O pássaro das sombras
 
 
         -Olha mamãe, é um pássaro – disse Jéssica correndo para perto.
         -Larga isso menina – falou a mãe Telma e puxou a menina pelo braço – deve estar morto.
         -Olha mamãe, ele está ferido – Jéssica, que tinha apenas oito anos, era apaixonada por animais, agachou e olhou bem para o pássaro preto caído, uma de suas pernas estava quebrada e existia um grande ferimento na asa, se deixassem ali provavelmente morreria.
         Telma olhou nos olhos do pássaro, não estava gostando, não tinha um bom pressentimento, mas o que fazer, “tinha que levar a porcaria do pássaro para casa”, pensou, ou que exemplo daria para filha?
         Telma levou o pássaro no veterinário, ele disse que o pássaro iria se recuperar, a veterinária era uma punk de Maria Chiquinha e mastigava chiclete, falou desse jeito :” se fosses vocês sacrificaria o bicho, ele é feio pra caramba”, Jéssica não gostou e disse que supostamente veterinários deveriam gostar de animais, a veterinária disse que aquilo era mito, que só gostava de gatos e acrescentou: essa coisa   precisa  de cuidados. A contra gosto, Telma levou o bicho para sua casa.
         A casa de Telma não estava as mil maravilhas, sua sogra, Adelaide, que tinha Mal de Alzheimer, estava morando com eles, e suas discussões com Marcelo estavam à beira da loucura e da separação. Até um dia antes de a sogra chegar à casa deles, tudo estava muito bem, os dois viviam uma vida normal de casal moderno, o problema não era exatamente a sogra, mas Marcelo queria que Telma fosse uma espécie de empregada, ou fizesse uma marcação homem a homem, onde a sogra fosse a vaca da Telma ia atrás. Resumindo, que Telma andasse atrás da mãe o tempo todo, enquanto ele via seus pacientes, ganhava seus prêmios e dava sua aula, e recebia medalhas, por ser o chefe na ala de psiquiatria do maior hospital da cidade, isso não era justo, ela limpava a bosta do filho e da sogra.
         Marcelo é considerado o melhor psiquiatra da cidade, vive em conferências e palestras, médico e professor da faculdade está sempre muito ocupado nunca estava em casa, para ver a estripulia da sogra e o trabalho que dava o bebê, contratou uma assistente, e o dinheiro, dizia ele, sempre pouco, pois queria comprar aquela clínica, ou aquele apartamento. No dia que chegaram com o pássaro, por incrível que pareça estava em casa, pois a funcionária havia atrasado.
         -O que é isso? – Perguntou Marcelo olhando para a gaiola.
         -Um pássaro preto, ele é muito manso, faz imitações – disse Jéssica – posso ficar com ele?
         Marcelo disse que sim, porém Telma já tinha dito à filha que só ficaria até ele melhorar, Marcelo não perguntava a opinião da mulher, nem o trabalho que daria mais um animal em casa, havia muitas coisas a fazer na casa, já tinham um gato, Zack, gatos não convivem muito bem com pássaros, mas Marcelo não quis ouvir, disse apenas: ”vocês são brancos que se entendam, vou tomar meu café, que tenho que dá um parecer sobre o psicopata da cruz”.
         Marcelo estava cuidando de uma pericia a pedido de um juiz, uma série de crimes horríveis cometidos por um adolescente de dezesseis anos, que matava usando uma cruz de ferro. Não era comum assassinos em série, com idade menor que vinte e cinco anos ou mais, estava na sua última entrevista, o parecer psiquiátrico estava quase pronto, seria difícil, mesmo para crimes tão brutais, o garoto ficar na cadeia ou em tratamento por mais de três anos, o risco para a sociedade era muito grande, porém as leis brasileiras protegiam o “menor’ infrator, para Marcelo a ideia de proteger menores que cometiam crimes brutais era um recalque social, uma forma de dizer para a sociedade :”nascemos bons e o mundo corrompe”, linha de pensamento iluminista do filósofo Frances Jean-Jacques Rousseau, Marcelo acreditava muito mais na versão de Hume, “o homem é o lobo do homem”. Marcelo estava decidido a manter o garoto preso, porém em tratamento pelo período máximo possível, talvez até atingir a maior idade, mesmo porque o garoto já havia ameaçado Marcelo em duas ocasiões.
         Dona Adelaide, sem controle do que fazia, havia se aliviado no sofá e estava pelada na varanda. A campainha tocou. Marcelo atendeu. Era o síndico.
         -Sua mãe está sem roupas na varanda.
         -Telma – chamou Marcelo com raiva. – Olha onde minha mãe está, sem roupa na varanda, já não te pedi para fechar a merda da varanda?
         -Estou com o bebê, cuida de sua mãe você – disse Telma com o filho Henrique de nove meses no colo. – Falando em merda olha o sofá, está cheio de merda dela, aproveita e limpa, eu não sou sua empregada.
         -Você sabe que eu não consigo lidar com a doença da minha mãe, é muito difícil para o filho ficar vendo a mãe sem roupa – disse Marcelo e continuou falando – ainda por cima estou com uma entrevista marcada, é um caso para a justiça.
         -Então deixa sua mãe pelada na varanda – disse Telma e completou enfurecida – não vou largar a mamadeira do meu filho pela metade, somente para cuidar da sua mãe. Marcelo eu disse para você contratar uma enfermeira, até duas, que dinheiro para isso você tem.
         -Você fala isso porque não é a sua mãe, da última vez que contratamos uma enfermeira ela maltratou a mamãe, já temos a Lolita, ela é competente, é técnica de enfermagem, ainda cozinha, você sabe que estou juntando dinheiro para comprar aquele apartamento, ainda tem o meu sonho, a clínica de recuperação, se não guardar dinheiro não consigo nada, você sabe, não ganho tanto assim para ter tantas funcionárias como num palácio – disse Marcelo tirando a mãe da varanda e vestindo a camisola nela, depois saiu batendo a porta e dizendo – queria ver se fosse sua mãe.
         Nem escutou o pássaro dizer: ”a mãe dela morreu.”
         Telma parou com o bebê em frente ao pássaro, ele era feio, tinha as penas negras e olhos vermelhos, como aquele pássaro infeliz sabia da morte da mãe de Telma, ocorreu a vinte anos, que parte com o demônio tinha aquele pássaro?
Com a mamadeira, mesmo tomando o leite Henrique não parava de chorar, o que aquele menino tinha, já tinha olhado a febre, deu remédio para cólica e o choro continuava. Telma estava com uma ira interior, uma fúria, uma vontade de atirar o filho da janela, que era incompreensível, parou na frente da gaiola e olhou para o pássaro que parecia recuperado, estava de pé, seus olhos agora encaravam Telma, passou um arrepio por suas costas. ”Não gostei de você”, pensou e depois completou em voz alta.
         -Assim que você melhorar vou te entregar na prefeitura para adoção.
         A primeira noite Telma não dormiu bem, Marcelo ligou dizendo que ia dormir no consultório para refletir, o relacionamento que ia de mal a pior, ela só sabia gritar e praguejar, ele não estava suportando, então o melhor era refletir. Ela disse para ele ir à merda, que refletisse no raio que o parta, que a mãe dele tinha acabado de defecar no sofá.
         Quando Telma acordou, Jéssica já havia levantado e Lolita, a empregada, não tinha chegado ainda,” como sempre aquela vadia está atrasada, empregados são todos iguais, sempre tem um parente doente”, pesou Telma. Eram pensamentos que vinham sem permissão na sua cabeça, como se fossem de outra pessoa, mas se Lolita não chegou, então quem fez o café.
         -Foi minha vovó que fez mamãe – disse Jéssica empolgada.
         -Como assim? – Perguntou Telma, assustada e surpresa.
         -A vovó, ela está curada, depois te explico,sai dando um beijo na mãe. O transporte já chegou vou para a escola, estou tão feliz que a vovó voltou.
         Telma tomou banho e foi tomar café, mas tudo já tinha sido guardado, a mesa do café foi desfeita, e a sogra assistia TV na sala, fumando um cigarro.
         -Dona Adelaide, desde quando a senhora fuma?
         -Não fale comigo sua piranha, sua piruá inútil e siliconada, você quer me ver pelas costas, me jogar num asilo, para que eu morra esquecida, de hoje em diante quero te dizer que estou muito bem da cabeça.  - O pássaro gritou: “quem manda sou eu” -  quem manda nessa casa sou eu, você varre, cozinha, faz tudo que eu mando, agora sai da minha frente. –Telma ficou surpresa, a voz não era de sua sogra, parecia de um homem, toda vez que ela falava o pássaro gritava, morre vadia.
         -Devo estar sonhando – disse Telma. – Estou escutando a sua voz grossa como se fosse de um homem, um ruído que era masculino e ao mesmo tempo rouco, minha sogra curada, ou bati a cabeça ou ainda estou dormindo.
         A velha voltou, num gesto ágil demais para uma pessoa idosa, pegou o cigarro e queimou o rosto de Telma dizendo: “vê se você está dormindo”, a dor foi tanta que Telma desmaiou, quando acordou Marcelo estava em pé olhando para ela sorrindo, Telma estava em uma cama de hospital.
         -Não sabia que fumava? –Disse Marcelo com um sorrisinho sínico nos lábios, como se pensasse “ai em Telma, com seus pecadinhos”.
         Telma estava tonta, tentou falar, mas a voz saiu devagar e imprecisa.
         -Eu não fumo, nunca fumei, foi àquela louca da sua mãe que me queimou.
         Marcelo riu.
         -Minha mãe tem Mal de Alzheimer, ela estava dormindo quando encontrei você, Lolita me telefonou dizendo que ninguém atendia a porta, encontrei você caída na sala, está tudo bem, só acho que vai ficar uma cicatriz nesse lindo rostinho, mais uma cirurgia plástica a vista. – Marcelo deu um beijo nela, havia tempos que isso não acontecia. – Vou viajar para uma jornada de esquizofrenia, sou um dos coordenadores, Lolita vai ficar com você.
         -Não viaje agora, tem alguma coisa errada com a sua mãe.
         -Já ia me esquecendo, resolvi liberar o garoto, o tal do assassino da cruz, não sei, acordei com esse pensamento, afinal é apenas um adolescente, ele precisa de tratamento não de cadeia. – Ele arrumava a maleta enquanto falava, sempre fazia isso, mesmo que não fosse necessário, para evitar olhar para ela – dei comida para o seu pássaro.
         -Não vá – disse Telma. – Quanto ao pássaro, vou me livrar dele, acho que ele atraiu uma força maligna para a nossa casa.
         -Não seja supersticiosa, eu quero dizer que amo você, que isso tudo passa, mas sabe que não posso ficar, tenho minhas responsabilidades, Lolita vai levar você para casa.
         -Marcelo, você não pode nem me levar em casa.
         -Desculpe meu avião sai em uma hora.
         “Cretino”, pensou levantando da cama para olhar no espelho o estrago feito pelo cigarro,”isso vai custar caro para você”.
         Ao chegar a sua casa, estava sendo amparada pela funcionária. Olhou várias vezes para Lolita e a mesma evitava encarar, achou que sua funcionária estava estranha, quando chamou a funcionária percebeu que Lolita olhava para a patroa de forma desconfiada.
         -Dona Telma, em primeiro lugar eu quero dizer que não tenho nada haver com isso. É que estou sem jeito de falar uma coisa.
         -O que é Lolita, fala logo, é alguma coisa com Henrique ou Jéssica?
         -Não os meninos estão bem, é o gato.
         -O que tem o Zack? – Telma precisava deitar, estava enjoada, deveria ser um dos remédios.
         -Encontrei o gato morto dentro da máquina de lavar, que dó! Acho que foi dona Adelaide com as loucuras dela que colocou o pobre do gato lá, tão bonitinho! Fiquei com tanta pena do bichinho, sei não? Vocês tem que internar dona Adelaide numa clínica de repouso. Outra coisa é aquele pássaro, Deus me livre e guarde, mas acho que é dos infernos, só fala em morte, morte, crus credos! E aqueles olhos vermelhos? Tanto problema nessa casa e ainda trás um traste daqueles, trás azar, todo preto com aquele olho vermelho, e aqueles nomes que ele fala, Deus me livre e guarde. Pesquisei na internet, tudo nome de demônio, dona Telma, nome de demônios.
         Telma passou para ver o filho Henrique, estava bem no berço, tão cansada foi para a cama, dormiu, acordou assustada a noite, Adelaide estava sentada na sua cama.
         -Dei um jeito na intrometida da empregada. Morreu gritando como porco no abatedouro – deu uma gargalhada.
         -Quem é você? Você não é a minha sogra.
         -Tenho muitos nomes querida.
         -É o pássaro, não é?
         Uma gargalhada, depois ela ouviu o choro de Henrique.
         -Coloquei o moleque na máquina de lavar, ele vai ter o mesmo destino do gato.
         Telma caiu de joelhos implorou – Não, por favor!
         -Vovó – disse Jéssica em pé na porta do quarto. – Por que você está fazendo essas coisas ruins?
         -Não é a sua avó, corre Jéssica vai embora, esconda-se. – Disse Telma empurrando a sogra que bateu a cabeça na cômoda e caiu, levantou tinha um sangramento na parte de trás da cabeça.
         -Cala a boca, que agora vai morrer junto com todos que estão aqui, somente Adelaide vai viver para me abrigar. – disse Adelaide, mas a voz era de homem.
         Jéssica correu para o seu quarto, pela primeira vez escutou a mãe sem questionar, e trancou a porta, quase tropeçou no corpo de Lolita no chão, ela estava banhada em sangue, Lolita  segurava na mão um terço, Jéssica  entrou no seu quarto e fechou a porta.
         Telma tentou se levantar, porém uma força extrema a jogou contra a parede e depois torceu o seu pescoço, Telma foi elevada até o teto, seu pescoço foi girado no sentido horário até ter sua cabeça arrancada, tudo explodiu em sangue, depois caiu sem vida.
         O pássaro gritou “só falta à menina.”
         Quando Marcelo recebeu uma ligação da filha já estava sem vida em um quarto de hotel, foi assassinado com uma cruz de ferro, nunca mais se ouvi falar do assassino da cruz.
         Discou o número, a chamada de Jéssica caiu na caixa postal, o pai nunca mais atenderia.
         A velha tentava arrombar a porta, então Jéssica se lembrou de uma brincadeira arriscada que fazia, pois morava no décimo andar, sempre que a mãe não estava em casa passava da varanda do quarto para a da sala, entrou na sala, o pássaro começou a gritar, porém Jéssica pegou a gaiola e atirou pela janela.
         A gaiola se espatifou no chão, mesmo ficando muito ferido o pássaro não morreu, foi quando um menino que vendia balas na rua pegou o pássaro e levou para a calçada.
         Jéssica viu a avó caída, ligou para a emergência e tirou o irmãozinho da máquina de lavar.
         O menino morava na rua, debaixo da ponte, não tinha conseguido nada para comer até aquela hora, ascendeu o fogo e chamou o irmãozinho, pegou uma panela de água quente e colocou o pássaro. Naquele dia teriam alguma coisa para comer, com o arroz que juntou do lixo.
 
         

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 27/10/2012
Reeditado em 12/05/2013
Código do texto: T3954752
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.