RESTOS MORTAIS

Quando morri foi rápido, quase nem senti a dor, a bala entrou pelas minhas costas, atingiu uma artéria importante e o corpo parou de funcionar, não pude ver quem me tirava a vida daquela forma covarde, nem quem era o sacana, porém de alguma forma não fiquei revoltado,apenas me encolhi para deitar e sonhar um outro sonho, lembrei das palavras da minha avó:” a morte não tem remédio”.
Fiquei deitado,parecia estar suspenso no ar, hora lembrava de minha cama ao lado de Rose, sentindo seu perfume, ou sonhava com meus tempos de menino correndo atrás da bola, nada era solido,tudo muito suave, tudo parecia tão bonito, depois veio apenas uma imensa escuridão.
Minha consciência voltou ao tempo presente, Rose e minha mãe discutiam sentadas no sofá, elas nunca se entenderam, sobre o destino do meu corpo,uma queria cremar e enterrar ali mesmo, essa era a preferencia de Rose, outra, minha mãe, muito religiosa queria a preservação do corpo, e juntar aos restos mortais do meu pai na fazenda, tudo muito falso e mentiroso, como ela sempre foi. Eu, naquele momento, nem queria mais aquele corpo.
A vontade da mãe prevaleceu, teve o apoio dos outros, Robson convenceu Rose a levar os meus restos mortais após a cremação,e de lá,para a fazenda do meu pai, lá teríamos uma pequena cerimônia de adeus,apenas para amigos mais próximos e a família, meu amigo Robson,Rose,Cláudia,minha irmã, minha mãe e o namorado dela participariam dessa pequena homenagem, fico pensando se as pessoas realmente soubessem o que se passa depois da morte, e o quanto isso é ridículo, por um lado, já que ali tinha gente falsa, como Murilo e minha mãe, por outro lado, era importante saber que Rose estava ali. Para falar a verdade, achei que a escolha foi boa,apenas Murilo, o sem vergonha, sem caráter, que se dizia o namorado da minha mãe. Briguei com Murilo, ele, hábil lutador, quebrou o meu nariz, houve outras brigas, nunca suportei aquele homem, nunca gostei dele, acho que nunca vou gostar, havia rumores que tinha matado um companheiro de trabalho, respondeu pelo crime e saiu da cadeia, hoje vivi as custas da minha mãe.
Murilo , antes de casar era um mestre de obras com cara de poucos amigos, tinha certeza que foi Murilo quem atirou, apesar de que quem herdaria tudo que eu controlava, quando eu morresse,era Cláudia, minha irmã, e Rose, minha esposa. Para Murilo restaria o bônus da minha ausência, foram anos de perseguição, de ódio entre os dois, agora ele estava livre.
Sou herdeiro majoritário da fortuna do meu pai, já que Cláudia foi praticamente deserdada pelo seu casamento com um rapaz negro. Meu pai, tinha muitas qualidade, mas era um preconceituoso reacionário, um defensor de curtumes antigos e um conservador na politica, foi contra o movimento das diretas já e defendia os generais, morreu ao descobrir o caso da minha mãe com Murilo, foi triste ,um derrame, caiu na cozinha depois de uma discussão sobre infidelidade, que eu e Cláudia ouvimos na integra, quando caiu eu ouvi o baque surdo de sua cabeça bater no chão, minha mãe gritava socorro, no seu falso desespero, seu personagem de mulher boazinha havia voltado.
Herdei a posição de diretor geral das empresas do meu pai, contratei Rose e Pablo, dois amigos da faculdade, meses depois estava namorando Rose, quatro meses de namoro e casamos. Sei que foi exagero e precipitação, todos os meus amigos falavam que Rose era doida, que usava drogas,que estava comigo só por interesse, eu dizia “ amor é amor”.
Rose,estudou direito as duras penas, gostava de ficar nos bares até a madrugada, era bonita, com olhos grande, cabelo castanho,boca sensual. tinha um rosto de modelo, acrescento a esse atributo físico um talento para as palavras que me encantou, tinha um serio defeito, pelo menos para mim, sempre fui puritano,, gostava de usar drogas,nada demais, começou usando apenas maconha na minha presença. Suportei, oque pude, estava apaixonado, ela deixou a maconha e passou a beber, bebia todas as noites, depois tomava vários remédios para dormir, acordava as duas horas da tarde, com um humor péssimo, só conseguia conversar com ela à noite, quando o seu humor voltava e o ciclo recomeçava, essa fase foi difícil, pois ela não estava rendendo no trabalho, nosso relacionamento ficou por um triz,até que resolveu procurar apoio psicológico, minha mãe dizia que ela estava me manipulando, eu nunca acreditei nisso.
Foi nessa época que conhecemos o Dr Robson, um jovem psicologo que começou a cuidar de Rose, no começo achava que ele era gay, isso sempre foi muito preconceituoso em mim, todo cara bonito era potencialmente gay na minha cabeça. Depois do tratamento com Robson, Rose começou a melhorar, e como a sua melhora foi considerada um milagre, o jovem psicologo entrou para a família, me tornei o seu amigo e ele o meu melhor amigo,nós tomávamos cerveja na praça, discutindo Lacan, Hobbes e Hume. Nosso assunto predileto era o futuro da humanidade, a falta de alimentos, a verticalização das relações,o mundo pós edipiano, ele dizia:” nenhuma relação é vertical mais.”
O estranho é como me deslocava, nesse mundo novo, pensei na fazenda, e proto, lá estava ela, a fazeda  do meu avô, dois minutos depois estava andando pelos pomares, ser espirito tinha a suas vantagens, certamente iria intrigar muitos cientistas, filósofos da nossa época, imagine então o mito da caverna de Platão, sinto que estou em um universo, que antes para mim era apenas sombras e que agora, mesmo se voltasse ao mundo dos vivos, ninguém acreditaria.
Estava tentando pegar umas uvas, meu paladar ainda ansiava pelo sabor, quando Paulo chegou e falou.
-Não vai conseguir.
-Você está morto, ou consegue ver os mortos? - Perguntei para Paulo, ele era o caseiro da fazenda, cresci chamando Paulo de tio, ele me conhecia desde criança. Quando meu pai herdou a fazenda, deixou para Paulo um pedaço dela.
-Que tragédia ver o meu patrão morrer tão novo, quem fez isso vai pagar, na ordem que Deus quiser que as coisas aconteçam.
-Minha esperança é essa, quem me dera poder comer uma uva.
-Oh, não se queixe. Você teve a sua chance – ele pegou e comeu uma uva – agora vai experimentar uma outra realidade, a realidade do espirito, onde o sabor da uva é apenas uma ideia.
Paulo era um conhecido curandeiro local, vivia para ajudar a população, tinha a fama de falar e ver os mortos, antes desa fase de curandeiro e ser uma pessoa direita, foi um conhecido beberão local, as pessoas chamavam ele de Paulo cachaça, vivia caído bêbado,sujo esfarrapado, porém meu avô, que era espirita libertou paulo de um forte obsessor, desde então a amizade entre meu avô e Paulo foi selada, ele prometeu cuidar do filho e do neto.
-Como se sente? - perguntou Paulo.
-Não sabia como era importante pegar nas coisas, sentir o seu paladar, sentir a textura, o toque é o sentido mais importante do que a gente pensa, desse lado é isso que se perde, pelo menos por enquanto é assim que me sinto- disse sorrido, contente por poder falar com alguém.
-O que está fazendo aqui patrão, a terra não é para mortos,o senhor sabe disso?Esse não é mais o seu lugar, não brinque com fogo, o universo tem seus guardiões.
-Você sabe, estão trazendo meus restos mortais para esse lugar,acho que dentre as pessoas que vem aqui, uma delas puxou o gatilho que me matou.
-Seu espirito está doente de vingança, essa doença não tem cura - disse Paulo olhando nos meus olhos - vem comigo patrão, vou mostrar para o senhor o Coronel, meu cachorro, ele não tem um olho, e só tem duas pernas boas, se arrasta, mas não desiste de viver, é o cachorro mais fiel que eu já tive,sabe quem fez isso com ele?
- Não.
-Eu, espanquei esse cachorro até quase a morte, quando andava pelas ruas,o animal ensina a lição do perdão, agente que não aprende.
-Ensina nada, ele nem sabe que está vivo, é o que a ciencia diz.
-A ciência não explica tudo patrão .A maior parte das soluções cientificas são inventadas para explicar a solidão do mundo e negar a vida dos espíritos, o senhor consegue negar os espíritos agora?
Uma mulher, da janela chamou Paulo,
-Paulo, você tem um cliente.-Dona Jacira a mulher de Paulo, ela fazia um pé de moleque, la vinha a sensação do sabor.
Era um bebê, tinha febre alta, a mãe uma lavradora pobre e com as mãos sujas entregou a Paulo o bebê, ele pegou a criança e fez uma oração simples e direta, depois da oração a criança parou de chorar a febre diminuiu, Já estava curada.
Fiquei por ali, Paulo ainda atendeu duas criança, e um adulto a sua habilidade para cura era nata, porém fiquei desconfiado dessa sua ação de curador, muitos médicos criticam os curadores, mas a origem da medicina é essa, a cura vem da magia, somente recentemente é que a medicina tem o status de ciência. O conhecimento iluminista, o forte desenvolvimento da ciência do começo do século, e a explosão tecnológica das ultimas rês décadas, tornaram o médico um cientista, afastando o médico da figura do curador, o dom do processo de cura, tornando, quem deveria curar em um mero técnico, causando um distanciamento das duas partes, tornando a medicina um fardo duro,um comércio e a cura um produto da técnica.
Meus familiares chegaram, minhas cinzas estavam em um pote dourado. Se fosse para mim escolher a cor do pote, jamais seria dourado, fico admirado como as pessoas se perdem com esse feitiche? Restos mortais, significam muito mais para os vivos que para os mortos.
Rose chorava o tempo todo, livre das drogas, ficava pelos cantos, as vezes abraçava Robson, a pessoa que tinha ajudado a superar os problemas, ele estava acompanhado da namorada Carla, uma mulher bonita de cabelos curtos e pele morena, tinha olhos pretos vivos, mais bonita que o usual das namoradas de Robson, muito amiga de Rose, se conheciam como irmãs, eram confidentes, foi Rose que apresentou Robson a Carla.
-Toma um calmante,Rose.
-Não, prefiro sofrer – disse Rose a Carla, me sentia orgulhoso, vendo a mulher que amava de luto,aquilo não era estranho, estava perfeitamente confortado com aquele luto.
Cláudia podia ser minha irmã, mas era um cobra, a falsidade estava estampada em sua cara, nunca fez nada certo, o namorado Valmor, um coitado explorado, tanto pelo lado de sua cor, parecia que Cláudia ,casou com um negro, propositalmente para ferir meu pai e minha mãe, quanto pelo lado sexual com Valmor, Cláudia introduzia jogos, perversidades,que Valmor,  um homem religioso adventista, não estava conseguindo suportar, uma vez ele me falou, “Duda, se não fosse esse Deus Grande que me ilumina, eu já teria largado Cláudia, sua irmã é muito tarada por sexo, ele deveria procurar um psicologo".
Murilo era um vilão para mim, nuca prestou, tinha uma mágoa enorme pela estória dele com a minha mãe, nem posso pensar nisso, nem mesmo depois da morte, aquele individuo fuinha de óculos,obscenamente na cama com a minha mãe, tudo isso, nas costas do meu pai. Murilo agora administrava os negócios que minha mãe arrancou do meu pai no divorcio.
O que há para falar de uma mãe que nunca esteve lá, que sempre foi ausente, deprimida, tomava remédios, sempre achei que não gostava do meu pai, as brigas eram tantas,Cláudia as vezes chegava rindo, ela gostava das brigas dizia :”os porcos estão brigando,pensam que a gente não sabe”.Eu tampava o ouvido, aquilo para mim era a morte. Uma vez em uma viagem que minha mãe fez comigo, ainda garoto a vi beijando um homem que não era o meu pai, isso me chocou, foi a visão mais terrível que já tive, uma sombra na minha existência, um fantasma que me acompanhou até depois da morte.
Encontrei Paulo na varanda da casa dele, era noite e chovia fininho.
-Vai me ajudar, preciso de você para desmascarar o assassino? - Perguntei.
-O que você quer saber?O que tiver que saber, saberá na hora certa. Não será por mim, depois de depositarem os seus restos mortais junto do seu avô, saberá tudo que precisa saber, mas cuidado, não se precipite na vingança, pois ela sega,maligna,nada tem de bom. Desejo paz, não estarei mais aqui pela manhã, não pertenço a esse lugar mais, minha hora chegou, amanhã minha gente vem buscar meu espirito, dormirei hoje e não acordarei, amanhã estarei no mundo dos espíritos, toda vida desperdiçada por mim com a bebida, como posso ter feito tanta bobagem, como o tempo é tão cruel, não me deu oportunidade de reparar o que fiz de errado,nem em mil anos consigo reparar do outro lado o que fiz nessa vida, procure não errar, o perdão é fácil, reparar o erro é dificil.
Ao primeiro raio de sol Paulo morreu, o mais incrível é Coronel também foi encontrado morto.
Ao Lado da minha sepultura estava Murilo, sozinho.
-Sinto muito ter feito isso com você, mas as nossas brigas, o soco, me sinto mal.
-Então foi você - Murilo ouviu minha voz, ainda tentou dizer, “ é você, quero que me perdoe”.Uma grande sobra se apoderou do meu corpo espiritual, então tive forças para lutar contra ela,aumentou o meu ódio, e empurrei Murilo, desequilibrado e com medo, escorregou no barranco e caiu, a sua cabeça bateu violentamente em uma pedra o que provocou a morte de Murilo quase que instantânea, ouviu-se uma gargalhada, a sambra negra,o que era aquilo?Fiquei com medo e sentei ao lado do corpo, o seu sangue escorria, tive pena, então a certeza me abandonou. Morto, Murilo tocou meu ombro e disse, não “fui eu”, desaparecendo em uma fenda de luz A vida tinha que ser assim mesmo, olho por olho, dente por dente, mas ele merecia, agora eu estava feliz, andei até a casa de Paulo, não encontrei ninguém, andei e sentei na varanda, quando levantei os olhos, dois vultos pretos de capuz me esperavam, me agarraram, um deles era Paulo.
-Por que está fazendo isso comigo agora Paulo? - Disse enquanto me perdiam com algemas.
-É a missão que tenho agora.
-Ele era um assassino.
-Não foi ele que atirou em você, eu disse para você se afastar da ideia de vingança.
-Então quem foi?
-Tem que descer agora, saberá no momento oportuno.
-Quero saber agora - disse, mas Paulo não ouviu, desci para um lugar fechado, onde a escuridão era total.


Rose encontrou com Robson.
-Tinha que atirar nele? - Perguntou Robsom.
-Não, mas estava insuportável aquilo,viver com um e amar outro, com a herança podermos ir para a Holanda, eu você e Carla - Rose sabia que em breve teria que matar os dois.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 31/10/2012
Reeditado em 31/10/2012
Código do texto: T3961542
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