BAR 666
                -Você é mágico papai? – Perguntou Camila, filha de Sávio, para sua idade era uma menina muito experta.
                -Não querida, sou cirurgião plástico – que do ponto de vista de algumas mulheres era a mesma coisa, pensou Sávio.
                -Se você for mágico quero ganhar um trem de ferro no natal, igual a um de verdade. – Sávio sabia que a filha tinha uma mania por trens, havia encomendado uma réplica de uma estrada de ferro com uma locomotiva a vapor, essa fixação poderia ser apenas saudade do avô, que ganhava a vida como maquinista.

Sávio sabia que ia custar muito caro esse brinquedinho de natal, quase o preço de um carro popular, mas valia a pena ver a filha feliz, ele estava ganhando bem na clínica e foi chamado  para ser sócio na semana passada, sua vida estava deslanchando, quando escolheu a cirurgia plástica sempre sonhou com fama e fortuna, mas isso não tinha acontecido.
                -Tenho que ir trabalhar, hoje o papai tem uma reunião importante, poderá ser chamado para ser sócio da clínica, - Sávio olhou para o relógio e perguntou a filha - onde está a mamãe? – querendo saber onde estava a sua mulher, grávida de três meses, a menina sorriu e disse.
                -Vomitando no banheiro. – Sávio correu para ver se a esposa estava bem, mas Camila nem se abalou. Diana estava sentada no chão.
                -Eu vou viver – disse Diana rindo, mas ainda pálida e abatida – posso estar enganada, mas não sofri metade desses enjoos com Camila, para dá trabalho assim dentro da barriga, só pode ser menino.
                Sávio riu da irreverência da mulher, que ainda vestia a roupa de dormir, tinha os cabelos pretos presos no alto da cabeça num coque, e usava apenas calcinha e sutiã, deixando à mostra a pequena barriga de onde sairia o seu segundo filho amado e esperado, parecia uma princesa, teve desejo pela esposa, porém, além da presença de Camila, estava atrasado para a reunião na clínica, onde seus colegas, Dr. Milton e Dr. Franco, estavam esperando com uma proposta da sociedade, no momento, eles queriam um capital, trezentos mil, estava sem o capital todo, que era muito dinheiro, mas tinha muita vontade de trabalhar e todas as suas economias, que somadas davam cento e trinta mil, já havia transformado em patrimônio da clínica.
                -Você viu o noticiário? – Perguntou Diana antes que ele fechasse a porta para sair, ainda quando estava beijando o marido e completou – é sobre a clínica, tem merda no ventilador, vai preparado o seu espírito, é uma louca de uma paciente, está querendo matar o tal do Milton e enfiou o seu nome no meio, aquele metido do Milton, que acha que é seu chefe, pode deixar a culpa cair no seu nome, abre o olho.
                Sávio ia dizer alguma bobagem, mas parou, perguntou detalhes, Diana respondeu.
                -Alguma coisa sobre uma mulher que foi operada lá e teve sérias complicações.
                Sávio tremeu, talvez fosse Walesa, ele no principio foi contra a cirurgia dela, mas os outros sócios concordaram, Walesa era uma milionária obesa, que queria se tornar magra  da noite para o dia.

                Eram muitas as pessoas que chegavam na clínica com objetivo de perder peso rápido, porém passavam por uma rigorosa avaliação primeiro, de natureza psicologia.
                A clínica tinha psicóloga, era dela a palavra final. Muito influenciada pela vontade do Dr. Milton.
                A milionária pagou a sua cirurgia em dinheiro mais do que o suficiente para equilibrar as finanças da clínica, e teve uma complicação importante, infecção, necrose.
                 O resultado para a clínica foi uma complicação legal.
                Quando dizem que para Deus tudo tem jeito, em cirurgia plástica quase tudo tem jeito, o problema é que depois de dezoito cirurgias ela continuava feia, não só queria ficar bonita, a mulher continuava comendo e engordando o tempo todo.
                 Depois de uma conversa sincera, com um sermão do Dr. Milton sobre emagrecer, ela não gostou, teve um surto psicótico contou tudo a imprensa e resolveu processar a clínica.
                -Isso é inaceitável – disse o Dr Milton – está em todos os jornais.
                Sávio estava quieto sentado na lateral da mesa de reunião, não queria falar, tudo que vinha a sua cabeça parecia inadequado.
                -Franco, quem admitiu essa mulher na clínica? Eu sempre achei que ela fosse muito doida, Rita, a nossa psicóloga me disse isso – disse o Dr Milton com a cara mais sínica, mentindo, Sávio sabia que a mentira fazia parte, era uma proteção, sobrevivência, aqueles dois...

                Um estalo de dedos, os dois olharam para Sávio.
                -Não fui eu – disse Sávio – vocês sabem que não fui eu. Não sabem?
                -Foi você quem fez a entrevista dela, você quem fez a primeira cirurgia. – disse Dr Milton com um ar de alívio.
                -Recebia ordens dos senhores – disse Sávio – não fiz nada sem consultar os doutores, colegas, somos amigos, minha vida é um livro aberto, tinha avisado sobre essa senhora e os seus problemas psiquiátricos, tinha conversado com a psicóloga que disse que a mulher era bipolar, antes da interferência do Milton – Sávio estendeu a mão para o cirurgião chefe – desculpe a franqueza, mas o senhor tinha uma relação amorosa com a psicóloga, isso interferiu na decisão dela – fez uma pausa para tomar água e continuou. – Sei que  a clínica estava precisando de dinheiro e, claro, a soma era elevada, não é Dr. Milton? A gente sabe que o dinheiro conta muito, que ela estava disposta a pagar o valor que a clínica pedisse, vocês não me ouviram.

                -Mais que filha da Puta, xeretando nos meus assuntos, franqueza o cacete, fala pra ele Franco, o que se faz com esse tipo de fanqueza.
                -Você está demitido, pegue o seu dinheiro e suma – disse o Dr Franco - deduzindo as dispesas que vai dar esse processo e todos os cursos que mandamos fazer, terá que falar com nossos advogados.
                Sávio tentou falar, mas nenhuma palavra no mundo representaria sua indignação, quando foi sair e pegar o carro os seguranças não o deixaram pegar, a Mercedes foi comprada em nome da clínica. Sávio não pôde tirar nada, nem mesmo a fotografia da família, entregariam pelo correio, do lado de fora centenas de repórteres esperavam algum diretor da clínica para dá uma palavra sobre o escândalo.

                 Sávio estava com a carreira por um triz, resolveu sair pelos fundos e andar um pouco a pé pela cidade.
                Duas quadras a baixo da confusão de repórteres, andava meio tonto, pois Sávio passou a se perder em pensamentos perversos de vingança, encontrou um bar, tinha anos que Sávio não entrava em um bar. Estava nervoso, de sangue quente, tudo que poderia querer naquele momento era uma cerveja bem gelada.

                Duas motocicletas paradas na porta, sugestivo, bonito, resolveu entrar, precisava mudar de vida.
                O número, que estava meio torto, era sugestivo, em preto desbotado, 666. Aquilo era ridículo, do jeito que estava a vida de Sávio, todo o seu investimento escorrendo pelo ralo, a prestação de um apartamento do tamanho de um elefante e uma mulher, sua mulher amada estava grávida, para finalizar havia o presente da filha um trenzinho, que custaria vinte mil reais, uma réplica exata, até ele gostaria de brincar com aquilo, mas agora tudo que precisava era uma cerveja, um cigarro e ficar sem os pensamento ruins, de matar e esquartejar aqueles dois, amanhã é outro dia.
                A palavra certa para caracterizar o bar: sinistro, cadeiras de madeira e mesas de metal era uma combinação horrível. Todo fechado, o detalhe charmoso era a porta de vai e vem que lembrava o velho oeste, dentro três pessoas. No canto esquerdo junto ao piano uma mulher de vestido vermelho, ruiva, poderia ser bonita se não fosse tão pálida e uma cicatriz marcava o seu lado direito da face, horrorosa, da testa ao canto da boca, via-se que ela tentava esconder com o cabelo. A direita sentado, jogando cartas sozinho, um homem de chapéu, tinha um tapa olho, barba rala e um aspecto elegante, Sávio teve vontade de rir, parecia que, as pessoas do bar, vestiam roupas do século passado, não que achasse feio, era totalmente inapropriado para um lugar daqueles, ou seria totalmente apropriado e Sávio é que se vestia anacronicamente?
                O terceiro  individuo estava atrás do balcão, era o barmam, um homem corpulento, barba serrada e sorriso amarelado pelo cigarro que não tirava do canto da boca.
                -Senhor Sávio, deseja alguma coisa?
                -Como sabe meu nome?
                -Seu jaleco, tem um Doutor na frente, deve ser médico.
                -Quero uma cerveja – disse Sávio sentando em um dos bancos no balcão, lugar maneiro, pensou, sempre gostou de bares assim, nada demais, sua comida gordurenta e a cerveja no copo de massa de tomate.

                Aquele bar era frio, não totalmente sujo, normalmente teria medo de entrar ali, talvez fosse um bar temático, de motoqueiros, pois parecia que estava em outra época, ou em outro lugar.
                -Sabe que significa o nome Sávio? – disse o cara que brincava com as cartas no canto do bar – "aquele que foi salvo” - deu uma gargalhada.
                -Olha amigo, não leve a mal – disse Sávio mediando as palavras, pois estava entre estranhos – mas não estou para muita conversa hoje, acabei de perder o meu emprego, e todas as minhas economias, parei aqui só para tomar uma cerveja.

                -Sinceramente – disse o barman – está com muito ódio, revolta, afinal de contas sempre foi um homem correto, e agora isso desaba a sua vida, quem pode acreditar nas pessoas, quem hoje fala integralmente a verdade? Você se acha injustiçado, não é?
                -Não conheço você, como pode falar assim comigo? - Disse Sávio, já querendo voltar para casa.
                -Posso sim, além disso, sei que não me conhece, se me conhecesse não estaria aqui. – Sávio não conseguia definir a fisionomia do homem direito –No entanto, nós conhecemos você, não é que está em todos os canais? – disse o homem ao mesmo tempo em que ligava a tv antiquada no canto do bar. – Veja você, que injustiça, toda culpa foi colocada no único médico, ele sentiu-se profundamente ofendido, acho que enlouqueceu. A paciente teve necrose de dois terços da barriga, os pais dela estão processando a clínica, que tirou o corpo fora, está alegando que a culpa é sua.
                -Vou provar a minha inocência. – disse Sávio já louco para sair dali, que bando de intrometido.
                -Ninguém é inocente – disse a mulher de vermelho deixando Sávio ver a cicatriz propositalmente – você sabe como as mulheres são... essa coisa de cicatriz, por exemplo, eu tenho a minha, nem consigo olhar no espelho, trabalhava no teatro, onde estou agora? Nesse bar. Vai se acostumando com ele, será sua casa por muito tempo.

                O homem que jogava cartas chegou perto de Sávio, seu hálito era horrendo e seus olhos vermelhos.
                -Atendo o seu desejo Sávio, mas está preparado para atender um meu? – perguntou com hálito podre.
                -O que você é, o gênio da lâmpada? – o copo de cerveja ferveu, queimando a mão e deixando a pele em carne viva.
                -Vamos matar eles – disse a mulher, seu rosto estava cheio de vermes, era outro, um fedor de enxofre apareceu, Sávio olhou a face carcomida da mulher que agora parecia uma velha.
                -Estou sonhando? – disse Sávio.
                -Viverá o tempo que quiser livre de todos os males, mas quando morrer, virá para cá, vai assumir o lugar de um de nós três no bar – os três deram gargalhadas sonoras.
                Sávio pensou, não tinha nada a perder, uma vida normal de ateu, depois ficaria no bar com aqueles esquisitos. Parecia tudo um sonho entrou na brincadeira, demônios? Ele não acreditava em Deus quanto mais em demônios, aceitaria a brincadeira que seu inconsciente estava propondo, afinal já havia tomado duas cervejas.
                 -Você libertará um demônio, grandes maldades serão feitas na terra em seu nome Sávio, o que arruinará a vida de muitas pessoas pela sua felicidade, isso é muito egoísmo não é pessoal? - disse o homem das cartas – assim como um traficante, tudo que precisa é um coração duro. Nós é que somos demônios, olhe para esse humano? Que me diz?

                -Que se dane, eu aceito.
 
VINTE ANOS DEPOIS
        -Dr. Savio, secretário de estado da Saúde, dono do maior hospital especializado em cirurgia plástica, acaba de falecer – dizia o repórter –enfarto agudo do miocárdio, um homem bom desses, que ajudou tanta gente só pode ter ido para o céu.
        Sávio servia os demônios, e olhava a reportagem, havia libertado a mulher, ela provocaria dor e ódio.
        Cada dia sofria um tipo de tortura, os demônios presos no bar não podiam ficar entediados, agora Sávio sabia o significado da palavra eternidade.
                
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 26/11/2012
Reeditado em 27/03/2013
Código do texto: T4006173
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