O colecionador de crânios.


     A chuva lá fora caia como se fosse o último dia do dilúvio, até que Kátia gostava de dormir com o barulho da chuva, mas agora aquilo já estava incomodando, chovia há mais de três dias, com água por todo lado, alagados na rua e na garagem, ainda por cima, havia aquela goteira infeliz no quarto de hóspedes, estava estragando o piso.
         O marido havia tomado umas cervejas (quer dizer), todas, e dormia pesadamente no sofá com a sua barriga virada de lado e a cabeça com a boca babando do outro, roncando feito um mastodonte, bebeu tanto no churrasco, Jesus! Já tinha prometido parar de beber, o cardiologista avisou sobre o colesterol e a glicose. Parava nada! Bebia, enchia o rabo, depois caia no sofá, dizia com a cara mais limpa “tá na hora do jornal”, dois minutos depois estava roncando.
          O gato de Kátia havia sumido. Max, “onde estava aquele menino?” Pensou Kátia, ela tinha medo dos sumiços do Max, ultimamente acabava sempre aparecendo no terceiro andar. Kátia nem queria ouvir falar em terceiro andar, tinha arrepios só de pensar.
A estória louca da tal Catarina Kolher, ela era uma arquiteta famosa, mas começou a usar drogas, decaiu muito, andava suja, roubava as coisas da casa, o marido descobriu e foi embora, pediu a guarda dos filhos, a ação ainda estava em andamento quando aconteceu a tragédia. Um dia, ainda na época que se usava botijão de gás, um escapamento matou os filhos e a mãe dela. Foi uma confusão danada, deu polícia e tudo, ela foi culpada pela comunidade, o marido de Kátia, escrivão de polícia, e a vizinha do segundo andar Camila tiveram grande participação na condenação, juntaram provas e fizeram uma reunião do condomínio para acertar o depoimento para o delegado, queríamos cadeia para a louca. Foi para uma clínica psiquiátrica, no julgamento, revoltada e enlouquecida, jurou fugir e matar todos. Cruz credo, por quê estava pensando naquilo?
         Kátia pegou a velha lanterna na gaveta do armário da cozinha, já que a porcaria do terceiro andar não tinha luz. O prédio onde morava tinha três andares, um acidente em uma obra do 302, que foi vendido para pagar as despesas de Catarina na clínica, levou ao desligamento da luz do terceiro andar temporariamente. Ligou a lanterna e subiu devagar os degraus, passou pelo alegre segundo andar, ali moravam dois vizinhos normais, a senhora Camila, uma portuguesa solitária, muito amiga de Kátia, e o casal de Médicos, onde Kátia achava que ela, a tal da Dra Marlene, era sapatão. O Problema estava no terceiro andar.
         É o que dizem por ai, “toda fofoca tem um fundo de verdade”, aquele homem, era gótico, vivia de roupa preta e saia toda noite, isso é normal? Não deveria morar ali no prédio, e ainda por cima mora na porcaria do terceiro andar. -Pensou quando chegou perto da grade que separava a escada do corredor.
         No 301, morava um rapaz que só saia a noite, usava uma roupa toda preta, se dizia gótico, Camila, a vizinha do 201, dizia que ele era o assassino da cabeça, “o colecionador de crânios” – Kátia se arrepiava só de lembrar a estória do colecionador de crânios, que estava em todos os jornais, um assassino que andava a solta na cidade, matava e retirava a cabeça das pessoas. – Camila achava que Alberto, o morador do 301 era o colecionador, Kátia, já tinha outra opinião, achava ele charmoso, nas poucas vezes que encontrou no corredor ele era muito educado, comentava sobre a roupa de Kátia e sempre falava sobre a sua perda de peso. Era um rapaz muito bonito, olhos verdes e sorriso encantador. Disse que era segurança licenciado de uma boate por isso trabalhava a noite, Kátia disse a ele que não estava perguntando, nem nada, era só que deveria ser difícil trabalhar durante a noite, afinal a noite foi feita para dormir. Ele disse que não trabalhava toda noite, usava a noite às vezes para se exercitar, ela disse que ele estava sarado, ele disse obrigado, sorriu e subiu as escadas, quando encontrava na portaria era sempre assim, com Kátia ele trocava algumas ideias, com os outros apenas duas palavras.
         -Max, vem cá bichano – chamou Kátia.
         Como sempre a lanterna não funcionou. Teve que andar na escuridão, no momento que dá o primeiro passo, uma mão toca o seu ombro, Kátia grita.
         -O que você esta fazendo aqui em cima? –Pergunta Camila que vestia uma camisola antiquada.
         -Você quer me matar de susto – disse Kátia. – Sua mão está fria – disse abrindo a grade – eu vim buscar o meu gato.
         O miado do gato veio do final do corredor, Camila, sempre moderna, apesar dos seus noventa anos, retirou o celular do bolso e foi andando na frente mesmo sem ser convidada, o barulho da chuva era mais intenso, as duas caminharam até a porta do 301.
         -O seu gato está ai dentro – falou Camila com o seu pesado sotaque português.
         O gato miou novamente, um miado longo, depois silenciou.
         Camila girou a maçaneta, estava aberta.
         -Se o homem estiver ai? – Perguntou Kátia.
         -Não está, vi saindo, ele sai para correr a noite, demora algumas horas, sabe que ele corre até na chuva, um assassino bem sarado, não acha? – Podia acreditar em Camila, em matéria de vigiar vizinhos ela era incomparável.
         As senhoras entraram.
         -A i meu Deus, Cruz credo, é Satanás que mora aqui? Olha esse tanto de caveiras? – O apartamento, mesmo com a iluminação precária fornecida pelo celular de Camila era um santuário de osso, somente crânios humanos, pernas humanas, ossos das mãos, dos pés, crânios com cabelos, dentes em prateleiras, centena deles, pilhas de ossos em um canto da sala, Camila e Kátia, apenas gritavam, chamavam por Deus e pelos Santos. A gritaria foi ouvida no segundo andar, os dois Médicos do segundo andar apareceram na porta, com uma lanterna potente, e uma cara de desaprovação Marlene e Afonso, um casal de médicos, falaram em coro: - “Sai daí”. Mas a tonta da Kátia tropeçou em alguma coisa e caiu, acertou a cabeça em uma coisa dura e pontiaguda, cortou profundamente a testa, jorrou muito sangue, o casal de médicos socorreu Kátia, carregando com dificuldade a senhora com quase cento e vinte quilos para o seu sofá, com um pedaço de pano tentavam estancar o sangue, Camila foi chamar a polícia.
         -O que vocês estavam fazendo no terceiro andar? – Perguntou Afonso, pegando a sua maleta e fazendo um curativo no ferimento de Kátia.
         -Meu gato, Max, ele entrou naquele lugar do inferno – disse Kátia. Porém Afonso sorriu.
         -Max vive aqui sabia? – disse Marlene, sentada no sofá.
         -Por que vocês estão tranquilos assim, será que não viram as cabeças espalhadas pelo 301? – Kátia não entendia a tranquilidade dos médicos, havia centenas de ossos lá em cima.
         -Ele é cenógrafo, trabalha com filmes de terror, um artista, diga-se de passagem, um dos melhores que já vi, poderia trabalhar em filmes americanos – disse Afonso – ás vezes vem aqui em casa e pede para a gente dá uma opinião no trabalho dele.
         Marlene levantou e falou revirando os olhos – Vou falar para a louca da Camila, a fofoqueira do prédio, para não chamar a polícia.
         Camila estava na porta, ia falar alguma coisa, mas um machado acertou o seu crânio e dividiu em duas metades, o horror de ver aquilo vez Kátia vomitar, a cabeça de Camila foi partida no meio, o segundo golpe foi lateral, cortou a cabeça separando a mesma do corpo, deixando o sangue jorrar pelas duas carótidas, o que é mais tenebroso, a cabeça rolou pelo chão e foi cair perto da TV, que estava ligada e passava a novela das oito. Com a boca aberta, de tanto gritar, Marlene viu no corredor não foi o cenógrafo do 301 que Camila acusava de ser o colecionador, foi a louca do 302.
Gelada, olhando aquela mulher banhada de sangue e, ainda com a roupa da clínica psiquiátrica , ela numa fração de segundos lembrou de tudo. O prédio inteiro foi depor contra a vizinha do 302, achou que algumas mentiras foram ditas, mas todos estavam inflamados contra ela, afinal era uma drogada, viciada e louca, que quando o marido a deixou, passou a ser o grande problema para os “civilizados” moradores do  prédio. Foram várias vezes que a polícia esteve lá, outras tantas reuniões de condomínio, denúncia ao conselho tutelar, tudo a pedido de dona Camila, que vivia dizendo que a mulher era uma vadia, aquela fofoca só poderia acabar assim. Todos foram depor, liderados por Camila, denegriram a imagem de mãe, e o seu caráter, quando o acidente aconteceu,duas crianças mortas pelo gás de cozinha, Catarina negava, negou até o final. Marlene nem tinha certeza, acidentes acontecem, pensou bem se ia depor, depois foi, não queria ficar contra os vizinhos, afinal ela era uma drogada.
Agora ela estava ali, com um machado na mão para matar todos.
Com Alfredo liderando o grupo, depois de jogar a mezinha de centro na assassina, correram e saíram pela porta da cozinha, a mesinha que tinha um vidro no centro, quebrou com o impacto, e o vidro escalpelou Catarina, que por um minuto soltou o machado, fazendo um corte no couro cabeludo, que retraiu a pele e tampou a orelha esquerda com uma lasca de pele caida cheia de sangue, a visão era assustadora, pois o sangue gotejava pelo cabelo, ela parecia nem sentir. Gritava palavrões e injurias, dizendo que não tinha sido a culpada da morte de seus amados filhos.
Subiram as escadas correndo e tropeçando, Kátia, teve dificuldades pelo seu peso, Catarina acertou o machado no calcanhar de Kátia, abrindo o tendão de Aquiles, o pé foi desconectado da perna e o sangue jorrou imediatamente. Kátia sentiu uma dor tão forte que quase desmaiou, mas o medo é o melhor estimulo, conseguiu entrar e fechar a grade, depois se trancou com a ajuda de Afonso e Marlene no 301.
O Pé de Kátia estava preso pela pele, olhar aquilo, dava repugnância até nos médicos, ela estava suando e com dificuldade para respirar, havia perdido muito sangue.
-Temos que chamar a polícia.
Marlene procurou um celular ou telefone no apartamento, mas não havia, como um ser humano pode viver sem telefone?
Ouviu o machado, Catarina começava a quebrar a porta.
-Será que não tem ninguém que escute esse barulho? – Perguntou Marlene.
-Meu Marido está lá embaixo em coma alcoólico, e os vizinhos do 102 foram para Minas.
Outra machadada, a porta despedaçou.
-Vamos para o banheiro - falou Marlene.
Para Kátia era tarde demais, Marlene e Afonso correram para o banheiro, Kátia recebeu a primeira machadada na cabeça antes deles fecharem a porta. Afonso perdeu sua fé, não rezava, Marlene rezou baixinho, os dois abraçados no banheiro ouviram os gritos de Kátia.
-A nossa única chance é eu enfrentar ela e você correr.
-Não!– disse Marlene.
-Deixa de ser boba, a gente estava quase se separando, ou você não sabe que eu sei do seu caso com a enfermeira?
-Você sabe?
-Caso com mulher a gente não se importa. Não fere tanto a masculinidade, eu amava você.
Afonso abriu a porta e recebeu uma machadada na face, partindo a face lateralmente e depois outra, fazendo um x, quando ia receber a terceira, Catarina foi atingida por três tiros nas costas. Quando se virou, viu o vizinho do 301, hábil atirador, disparou o último tiro na cabeça, entre os olhos da Assassina, que caiu soltando o machado.
-Ninguém invade o meu apartamento.
A polícia chegou logo depois, o marido de Kátia estava morto no sofá, sua cabeça nunca foi encontrada, Marlene foi viver com a enfermeira, depois as duas foram  morar na Holanda, o prédio foi vendido seria transformado em uma padaria.
O homem, que antes morava no 301, que hoje era conhecido,pela mídia, como o  herói da cidade, deu entrevista até na TV por ter salvado a médica, abriu a porta do frízer, e ajeitou a cabeça de Mauricio, depois fechou o frízer, tinha certeza que jamais saberiam que foi ele, afinal ela receberia a culpa por tudo, polícia burra. Colocou a etiqueta  número170 – escrivão -  de sua coleção, a cabeça de Mauricio era  um exemplar raro, quando ele retirou, ele ainda estava dormindo, não fazia um trabalho sujo com o machado igual aquela louca, mas a polícia nunca perceberia, e como herói, estava livre para matar.
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 25/10/2012
Reeditado em 31/03/2013
Código do texto: T3951314
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