá vem mais um. Acho que conto três até agora – Falei apontando o modelo sedan que fazia a curva devagar, tomava a direção da praça, contornado-a, indo adiante em outra ruela. Rui Branco ficou olhando o carro em seu lento trajeto e assentiu. A praça parecia um pequeno desaguadouro, onde ruas calmas encontram-se, como os rios e seus afluentes. Calmas como sempre foram. Apesar dos anos que nunca deixaram de fluir, aqui ainda encontramos alguma paz. Passei longo tempo sem ter contato com Rui e agora, ao fitar seu rosto pálido, acreditava ser esse tempo ainda maior. Envelhecera rapidamente, os sulcos na face não deixavam suspeitas. Mudara-se para estas redondezas moço, quando os verões pareciam com verões e o país não precisava de “milagres” para se desenvolver.

- Sim, são três. Um recorde para a parte da manhã – Falou sem me fitar, voltando a face de encontro ao sol quente. O carro já havia desaparecido.

- O que acha de uma cerveja?

- Acha que vai estar gelada? Mesmo?

Assenti levantando-me do meio fio e entrando no magazine onde o velho Ademar descansava a barriga cilíndrica. Em meio a carretéis, folhas de papel A4, pratos de alumínio e legumes, jazia escondido o refrigerador horizontal que mantinha as garrafinhas de pescoço grande sempre geladas. Apanhei duas. Ademar anotou preguiçosamente em seu pequeno bloco de papel verde algo que o faria lembrar que eu era um devedor.

Aconcheguei-me novamente ao lado de Rui no meio fio. O homem tomou uma garrafa de minha mão, girando a tampinha com facilidade. Sorveu um grande gole que apontou o fundo da garrafa para os carneirinhos no céu durante alguns segundos.

- Está de fato gelada. O refrigerador do Ademar ainda sobrevive. Lembro quando era capaz de enfileirar um monte destas pequeninas, vazias, umas atrás das outras e ainda dirigir meu “sport” até a praia. Mantinha-o ali – apontou para uma vaga disposta à frente de um pequeno prédio de três andares lá adiante, no fim de uma das ruas que desembocam na praça, continuou: as portas dormiam destrancadas. Fiquei sem as chaves do carro durante quase 6 meses, quando foi mesmo? Não importa. Juntava os fios descascados por baixo do painel amarelo e vrummmm, a belezinha estava novamente funcionando.

- Roncava como um grande rinoceronte adormecido quando estava em marcha lenta.

- Roncava. Roncava mesmo. Não se fazem mais motores como aquele. Colecionava quilômetros em seu odômetro, como fazíamos com nossos álbuns de figurinhas. Cada milha rodada, uma página completa. Lamentei quando me desfiz dele. Lamentei. – Parecia lamentar ainda agora por ter vendido seu automóvel.

Acontece que Rui não falava muito do passado, parecia desejar desprezá-lo ou ainda esquecê-lo. Sei que envelheceu rápido, pois assustei-me ao dar com ele novamente e parecia amargo. Ou ainda triste. Rui parecia ter perdido algo pelo caminho e algo que realmente faz falta. Os olhos ganharam um brilho baço, que deseja não enxergar. As mãos agora eram trêmulas, amarelas como o painel do “sport” que voava até a praia nas noites quentes de verão. Mas hoje, depois de alguns dias de minhas constantes visitas, voltou a lembrar do passado e falar sobre ele, como alguém abrindo um velho baú num sótão empoeirado.

Um sujeito, caminhando em passos rápidos passou na calçada logo atrás de nossas costas. Rui acompanhava o andar do moço, apreensivo. Fitava o jovem com aquele brilho ausente nos olhos cansados e pareceu ficar realmente nervoso ao ver que em seu caminhar pisaria na tampa do bueiro. Já havia percebido esse comportamento em meu amigo algumas vezes. Não gostava de ver alguém meter os pés por sobre a rodela negra nas calçadas e jamais o fazia. Nas curtas caminhadas até a frente do magazine do Ademar, aprendi a evitar pisar por sobre essas tampas negras, sabia que importunaria o espírito de Rui se o fizesse.

- Imbecil – Murmurou baixinho, como para si mesmo, depois que o jovem passou.

- Conhece ele?

- Tanto quanto ao Papa. Já o vi por aí, assim como assisti o outro rezar na televisão.

- E ainda assim acha que é um imbecil?

- Sim. Não sabe o que faz. Pode se arrepender.

- Por pisar naquele bueiro ali?

- Hum, hum. – Rui assentiu depois tomou outro grande gole que quase esvaziou a pequena garrafa.

- O mundo deve estar recheado de imbecis. Eu mesmo quando não estou a seu lado sou um deles.

- Hum, hum. Assentiu novamente. Esvaziou a garrafa. Apoiou o queixo nas mãos, o cotovelo, nas pernas.

- Isso te incomoda? Que existam um milhão de imbecis, neste exato momento, em suas rotinas diárias, andando acima e abaixo, pisando em todos os malditos bueiros deste mundo?

- Talvez. O que tem para fazer hoje? Algum compromisso?

- Não, nada especial – Respondi apreensivo, imaginei o que estaria por trás da pergunta desconexa.

- Hoje vou tomar outra – Rui levantou-se e caminhou magazine adentro. Ouvi o estalar da porta da geladeira quando se abriu e logo depois ao se fechar, imaginei o movimento automático das mãos do Ademar procurando sua pequena listinha da dívida ativa. Sentou-se a meu lado novamente. Pensei que preparava algum ritual, a expressão em seu velho rosto mudara e o tremor das mãos acentuou-se. Abrimos, cada um, outra garrafinha.

- Quer ouvir uma história? Quer dizer, tem tempo pra isso? Na verdade, acho que preciso contá-la...

- Claro. Nada pra fazer durante todo o dia. Além do mais, quero te ouvir de verdade. Acho que precisa conversar.

- Nunca mencionei nada do que estou prestes a te contar a ninguém antes do dia de hoje. Quer dizer, pessoas conhecem alguma coisa, sabe como é. Sempre se sabem coisas, em todos os lugares. As pessoas costumam passar o tempo falando e para isso precisam de assunto. Conhecem parte da história e do que aconteceu com Cristina e toda aquela confusão com a pobre garota, mas não sabem tudo. Acho que mesmo eu não sei tudo. Quero que não ache que soltei todos os parafusos da minha cabeça também.

- Não. Não pensaria dessa forma. Sabe disso.

Rui bebericou a cerveja, ficando um tempo parado e pensativo. Acertei comigo mesmo que não interromperia algo que ele parecia procurar no fundo do cérebro, ou alguma coisa que decidira falar, segundos atrás, e de repente passou a acreditar que o momento adequado não havia chegado de fato. Mirei o céu, aguardando.

- Sei a história. Conheço o que houve e sei como o mundo está cheio de imbecis por isso.

Parou um instante pensando no que havia falado. Prosseguiu.

- Você sabe que o medo é capaz de matar uma pessoa, não é?

- Sim, acho que sim.

- Rápido como um raio é capaz de atingir a ponta de uma árvore, ele fulmina um pobre imbecil, os miolos torram com a adrenalina e o coração explode como se rebenta uma sanguessuga faminta demais. Ou mata lentamente, com doses diárias, que minam nossas forças, roubam nossa vida aos poucos, como se sorvêssemos um pequeno gole de veneno ao amanhecer, diariamente – Diante de minha expressão, eu mesmo não saberia avaliá-la, repetiu – E não gostaria de saber que pensa que minha cabeça pifou. Ainda não.

Haveria, de fato, pifado como falou? Não conseguiria crer. Rui fora um jovem destemido, de estatura forte, gostava de garotas, cerveja e ainda tinha uma cabeça brilhante. Não era difícil afeiçoar-se por ele, não fazia o jeitão popular, mas dentro de sua reserva habitual, ganhava alguns amigos. Não, definitivamente não acreditava que meu amigo enlouquecera. Conheci algumas pessoas cujos parafusos que dão sustentação à sanidade soltaram-se, um a um, conforme os golpes da vida as atingiam até que não sobrasse uma porquinha no lugar, mas aquilo não havia acontecido com Rui. Mesmo a despeito dos olhos cansados e da expressão perdida em algum canto remoto do planeta.

- Sei que alguém ouvindo uma pessoa falar como te falo agora poderia pensar alguma coisa assim: não vou mais ouvir esse sujeito, prefiro passar o dia em um sanatório jogando baralho com Napoleão. Mas acho que algumas coisas também precisam ser contadas, não podemos esperar que nossa vida acabe ou que enlouqueçamos de verdade. Não é certo. Simplesmente não é certo. Deveria saber disso desde muito tempo. Conversei com Cristina e tomei conhecimento de tudo o que aconteceu. As pessoas sabem de alguma coisa. Tiveram pena dela na época, tentaram ajudá-la. Eu mesmo tentei. Tentaram ajudá-la de muitas maneiras, como ajudamos um vizinho que passa por problemas. Mas não podemos ajudar de verdade quando não sabemos exatamente o que se passa, não podemos auxiliar alguém quando não conhecemos de fato seu problema. Mesmo o conhecendo, quase nunca somos úteis de verdade.

Pessoas prontas a ajudar. O mundo parece estar apinhado delas. Apareça com um problema, “um filho da mãe de um problema qualquer”, como falava Josué, o encanador que trabalhava na Escola Secundária da cidade quando avaliava um vazamento, e pessoas estarão ali para ajudar. Farão reuniões, preencherão e assinarão atas, darão entrevistas à rádio local, as mulheres escolherão sua melhor maquiagem e vestirão uma camiseta com algo muito espirituoso estampado bem na frente quando estiverem presentes nos jantares decisivos, para que aquele problema deixe algum dia de ser um “filho da mãe de um problema”. “Mesmo o conhecendo, quase nunca somos úteis de verdade.” Alguém deveria ensinar aos comitês “resolvedores de problemas” alguma forma de serem úteis de verdade. Não, definitivamente acho que Rui não estava ruim das idéias. Ele disse:

- Mas o fato é que sei bem disso. Sim. Eu sei muito bem disso. Ele pode matar rápido um pobre diabo aterrorizado ou pode brincar conosco até que estejamos, depois de muito tempo, finalmente debaixo de sete palmos. Ou ainda fazer com que passemos o resto de nossos dias jogando aquela partidazinha com Napoleão num sanatório municipal. O medo é um inimigo realmente astucioso. Como vencer alguém incompreensível? Ele nos é incompreensível. É mais do que nós mesmos. Vai além.

Tomei cuidado para não falar nada. Simplesmente fiquei ali do lado dele, sentado, fingindo não ser atingido diretamente no queixo por suas palavras. Temia tomar ares desconcertados. Não é exatamente uma tarefa fácil, no meio de uma manhã ensolarada, de repente ouvir palavras tão inesperadas de um amigo casmurro.

- Conheceu Cristina?

- Não, não a conheci.

- Bom, eu também não a conhecia. Quer dizer, nunca a havia visto antes de... Antes de vir a morar no mesmo apartamento onde ela morava com sua família. Na verdade eu não conhecia Cristina de maneira alguma. A mulher morou no mesmo lugar onde atualmente moro, morava lá com sua família, mas eu não sabia disso. Simplesmente não sabia quem haviam sido os donos anteriores daquele lugar. Não podemos dispensar uma pechincha quando ela aparece, não é mesmo? É claro que não podemos. Mesmo conhecendo os riscos. Avisaram-me dos problemas hidráulicos, dos malditos canos estragados, dos vazamentos, do estado geral da coisa que não era exatamente atraente, mas uma pechincha é uma pechincha. Principalmente quando a droga do dinheiro que temos no bolso não é o que se pode chamar de fortuna. Um preço atraente e uma sobra para fazer os arranjos necessários. Consertar o encanamento estragado. Era tudo o quanto precisava naquela época. Era jovem e não me importavam umas drogas de canos entupidos, estourados, ou seja lá o que houvesse acontecido com eles, desde que pudesse morar naquele apartamento e pudesse gastar tanto quanto possuía. Além do mais, meus músculos estavam no auge do seu funcionamento, loucos para gastar dezenas e dezenas de calorias colocando tudo em ordem novamente. Mas a verdade é que a pechincha cobrou seu preço e foi caro. O apartamento acabou me custando muito, muito caro mesmo.

- Houveram muitas reformas necessárias? A coisa estava em tão mal estado assim?

- Algumas – Rui coçou a enorme cabeça desgrenhada. – Algumas reformas. Mas é claro que não falo disso. Não. Essa é a parte fácil. Um punhado de canos entupidos. Essa é sem dúvida a parte fácil.

Rui apoiara a segunda garrafa no cimento manchado da calçada. Não olhou em minha direção, pareceu, ao contrário, entrar novamente naquele transe que levava seu velho olhar endurecido embora, pra longe. Em minha cabeça, tentava completar a história que meu amigo iniciara, imaginando o que o afligia dessa maneira hoje, o que o afligiu quando comprou o bendito apartamento onde antes viveu a tal de Cristina. Impossível completar o mosaico, não era capaz de adivinhar o que estava para ouvir.

O local era de fato simpático e por sua natureza calma, reunia moradores fixos, veranistas em férias e alguns estrangeiros. Como em qualquer outro lugar como esse, sei que escondem histórias. Elas estão por aí, a gente as ouve. Nós as contamos também. Como a do cara que morava na última casa da rua Luar e matou a mulher a machadadas depois foi à praça jogar bocha. Ou o sujeito que não pôde entrar em casa, pois seu próprio cão havia enlouquecido e babava uma espuma espessa como chantili. Ademar nos contou essas outro dia mesmo. Mas são histórias, a maioria realmente aconteceu e acontece em milhares de lugares como esse durante todo o tempo, mas não deixamos que elas nos impressionem a ponto de atrapalhar nosso sono durante a noite. Aqui, nesta praça, inclusive, o sol de Março brilha morno, abraça a paisagem com calma e as nuvens lá para o lado da Praia Branca parecem pressagiar noites mais frescas e agradáveis. Os carros passeiam raramente e o ar transpira carregado de perfume esverdeado. Sou capaz de contemplar a praça sem me aborrecer durante algum tempo, coisa que considero bastante significativa. E as histórias? Elas existem aqui, como em qualquer outro lugar, sem dúvida.

- Fucei. – Rui, continuou. - Fui obrigado a conhecer todo o acontecimento, tudo o que acorreu antes da compra da pechincha do ano – Rui passou a mão novamente na garrafa que descansava no passeio – Ela não era conhecida exatamente como uma moça alegre. Cristina não era assim. Acho que qualquer mulher perde um pouco do brilho quando é simplesmente abandonada pelo marido como disseram que ela foi. O sujeito sumiu, assim – com as mãos imitou o movimento de um prestidigitador num passe mágico – nem sequer levou consigo seus pertences. Quando a pobre diaba deu conta, o cara não estava mais lá. Deixou-a só, com a filha pequena. Esqueceu tudo o quanto estava guardado no armário do quarto, mas levou embora o brilho claro do olhar de Cristina. Mas ela continuou. Não desistiu de viver, apesar dos olhos embotados, apesar de demonstrar que carregava consigo um peso qualquer que jogava seus ombros de encontro ao chão algumas vezes, a despeito de ser obrigada a controlar certo tremor que teimava tomar conta de suas mãos nos dias tristes. Ela prosseguiu e trazia a filha até a praça nos dias de sol, conversava com outras mães, com veranistas de quando em vez. Levava a vida. Acho que era assim, Cristina levava a vida. Até o dia em que foi levada por ela, até o dia em que a vida tomou as rédeas e a levou daqui, deixando o apartamento, a pechincha pra trás. Até o maldito dia em que... Estou te entediando?

- Não, é claro que não – Na realidade, estava curioso.

- O fato é que ela levava a vida, não punha tailleurs para ir ao trabalho todos os dias, assemelhava-se com qualquer mãe passeando com a filha já que vivia com algumas economias e a ajuda dos pais. Andava na pista de baixa velocidade como os veranistas e não trotava como a gente que sai às pressas de encontro à mesa carrancuda do escritório. Quando o sol aparecia e seu calor era de um morno aconchegante, ela podia ser vista bem ali – apontou para um banco branco, despojado no meio da praça – e a filha punha-se a correr, juntar areia com as mãos, inventar histórias com suas bonecas, sabe, esse monte de coisas que as crianças são capazes de fazer num pedacinho pequenino de terra, num espaçozinho de nada, essa habilidade maravilhosa que perdemos assim que nossa mente dá o pulo final para o degrau da idade adulta. É isso, elas ficavam ali. Algumas outras mães também. Às vezes elas ficavam ali sozinhas mesmo. Outros dias, algumas outras mães se juntavam a elas, com seus filhos a tiracolo, e então faziam o que mães fazem quando se juntam. Conversavam sobre a vida, as próprias e a dos outros, trocavam segredos, receitas, trocavam de vida um pouquinho. E as crianças ficavam fazendo coisas que crianças fazem quando se juntam. Aquela historinha da areia, das bonecas e das bolas. Bem ali – apontou novamente para o mesmo banco – se punham ali até o dia em que a coisa aconteceu. Quando comprei o apartamento não sabia de nada disso, mas passei a saber tão logo fucei por baixo dos panos. Cristina estava sentada no banco branco quando a coisa aconteceu.

Rui bebeu o último gole de cerveja da segunda garrafa. Ajeitou-a junto da primeira que jazia próximo ao meio fio, encarando-me. A tarde começava a anunciar-se através da mudança de lugar de nossas sombras, das sombras das árvores que, agora, projetavam-se obedientemente para o outro lado. Mirei o resto de líquido dourado dentro da garrafa em minhas mãos reluzindo como ouro. Sorvi o restante que desceu pela garganta quase morno. Acomodei a garrafa vazia junto ao meio fio ao mesmo tempo em que me levantava na direção do magazine pensando na terceira garrafa gelada. Percebi pelo olhar de meu amigo que era exatamente o que esperava que fizesse. Ademar, com toda a certeza, aprovava nosso colóquio.

- Foi numa quarta-feira, sim Senhor – disse Rui, respondendo à pergunta que eu não tinha feito, logo que me sentei novamente. - A coisa aconteceu numa quarta-feira de sol suave. Ela havia sentado no mesmo banco e a filha rodopiava pela praça. Enquanto estavam apenas as duas, Cristina entretinha-se com o brincar da menina até que em dado momento uma tal de Dona Amélia juntou-se a elas, no banco branco. E falava. A mulher sabia como falar. Trabalhava no posto telefônico em meio período e quando não tinha o que fazer sentava-se na praça com alguma mãe eventual e punha-se a falar mais do que nas horas em que estava cumprindo expediente, com aquele equipamento idiota preso nas orelhas e um microfone ainda mais estúpido diante da boca. Tagarelava enquanto Cristina assentia com meneares da cabeça, monossílabos entre dentes, por rictos e expressões forçadas, mantinha o assunto como quem obedece ao hipnotizador num show circense e com o cantinho do olho acompanhava o vai-vem da filha na praça, com perninhas rápidas disputando corridas com adversários invisíveis. O movimento da filha era suficiente para aplacar a preocupação da mãe, que não a mirava diretamente. E Dona Amélia continuava a falar, metralhando a outra com um turbilhão de palavras. Como um robozinho de brinquedo cuja pilha nunca acaba, Juliana desceu o meio fio que delimita a praça em sua disputa imaginária, seguiu pela rua tranqüila do lado norte – Rui apontou com o indicador a entrada da rua - balbuciando consigo mesma. Em muito pouco tempo a menina alcançou a outra esquina e pretendia de fato dobrá-la, quando a mãe deu por si. A criança estava no final daquela rua ali, parada na esquina, enquanto a falastrona da Amélia continuava a buzinar o ouvido de Cristina que de repente não prestou mais nenhuma atenção na conversa da outra. Mirou a filha de longe e gritou seu nome bem alto – Juliana! O grito da mãe cortou ao meio uma frase interminável da amiga e parece ter assustado a pobre garotinha lá no fim da rua.

Rui tornou o corpanzil em direção à rua que desembocava na praça, onde há anos atrás a menina correra até o fim, estacando na outra esquina. Avaliou o que via, como se pudesse enxergar ali, hoje, toda a história que Cristina contara-lhe. Como que buscando detalhes perdidos e cristalizados em um tempo qualquer, que tornara a existir de repente. Os olhos apertaram e pareceu que a imagem se formou novamente em seu cérebro.

- Pode-se imaginar o desespero da mãe, olhando a menina parada no fim da rua? – Rui perguntou-me, mas parecia falar consigo mesmo.

- Hoje já não vemos quase carros por aqui, naquela época deveriam ser menos ainda. Por que, afinal, Cristina ficou tão alarmada? Não, acho que não posso imaginar o desespero dela.

- Pode ser. Mas não se tratava de automóveis.

- Não?

- Não... A coisa não estava certa. Simplesmente algo estava muito errado.

- Como assim, Rui? O que ela acreditava tão errado?

Ele pareceu nem ouvir minha pergunta. Prosseguiu:

- Ao longe, a menina levou um baita susto com o grito da mãe. Encarou as duas mulheres na praça como se tivesse feito uma arte. Amélia, a faladeira, disse para Cristina deixar de se preocupar, a menina já iria voltar. Mas a feição da menina largou o susto e tomou um sorriso de um segundo para outro. Sorriu ao encarar a esquina e enxergar, logo após a curva, algo invisível aos olhos das duas mulheres. Sorriu aquele sorriso sincero de criança levada. Ela fitou a esquina com aqueles olhinhos vivos e irrompeu em risinhos alegres. E aí, algo que talvez só esteja presente, não nas mulheres, mas nelas quando se transformam em mães, entende? Um instinto de memória pura, cuja origem é ancestral e torna-se real com a maternidade, alarmou Cristina e ela percebeu que aquilo não estava certo. Quando a mulher contava-me isso parecia lembrar, revivendo tudo. Disse que a coisa simplesmente não estava certa e um medo, uma sensação de um terror jamais experimentado por ela tomou conta de todo o corpo. Algo físico, que começava lá dentro do ventre, congelava as vísceras roubando-lhe a respiração no segundo posterior. Sabe como são as mulheres, elas realmente possuem algo, alguma maldita coisa lá dentro da cabeça delas que funciona como um radar, uma antena regulada numa desgraçada freqüência que não conhecemos. Mais ainda quando são mães. Você entende isso?

- Acho que sim. Mais ainda quando são mães. – Repeti assentindo com um menear de cabeça. Bebemos juntos um grande gole de cerveja.

- Pois é. Elas têm isso sim. E ainda congelada de um medo desconhecido, Cristina começou a chamar pela filha, baixinho, com uma calma controlada, pra não assustar a garota. Levantou-se do banco e iniciou uma lenta caminhada em direção à filha. Falava algo sobre o peixinho que mora ali no laguinho da praça, chamava a filha para ver se o peixinho já acordara, pra ver se o bichinho havia saído da toca, continuando a caminhar na direção dela devagar. A menina adorava ficar brincando com o peixinho vermelho, seria um apelo fantástico para que ela retornasse, acreditou Cristina. Mas aí a coisa piorou. O medo da mulher aumentou mais. Muito mais. Algo realmente chamou a atenção da filha dela logo depois da curva, rivalizando com o chamado da mãe e estranhamente a menina prestava mais atenção àquela curva da esquina. Olhava, curiosa, algo fora do alcance da visão de sua mãe e da tagarela Amélia, algo que espreitava logo após a curva, alguma coisa que estava lá e que não era certa. Assim avisou o desgraçado do radar da Cristina.

- Isso me dá arrepios.

- Acho que era como Cristina deveria estar: arrepiada. De medo. Finalmente perdeu o controle e gritou para que a menina ficasse onde estava, que não desse mais um passo, que obedecesse a mãe. Foi o estopim. A criança correu, dobrando a esquina, sorrindo com seus dentinhos brilhantes, indo na direção oposta da mãe, correndo de encontro a algo que assustava Cristina sem que ela soubesse o que, nem por quê. E aquele desgraçado daquele instinto maternal soou alto um alarme e a mulher saiu em disparada, desejando alcançar a porcaria da esquina que parecia estar milhas a sua frente, pensou que nem com todo o esforço do mundo seria capaz de chegar a tempo de evitar o que quer que fosse. E a outra mulher correu atrás dela, dizendo que tudo estava bem. E a primeira chegou à esquina. E a outra também. E Juliana não estava após a curva. E a primeira mulher se desesperou, o instinto se confirmava. Correu mais, procurou por toda a rua. Berrou e chorou nos braços da outra. Foi consolada. Chorou mais e gritou para todos os Deuses que a maltratavam exigindo que devolvessem a filha. Amélia não entendeu quando Cristina disse ter visto a filha sumir. Sumir. Desaparecer pelo bueiro. Algo a havia levado e algo muito feio, disse a primeira mulher. A segunda pensou em seqüestro, mencionou a polícia, mas a primeira, em espasmos histéricos repetia sem parar que algo muito, muito feio havia levado sua filha bueiro abaixo.

***

Meus olhos estavam vidrados em Rui. Por sua vez, meu amigo parecia bastante emocionado com a história que ele próprio contara. O tremor das mãos aumentara, os olhos estavam ainda mais opacos. Fitava a rua onde a filha de Cristina havia desaparecido. Levantei para buscar nova garrafa.

Ao me sentar, comentei: - É uma história e tanto. Muito azar pra uma mulher só. Um desgraçado de marido que a abandona e depois... A filha seqüestrada desta maneira. Acharam a menina?

Um bom tempo se passou até que Rui demonstrasse ter ouvido o que perguntei, ainda assim, não deu a mínima. Virou seu corpo novamente à frente, fitando a praça. Finalmente abriu a boca.

- Não acabou. A coisa não termina aqui. Seqüestro? Não... A coisa toda não termina aqui. Caíram, as duas, de joelhos...

...As duas mulheres caíram de joelhos abraçadas e assim ficaram longo tempo. Cristina num estado de pânico histérico, entre soluços e gritos estridentes, teve seus dedos em carne viva por tentar, atabalhoadamente, levantar a tampa do bueiro no canto da calçada, logo após a esquina, a despeito dos pedidos de Amélia para que ela não fizesse tal asneira. Acompanharam a pobre mulher até em casa que depois recebeu a visita de um médico. Enquanto isso a história foi levada à polícia que iniciou seu trabalho.

Cristina não esperou notícias no primeiro dia após o acontecimento. Mesmo a base de calmantes, não conseguiu pregar o olho um segundo sequer durante toda a noite e o sol, quando nasceu, a pegou de pé no centro da sala. Não esperou notícias no segundo dia. Precisava de mais calmantes para manter algum controle e a imagem daquela esquina não abandonava seu pensamento um segundo sequer. Não, a polícia não seria capaz de solucionar o caso, não haveria pés na porta de um cativeiro qualquer num canto ermo de uma outra cidade, seqüestradores presos sob holofotes da imprensa, entrevistas com mãe e filha sorridentes novamente. Assim falou o médico, assim acreditava Amélia, acreditavam todos os outros. Mas Cristina sabia que isso não aconteceria. Vira a menina sorrir, como quem sorri para um palhaço paramentado, com maquiagem e roupas coloridas, e correr para brincar ou receber um doce de presente. Vira o interesse da menina e como brilhavam seus olhinhos num último instante antes dela sumir pelo bueiro que se fechou como uma válvula de pressão. Mas a criança não sorriu para um palhaço colorido. Artistas não entram bueiro adentro, não desaparecem como gás no ar. Palhaços possuem apenas um rosto, mesmo que esteja pintado de branco e com um grande sorriso vermelho impregnado de tinta brilhante sobre a boca. Possuem dois braços e jamais seria possível ver através deles mesmo que durante um átimo. Não falam com você sem abrir a boca, não te explicam um milhão de coisas em apenas 2 segundos sem, nem mesmo, possuir uma boca. Todos os palhaços têm boca. Todos eles. Não são capazes de levantar uma criança a mais de dez metros de atura e então escorregar com ela através de um bueiro imundo utilizando patas que acabaram de ser criadas sob sua estrutura demoníaca fazendo com que a tampa do bueiro, como que obedecendo a uma ordem indizível, se fechasse logo atrás deles sem fazer qualquer ruído. Palhaços não possuem aquele cheiro, não. Nem bueiros. Tampouco esgotos. Nada nesse estranho mundo onde vivemos possui aquele cheiro. Cristina sabia disso.

O terceiro dia trouxe chuva e algum frio consigo, apanhando Cristina exausta, com uma caixa de calmantes vazia ao lado, de pé na sala onde cortinas decidiram-se ficar cerradas. Perdeu alguns quilos ainda na primeira semana e quase a sanidade. Passou a sair raramente de casa, recebia a visita esporádica dos pais e evitava as pessoas do lugar, imaginando que a ausência poderia pulverizar o acontecimento como vapor no ar, roubar das bocas e ouvidos a estranha história do seqüestro de Juliana. Seqüestro. Como as conexões feitas em uma antiga mesa de telefonista, dessas que Amélia usava em seu trabalho de meio expediente, que ligam pessoas que desejam conversar tão rápido quanto um estalar de dedos, a história saiu da boca de Amélia e entrou no ouvido do Ademar. Lá dentro, permaneceu durante algum tempo, sendo digerida por sinapses, avaliada por neurônios, medida pelos encéfalos, até que numa roda em seu magazine, onde o álcool era sorvido generosamente, saiu da boca de Ademar, entrando em diversos ouvidos ao mesmo tempo. E assim, como um chaveiro é capaz de se encher de chaves rapidamente, a história correu vizinhança adentro. Naturalmente, cada boca e cada ouvido pelo caminho a contavam e a ouviam segundo as próprias afinações: seqüestro - A menina fora raptada por turistas alemães que provavelmente a venderam em um leilão nalguma parte da Europa. Desaparecera dentro de um carro em alta velocidade, que ainda circundou a praça cheio de gente drogada, pessoal de Lavoura Grande, 30 Quilômetros pro sul. Juliana havia caído num bueiro, quebrado a espinha, por descuido da mãe, que inventou, junto com Amélia, essa história descabida de seqüestro.

Cristina não falara com mais ninguém, além de Amélia e dos pais o que testemunhara. Foi detalhada com seus parentes, com Amélia ficou apenas a exasperação do momento em que ocorreu a tragédia. A telefonista acreditava na versão de seqüestro e debitava do grande impacto emocional porque passava a mãe da garota, a história do bueiro. Mas Cristina apostou na coisa do “tempo que leva tudo consigo” e preferiu recolher-se, dentro do apartamento térreo, com suas pílulas calmantes azuis e cortinas pesadas como cobertores.

Perdeu mais alguns quilos na segunda semana e conseguiu estar mais magra ao fim do primeiro mês. Continuava acreditando que esqueceriam a história logo ou tão logo alguma coisa nova acontecesse. O início da temporada de futebol ajudaria, sem dúvida. E talvez tivesse acontecido desta maneira.

Depois de mais tempo, os sulcos na face, a expressão de manequim de cera e a vontade de coisa alguma permaneciam, como patrimônio anexado, mas a história toda tomava ares de um sonho ruim. Um enorme pesadelo que possui o poder de vascolejar com nossas vísceras de tal maneira que a sensação nos acompanha por horas ou dias continuamente, mas, numa bela manhã, vai embora como chegou. Sem aviso. Como uma nuvem é soprada pra longe pelo vento norte. E mesmo mecanicamente, tomava a rotina de volta. Um pesadelo. A diferença maior era o vácuo, o espaço, o enorme vazio, talvez tão grande quanto o existente entre os planetas que compõe nosso sistema solar, deixado pela pequenina Juliana.

E após um dia de rotina quase normal, Cristina deitou o livro que lia de lado, por sobre o lençol branco da cama. Com um movimento da mão direita, livrou seu nariz da companhia impertinente da haste dos óculos para leitura. Voltou o corpo para mirar o relógio que descansava na cabeceira de sua cama, obediente, com o compromisso de sempre mostrar as horas, diariamente, e nunca dar a mínima para elas. Onze e quarenta da noite, havia desconfiado da hora adiantada, os olhos iniciavam uma pequenina revolução, ardendo de leve, desejando sono brevemente. A mulher deitou de costas e assim permaneceu algum tempo, fitando o branco amarelado do teto antes de levantar e caminhar em passos lentos até a cozinha. Seguiu o corredor escuro, passando pelo banheiro e acendendo a luz quando dobrou à esquerda dando de cara com o fogão. Apanhou em cima dele a chaleira que encheu com água da torneira, devolvendo-a sobre a mesma boca onde descansava, acendendo o fogo antes disso. Pensava estar sob cobertas em menos de 10 minutos, após o chá preto. Um ruído de motor entrou pela janela da sala, chegando até onde estava, abafado, afastando-se. Talvez o décimo automóvel do dia. Afora isso, o apartamento mergulhava num silêncio escuro desde a tarde. Florêncio e sua velha senhora eram de fato discretos, quase nunca se ouvia ruídos, sequer rumores dos vizinhos acima, difícil adivinhar quando estariam ou não em casa. E Cristina lembrou-se do rosto suave do Florêncio, enquanto aguardava a água ferver, moreno como um índio Caiçara, os sulcos da idade como rios cortando a face. Recordava o quanto ele tentou ajudá-la e, mesmo sem nada poder fazer, o rosto manso do velho conseguia aplacar determinada angústia. Pensava nele e na mulher quando escutou alguma coisa. O automóvel já desaparecera por alguma rua próxima e nenhum outro se anunciara. Apurou o ouvido, virando o rosto de encontro à porta da cozinha, que trazia os barulhos provenientes lá de fora. Pensou ouvir algo vindo do corredor da casa, logo entre a sala e a cozinha, ou lá para dentro. Da janela do quarto? Não, encontrava-se trancada. Ela mesma tivera o cuidado de fechá-la antes de iniciar a leitura. A da sala estava aberta, apesar das cortinas cerradas. Como outro ruído chegou até seus ouvidos, decidiu caminhar até lá, até a sala, tentando discernir alguma coisa daquele som, traduzi-lo. Algo acontecia, pois a pele havia arrepiado devagar, como se cada pelo do longo braço decidisse eriçar-se por conta própria, atendendo a uma vontade singular. Talvez aquele velho radar feminino houvesse se ligado e pusera-se a funcionar sem nenhum consentimento explícito. Caminhou até a sala e lá se pôs de pé atrás das cortinas fechadas de seu apartamento térreo de quarto e sala, no final da Rua Moinho, esperando ouvir novamente o som que chegou até seus ouvidos quando ainda encontrava-se na cozinha. Gostaria de descobrir que alguém assistia televisão com som alto em outro apartamento próximo ao seu, ficaria contente ouvindo uma conversa animada de um casal voltando pra casa depois de um passeio e dois Milk shakes no Rick´s, adoraria saber que um décimo primeiro automóvel mantinha o motor ligado logo ali perto, enquanto o motorista esticava as pernas cansadas dando baforadas esfumaçadas num longo “king size” com filtro branco mirando as estrelas no céu. E, ali atrás das cortinas pesadas, a alguns metros da calçada de cimento cinza, ouviu novamente. O corpo tremeu, quase saltou adiante. O ruído não estava lá fora. Florêncio não mantinha a TV ligada alto demais, o casal jamais passou, não existiam automóveis com motores em marcha lenta. O ruído veio do interior da própria casa, do corredor que leva a sala, que vai até a cozinha, do corredor onde está a porta do banheiro. E desta vez parecia algo mais inteligível. Algo que ela temeu discernir, um som que parecia mais apavorante que a voz do próprio demônio. Um grande jorro de adrenalina inundou as veias de Cristina, e os joelhos quase se desmancharam fazendo com que ela perdesse sustentação e desmontasse como um boneco num show cômico. Decidiu não acreditar naquilo, os nervos ainda não estavam de todo refeitos do choque que a apanhara e, talvez, jamais estariam novos em folha novamente. Empertigou-se, tomando uma grande quantidade de ar que apanhou numa grande inspiração e iniciou o caminho de volta à cozinha. Tomaria uma xícara de chá quente, fecharia os olhos debaixo das cobertas e amanheceria novamente. Como sempre, a luz do sol trazendo alguma paz. Contudo, ao dobrar o corredor e enxergar a porta da cozinha e a luminosidade que emanava do interior, ouviu – de novo. Claro, nítido, um som que seria capaz de roubar pra sempre a sanidade que mantinha guardada com tanto cuidado lá na porção mais escondida do cérebro. Era da cozinha. A água fervente pregou-lhe uma peça, a chaleira deve ter chiado com a água que entrava em ebulição. Andou mais rápido e antes de entrar na cozinha, ouviu novamente e não vinha de seu interior. Não era a maldita chaleira guinchando com o calor. Desta vez teve certeza, pois estava mais próxima e percebeu de onde vinha o som. E constatou que havia entendido perfeitamente o que era, formava uma palavra, uma palavra medonha, um fonema que, acreditava, nunca mais seria dirigido à ela. A mão enregelou, os dedos se fecharam fortes numa reação que ela não era capaz de controlar, temeu perder os sentidos, sentia o sangue fugir para algum lugar desconhecido do corpo, fazendo com que os órgãos vitais ficassem completamente dormentes em pouco tempo. Quase correu em direção ao banheiro, mas não reuniu coragem para acender a luz quando alcançou a entrada. O som estava lá dentro. A palavra que ouvia em intervalos quase constantes, repetiu-se:

- Mamãe...

Não conseguiu acertar com os dedos o interruptor da luz nas duas primeiras tentativas. Na terceira vez, ao escutar o “clic” tímido do pequeno botão branco, imaginou que o tempo passado entre o ruído e a luz atingir seus olhos foi o equivalente a uma eternidade, dois mil e cinco anos, pelo menos. Mas assim que a claridade iluminou o pequeno recinto do banheiro, estranhamente, de alguma forma bizarra contrária ao intelecto que ainda teimava funcionar, Cristina acreditou, mesmo que por instantes, encontrar sua menina de pé no interior do banheiro ou do box de banho, esperando a mãe acender o aquecedor novamente para que pudesse lavar-se. Não havia nada nem ninguém. O coração disparado como o puro sangue campeão quando se abre a coxia. A sensação de loucura e impossibilidade aumentou, fazendo com que as mãos procurassem automaticamente uma pequenina pílula azul no bolso dianteiro de seu robe que foi enfiada goela abaixo. Nada, ninguém. E de repente...

- Mamãe...

Cristina deu dois passos adiante, cambaleantes, incertos, os pés pareciam moldados em um material mais pesado que chumbo e as articulações dos joelhos construídas em cristal delicado. Decidiu acreditar que passava por alucinações, resultado de uma estafa mental, remédios, depressão. Mas, ainda assim, apoiou o braço direito na louça da pia branca e olhou diretamente para o centro, para o ralo da pia, que devolvia-lhe o olhar, como um ciclope. Não, não acreditaria naquilo, não depois de tudo. E novamente:

- Mãeeeee....

Agora pareceu uma súplica. Cristina, ainda apoiada com a mão direita na louça, abaixou o rosto, colando o ouvido no ralo. E então: - Mãe, você consegue me ver?

A mulher abafou o grito, que se formou como um furacão no hemisfério norte, com as duas mãos. Do fundo do ralo, bem no centro da pia. A filha chamava pela mãe, com uma vozinha entre suplicante e duvidosa, do fundo do ralo da pia do banheiro. A luz no teto pareceu apagar, tudo escureceu rápido. Muito rápido.

***

Encarava Rui como quem encara um enigma. Sua fisionomia transtornada, o suor porejando na testa, as mãos trêmulas e ainda mais amarelas. Meu amigo encarava a praça e parecia nem perceber que eu ainda continuava ao lado, sentado. No cantinho do meio fio, ao lado dos sapatos pretos de cadarço fino, jaziam oito garrafas vazias. Outras oito perto de meus pés em tênis azuis. O sol baixava rápido, uma brisa gelada anunciava a entrada da noite em breve.

- Acredita nisso? – Perguntei tentando chamar a atenção de meu amigo.

- Não tenho escolha, meu caro.

- Não acha que está baixando a guarda? Não faz seu estilo.

- Estilo? Se algum dia possui coisa parecida não sei onde se enfiou – Encarou-me. O olhar perdido, por alguns segundos, pareceu ganhar vida novamente, as pupilas

dilataram e então, contraíram-se logo após. Não tenho escolha, compreende? Você entende o que digo? Não posso escolher entre crer ou não na história que me contou Cristina. Além do mais, não é tudo. Não, o inferno ainda não acabou.

Rui levantou por instantes, entrou no magazine, serviu-se de mais duas garrafas. A voz já se mostrava pesada, falava como se tivesse enchido a boca com um tufo de algodão hidrófilo. As pernas já não davam passos tão certeiros, bambeavam de leve. Retornou.

- A pobre mulher acordou com o sol nascente. Deve ter ficado umas 6 horas inconsciente no chão gelado do banheiro. – Rui falou com a língua pesada. – Quando acordou, preferiu fingir que nada havia acontecido. Decidiu não falar uma droga de palavra a ninguém sobre o soturno chamado que ouvira subir pelo ralo da pia do banheiro. Aumentou por conta própria a quantidade de pílulas azuis que ingeriria durante o dia, pensou que seria melhor ser dopada a louca. Mas nem mesmo uma maior quantidade de calmantes foi capaz de impedir que Cristina, na noite seguinte, ouvisse Juliana novamente, lá no fundo da pia. Pensou ter visto algo também. Algo que ela não foi capaz de explicar, enfim... Desta vez não desfaleceu. Simplesmente travou uma conversa com a filha, trocou umas frases com a menina, que respondia lá do fundo do ralo. Na noite seguinte, a mesma história novamente. E em determinada noite, a menina não estava sozinha. Cristina foi capaz de perceber isso. Alguém ou alguma coisa parecia falar junto com Juliana, ou ainda, ditar ao ouvido o que a garota falaria pra mãe. Merda! A menina não tava sozinha, entende? Ou não era ela que estava lá. Ou ainda era, mas algo também estava, além dela, algo além da filha de Cristina. Uma desgraçada coisa qualquer. Quer dizer, não era possível, nada deveria ou poderia estar naquele desgraçado de lugar travando conversa com uma mulher de meia idade durante a noite, isso não tinha nenhum tipo de cabimento, Cristina acertou dentro da cabeça, isso não possuía nenhuma chance de ser verdade. E em determinada noite, a mais escura e fria até então, numa maldita noite, quando Cristina mantinha um tênue fio de sanidade que segurava seus pés colados no chão deste mundo que conhecemos, ela ouviu novamente. A filha a chamou no banheiro e não estava lá no fundo sozinha. Definitivamente. Juliana disse: - Mamãe, papai tá cuidando de mim. Eles trouxeram papai. Ele veio. Papai veio. Às vezes briga comigo. Mas cuida de mim. – E Cristina ouviu algo como “vem comigo agora, filha”. E era a voz do marido. Do desgraçado que havia abandonado a mulher e estava lá embaixo junto com Juliana, pelo menos a voz era dele. E além dos dois, alguém mais. Por todos os demônios deste desgraçado mundo, ela ouviu tudo pelo ralo da pia do banheiro.

Rui parecia bastante descontrolado. A história e a fila de garrafinhas vazias mexeram definitivamente com o espírito do meu amigo. Dava a impressão que cairia desfalecido na calçada, o rosto tornara-se alvo como um lençol novo em folha.

- Meu Deus, Rui. Isso não passa de uma história, uma desgraçada de história triste, uma mulher com alucinações, pois perdera marido e filha em circunstâncias difíceis, quer dizer, qualquer um poderia passar por isso. Uma desgraçada de história triste, ninguém deseja enlouquecer, não é isso?

- Não. Acho que ninguém deseja enlouquecer. – Rui falou virando o corpo em minha direção novamente. Os olhos eram duas bilhas negras boiando num branco-amarelado. – Ninguém quer jogar pôquer com Napoleão naquele sanatório municipal, ninguém.

“Você sabe que o medo é capaz de matar uma pessoa, não é?”.

A frase espocou em minha cabeça de repente.

- O que foi feita dela, afinal?

- Cristina foi encontrada, numa manhã de sol claro, sentada, com as pernas cruzadas como um monge Tibetano, de fronte a sua casa. O olhar estava perdido, embotado. Deve ter ingerido um quilo daquelas coisinhas azuis que o médico passou a receitá-la. Não dizia coisa com coisa. Os pais foram chamados e levaram a mulher.

Passou por um tratamento, não deseja, jamais, voltar aqui. No dia em que a encontraram fora de órbita, foram até o apartamento, as portas estavam escancaradas. Havia diversos sacos de cimento vazios espalhados pela casa, colher de pedreiro, sacos de areia.

Cristina trabalhava a alguns dias, tratando de entupir todos os canos da casa com cimento. Meu Deus, você é capaz de entender isso? Cimento. Em todos os malditos canos do desgraçado do apartamento. A mulher tentava abafar as vozes demoníacas que subiam do esgoto e entravam dentro de casa com cimento. A levaram. Ela recuperou-se, mas não deseja voltar aqui. E deixou a grande pechincha do ano pra trás. É claro que nenhum pobre idiota desta cidade sequer possuí remota idéia do porque, de qual o grande motivo que fez com que Cristina entupisse todos os canos do apartamento com cimento virado no chão da sala, tomasse um caminhão de tranqüilizantes e sentasse diante do prédio, balançando devagar o tronco pra frente e pra trás, com as longas pernas cruzadas diante do corpo.

“Ou mata lentamente, com doses diárias, que minam nossas forças, roubam nossa vida aos poucos...”.

- E como chegou a conhecê-la? A mulher nunca esteve na frente das negociações, digo, quando você comprou o apartamento onde ela pirou enquanto morava. – Sentia-me agora ansioso, com uma ponta de angústia estranha, preocupado com Rui e, não sei por que, comigo mesmo.

- Fui atrás dela. Consertei a porcaria dos canos entupidos, puxa vida, aquilo deu trabalho. Mas não estava exatamente preocupado com eles. Afinal, o preço foi bastante atraente. Inferi que um apartamento com encanamento naquele estado merece realmente custar pouco. Aquele não me custou pouco. Custou muito pouco – Rui apoiou os braços na calçada, atirando-os pra trás, jogou o corpo trêmulo como se fosse deitar, quase perdeu o equilíbrio – Acho que não tenho mais idade pra nocautear tantas dessas – apontou para as cervejas vazias. - Procurei por Cristina. Não tive escolha. Sabe quando alguém quer se desfazer de algo, alguma coisa que causa repulsa, trás más recordações ou ainda não interessa mais de forma alguma? Acho que foi o que aconteceu com o maldito apartamento. Desejavam se ver livres daquela coisa maldita, por isso, além dos entupimentos, é claro, o preço arrastou-se no chão. E então, um belo dia, quando já morava lá dentro durante algum tempo, decidi procurar a pessoa que viveu lá antes de mim. Tive um bom motivo pra isso, não gostaria de ter de fazê-lo, pensava apenas em continuar minha vidinha simples, minha rotina desinteressante. – Rui parou por um instante cerrou os olhos, respirando fundo antes de prosseguir - Você imagina conviver com vizinhos de um andar de baixo, morando num apartamento térreo?

A pergunta de meu amigo pegou-me de surpresa. Uma sensação glacial, como quando passamos horas ao sol e mergulhamos no mar gelado percorreu todo meu corpo, iniciando-se no plexo solar. Não, eu não imaginava. Definitivamente.

- Fala de ratos e baratas, não é?

- Refiro-me à coisa, a toda desgraçada coisa. Falo dessa maldição que quase roubou a sanidade e por que não dizer, a vida de uma pobre mulher sofrida. E de alguém mais. Nossa vida e nossa sanidade são alimento pra eles, sei disso.

Os olhos de Rui pareciam querer fechar. Desta vez perdeu o equilíbrio, um dos braços, que apoiavam seu corpo arqueado pra trás, escorregou e ele caiu esticado de costas na calçada. Levantou-se, com alguma ajuda de minha parte e foi quando vislumbrei uma tímida tentativa de sorriso esboçada pela parte inferior dos lábios finos.

- Pena, gostaria de tomar mais algumas. Mas acho que preciso dormir. Foi-se o tempo em que beberia mais dez antes de ter que ser levado pra casa, como um garoto fujão.

- Não tem problema, camarada. Posso fazer uma escolta até tua casa sem nenhum tipo de constrangimento – Falei isso auxiliando Rui a levantar-se e ficar de pé da melhor maneira que consegui. Não sou exatamente forte e ele não é exatamente magro. Tomamos a direção da casa dele e ainda pude ver Ademar saindo de dentro do magazine, que já mantinha a porta semi-cerrada, para fazer o rescaldo das garrafas que esparramavam no meio fio. Foi apanhando uma a uma, enchendo um grande saco plástico que trouxe consigo. Andamos devagar, meu amigo trocando, de leve, as pernas. Apesar da quantidade de álcool que ingeri não me sentia mal, não percebia o efeito da bebida no organismo. A conversa com ele na calçada parece ter injetado na corrente de sangue que corre por minhas veias um tanto de adrenalina que aplacava a sensação que poderia ser causada pelo álcool. Rui falou sério, tão sério como nunca havia visto falar em toda a minha vida e isso me deixou completamente amedrontado. Pela história em si, por meu amigo. Amedrontado por Cristina. Pela maldita cidade, por mim e por tudo o quanto sempre acreditei, desde o tempo que deixei de borrar as calças.

Caminhamos até a casa dele, devagar e em silêncio. As pernas de Rui trêmulas, como bambu ao vento. A noite desceu rápido.

***

Depois de apanhar as chaves do pequeno apartamento térreo no bolso da calça de meu amigo, abri a porta com certa dificuldade. Apesar de algumas visitas ultimamente, não entrava no apartamento dele desde muito. Encontrávamo-nos na praça, na calçada, ali por perto. O interior era escuro como breu e as cortinas permaneciam obedientemente cerradas. Carreguei-o até o quarto, tateando o caminho e ajudado por minha excelente memória, onde depositei o corpo pesado sobre a cama. Braços, pernas e músculos não apresentavam nenhuma resistência. Dez segundos depois dormia sono solto, roncando baixo, exalando um leve odor de álcool e transpiração. Permaneci ao lado da cama por alguns instantes, simplesmente contemplando o sono etílico de Rui, tentando imaginar que tipo de sonho viera visitá-lo, procurando discernir, na escuridão do quarto, detalhes que fazem de cada casa um lugar particular e único. A comoção causada pela conversa na praça ainda não abandonara meu corpo, insistia em meus pensamentos. Mais sinceramente: cresceu a partir do instante em que coloquei os pés dentro do maldito apartamento. E no escuro, vislumbrando o contorno indistinto de Rui esparramado sobre uma cama desgrenhada, o alvo das paredes querendo realçar-se na ausência de iluminação, o silêncio sólido, palpável, senti um desconforto descomunal. Pensei não conseguir mover novamente minhas pernas e ter que ficar para sempre enclausurado naquela escuridão que jamais seria luz novamente. Temi tentar mover os membros e simplesmente não conseguir, receei esticar o braço e não alcançar nada nem ninguém a minha volta, nunca mais. Mas isso não aconteceu. Depois de uma última vislumbrada na cama, volvi o corpo e dirigi-me a sala, onde procurei, titubeante, o interruptor da luz. Quando finalmente a acendi, meu estado piorou. A claridade não trouxe apaziguamento, mas inquietação. Era uma lâmpada fraca e amarelada, suja pelo tempo. A luminosidade que tomou conta da sala era doentia, hepática, de alguma forma, escura. E a coisa não era bonita de se ver. Ao entrar com meu amigo a tiracolo, não percebi, nem tive tempo pra isso, tudo a minha volta. A própria escuridão impediria. Mas a claridade doentia da lâmpada isenta de lustre trouxe alguma realidade até meus olhos cansados e não era bonita de se ver. Pelo contrário. Não diria que alguém morava naquela espelunca olhando o estado geral da sala. Afirmaria, sem medo de errar, que ninguém entrava ali há algum tempo. Parecia um destes apartamentos que visitamos quando estão à venda, onde a poeira chega a ganhar dois dedos gordos de altura, não existem móveis ou os que restaram estão jogados e estragados num canto, a pintura é como a primeira página de um jornal de 1950, amarela, amassada, fatigada. Existe algum lixo disperso aqui e ali. Ao contrário de pena ou preocupação, senti medo. Muito medo. Estava completamente apavorado, assustado até o íntimo, os músculos de minhas costas retesaram-se, minha espinha chegou a doer com o espasmo que percorreu desde o dedo do pé até o cimo de minha cabeça, como um choque elétrico de 220 volts dentro de água gelada,

“ninguém deseja enlouquecer, não é isso?”

uma ponta de suor gelado desceu da minha testa escorrendo pela lateral do rosto, por um segundo quase desfaleci e meu pensamento se tornou confuso, um turbilhão sem nexo englobando todas as conversas que já travei em toda minha vida, tudo o quanto já vivi até hoje, todos os malditos dias que já estive vivo. Nosso colóquio, somado a visão surreal e hedionda daquela maldita sala de um apartamento que parecia abandonado desde a década passada, aterrorizaram-me de uma maneira que desconhecia. Tornei o corpo e encarei a porta de saída, seria o melhor que poderia ter feito, arrependo-me de não prosseguir com minha intenção. De modo contrário, voltei novamente a fitar a sala desolada e o corredor que leva ao interior da casa. Uma pequena porção da porta da cozinha era visível e decidi andar até lá. Se o que me inquietou na sala foi suficiente para desestabilizar os nervos, na cozinha a coisa apenas piorou. Preferi não acender a luz. Assim que me postei na porta, algo saiu correndo pelo chão escondeu-se em algum canto. Uma ratazana? Panelas jaziam dentro da pia que acumulava uma água negra como esgoto a céu aberto, existiam outras panelas no chão, cheias de comida, azeda pelo cheiro que emanavam,

“nossa vida e nossa sanidade são alimento pra eles, sei disso”

o chão estava úmido, ensebado e várias baratas negras, com suas patas grossas e carnudas, escondiam-se da claridade baça que vinha da sala. Decidi que não precisava e não agüentava mais testemunhar aquele espetáculo repelente. O medo, adicionado ao asco, faziam com que o estômago fosse tomado por embrulhos espasmódicos e pensei em correr até a saída, sumir dali bem depressa. Foi então que escutei algo capaz de rivalizar com tudo até então. E o som veio do interior da casa:

- Rui, é você?

Do corredor onde mantinha-me de pé com dificuldade, virei rápido o pescoço, reflexivamente, encarando todo o interior da casa, as portas do quarto e do banheiro logo adiante. Não existia ninguém, nada por ali. Meu amigo deveria estar derramado sobre a cama dormindo um sono cansado e não era simplesmente plausível alguém mais no interior daquele terrível lugar. Andei até o quarto, passando pela porta do banheiro. Não saberia explicar exatamente se me perguntassem, mas algo estava acontecendo, “Cristina disse que a coisa simplesmente não estava certa e um medo, uma sensação de um terror jamais experimentado por ela tomou conta de todo o corpo...” alguma coisa muito errada, daquele tipo de enigma que preferimos não dar conta, não conhecer, evitar a todo custo. Ao atingir a porta do quarto onde, minutos atrás havia largado o corpo pesado de Rui bem em cima da cama, perdi definitivamente a força que me mantinha de pé e por instantes caí sobre os joelhos fazendo estalar minha patela (depois vim saber que quebrei um dos joelhos) e roubando o resto de luz que emanava fracamente da sala. Meus olhos escureceram, quase perdi os sentidos mas antes disso eu vi, e desta vez com meus próprios olhos. Testemunhei essa coisa e ninguém soprou a história em meus ouvidos numa roda de bar, nenhuma Dona Amélia da atualidade veio fofocar besteiras inverossímeis jurando verdade num Domingo depois da missa. Gostaria muito de poder escolher, voltar o tempo e naquele instante em que fiquei parado no centro da sala, vacilante, decidindo entre ir embora e checar a porcaria do apartamento, ter saído rápido pela porta e nunca mais pisar naquele chão novamente. Rui jazia deitado na cama, com o ventre apontado pra cima, no chão, em volta da cama, lençóis e cobertas jogadas a esmo. E rodeando a cama, no interior do quarto, junto com meu amigo que dormia profundamente, por instantes que me pareceram séculos, vislumbrei outras pessoas. Ele não estava sozinho, meu Deus! Por tudo o que já presenciei até então, ouso admitir

“sabe que o medo é capaz de matar uma pessoa, não é?”

que jamais senti tanto pavor, não conhecia o medo, nunca havia sido apresentado ao terror. E ele é grande. É maior. Maior do que nós, vai além. É capaz de matar. Sim. Ele é capaz de matar e julgo que poderia ter sido vítima fatal e não sei por que ainda continuo vivo. Uma criança. Meus deus era uma criança. Eu vi uma criança, uma menina de tenra idade. Dois homens e algumas mulheres. Estavam rodeando a cama onde Rui dormia e nem deram atenção a minha presença, parecem não ter-me notado, olhavam fixamente para meu amigo e, em seus rostos hediondos, cadavéricos, a face parecia dançar. Mudar. As expressões eram indizíveis, como se cada ser daqueles assumisse diversas identidades. Uma criança, por todos os Deuses deste mundo, uma criança cuja face poderia ser a de Juliana. Pareciam organismos incorpóreos, translúcidos, fui capaz de ver através deles. E havia mais alguma coisa. Algo estava ali com aquelas pessoas, ao lado de Rui. Talvez o próprio demônio. Ou o enviado deste, um arquétipo de todo o mal, a presença mórbida do medo mais ancestral e puro que já existiu, encorpada numa visão que remete aos portões do próprio inferno. E fundiam-se em um só ser, cuja extensão prosseguia através do quarto, passava sob meus pés, porta a fora e entrava no banheiro. Fui capaz de perceber, durante minha fuga desabalada, que aquela extensão incorpórea e maldita saía (ou entrava) do ralo da pia do banheiro. Por todos os demônios deste mundo, algo que nascia no interior do submundo do maldito e asqueroso encanamento de esgoto, projetava-se pra fora, serpenteava pelo corredor da casa e testemunhava o sono medonho de meu amigo Rui lá no quarto.

***

Lembro que corri tanto quanto fui capaz e tanto quanto minhas pernas agüentaram. Sumi dali, deixando a porta escancarada e minhas calças borradas. Hoje não visito mais meu amigo e a calma da praça com a luz do sol surgindo por detrás das árvores no início do outono trazem-me saudades. Rui também. Mas acertei comigo mesmo que não voltaria mais àquele lugar. Às vezes penso em me converter para alguma religião que seja capaz de me livrar dos pesadelos que passei a ter durante as noites mais escuras e frias, quando acordo pensando que algo ou alguém estava a me fitar enquanto dormia, mas não sei se é o mais adequado a fazer. De qualquer forma, evito com todas as minhas forças, pisar em qualquer bueiro que esteja em meu caminho e pretendo jamais morar em apartamentos térreos, a despeito do que achem as pessoas com quem convivo.

FIM

Marcelo Santoro
Enviado por Marcelo Santoro em 01/08/2005
Código do texto: T39382